27/12/2008

Lado negro

Mais uma alta de mais um internamento.
– É desta, Tó? – Perguntei-lhe quando o fui buscar.
– Sim, é desta. – Respondeu.
Se eu pudesse acreditar nisso! Queria tanto acreditar! Mas, decididamente, não me parece que vá ocorrer mudança no seu comportamento. Até porque o seu aspecto e a sua voz o denunciam. A droga e a delinquência encontraram nele poiso.

Encontrei-o, ainda nesse mesmo fim de tarde, na igreja. De pé, bem no meio, muito embrenhado com algo na mão… parecia um livro de cânticos, ou um papel… talvez uma carta ou oráculo do Santo Patrono.
Seria muito bom que esse reencontro com o espiritual lhe permitisse sair de lá iluminado por uma alva luz, com a qual pudesse desvendar o que constitui um mistério para ele, e que mais não é do que todo o seu tesouro, que enterrou não sabe bem onde, mas que se encontra dentro de uma caixinha envolta num papel colorido de bondade.

Mas não. A ida à igreja deve ter-se revestido de algum sofisma, disseram-me depois.
No entanto, custa-me pensar que possa ser assim. Preferia não ver as pessoas pelo seu lado negro, mas o receio de ser atraiçoada por algum paralogismo leva-me a não poder descartar certas possibilidades.
O lado negro muitas vezes leva vantagem.

(Mais um texto das 12 Palavras - 9.º jogo)

A todos um Bom Ano Novo,
mais fraterno e solidário,
menos materialista
e com menos misérias!

19/12/2008

O Gigante do Moinho das Sapatilhas

O velho moinho de vento, no cimo do outeiro, com aquelas sapatilhas enormes a girar, desde sempre alimentou as minhas fantasias de criança, como uma lenda…

O Gigante, que lá mora, fora em tempos uma criança feliz, como qualquer criança. Mas quando começara a crescer demasiado, deixara de ter amigos por o julgarem diferente. Os colegas troçavam dele, fazendo piadas acerca do seu corpo grande e esquisito. E ele, ao sentir a rejeição, começou a ver-se com outros olhos, a notar que não era igual às outras crianças, às outras pessoas, e isolou-se do mundo, desenhando para si um outro mundo à sua medida. Os pais passaram a ser o seu único consolo. Estes, com todo o seu amor, protegiam-no, mimavam-no e faziam-no esquecer os colegas da escola que o haviam maltratado.
Começara a trabalhar no moinho, ajudando o pai a moer o trigo e o milho das freguesas e, depois que o pai falecera, assumira esse trabalho por inteiro. Restara-lhe a mãe ainda por algum tempo, mas depois esta partira também deixando-o ainda muito jovem. Desde aí não mais soubera o que era um carinho. A solidão era a sua constante companhia.
Continuava a transformar em farinha os pequenos grãos das mesmas freguesas de sempre, mas ninguém lhe dispensava mais do que as palavras estritamente necessárias. E ele fechava-se num mutismo azedo e carrancudo que assustava ainda mais. Não fosse a necessidade daquela bela farinha, produzida naquele luminoso moinho, e ninguém se daria ao trabalho de subir a colina.

Mas o Gigante não era só aquele monte enorme de ossos e músculos, de cara fechada e empoeirada de farinha, que às vezes até parecia um fantasma. Ele era sensível e sofria. A solidão doía-lhe no íntimo do seu coração cada vez mais apertado.
Os anos iam passando por ele monotonamente, numa sucessão de dias sempre iguais, tornando-o num jovem adulto a quem tinham sido roubados os sonhos. Não sabia o que eram festas, romarias, comemorar a Páscoa ou o Natal. Sabia que existiam, mas não tinha direito a isso.

Nesta altura do ano, ele apercebe-se, pelo frio que faz e pelas encomendas maiores de farinha, que o Natal se aproxima. E fica ainda mais triste e solitário, mais infeliz e revoltado, mais amargo e mal-humorado. Tão gigante e tão frio que a todos afugenta cada vez mais.
Mas aquele gelo andava prestes a ser quebrado.

E quebrou. Derreteu completamente, começando a pingar-lhe daqueles olhos da cor do mel, quando Maria, de sorriso a bailar nos lábios carnudos, lhe colocou nas mãos duas broinhas de Natal.
Todo o seu semblante se transformou, parecendo reviver nele a magia da sua infância. Aquela coleguinha, agora uma linda mulher, lembrara-se dele e viera para lhe colorir o seu mundo tão sombrio. Até parecia que os tristes raios de sol de Inverno, que entravam pelas frinchas do moinho, brilhavam com todo o ouro quente do Verão.

É por isso que agora ouço o Moinho das Sapatilhas entoar uma nova melodia ao vento.

Conto que escrevi e enviei para responder a um desafio denominado Projecto CrioNatal 2008, para um E-book de Contos de Natal, da Crioestaminal.

Posteriormente publicado em livro: Memória Alada, 2011

12/12/2008

Regresso ao mundo II

anterior
Uma sonata de sons alucinantes parecia ecoar aos ouvidos de José Miguel, como convite a loucuras inconfessáveis. Aquela mão, retida na sua, irradiava centelhas de calor que o trespassavam até à medula.
O mundo tinha parado e José Miguel, de olhos fechados, saboreava com sofreguidão aquela embriaguez dos sentidos que se apoderara dele, enquanto o seu peito arfava de comoção.
Não conseguindo aguentar, foi deslizando a sua mão pelo braço nu da sua amada, num bailado de arrebatadora paixão.
Sentia-se um pecador, mas o desejo foi mais forte. Pousou os seus lábios naqueles que o chamavam com um misto de veludo e seda, primeiro com toda a suavidade, depois, sentindo-os entreabrirem-se, fundiram-se neles numa entrega inevitável e plena de êxtase.
O beijo quente e apaixonado fez-lhe reviver alvoroços perdidos no fundo de um baú. Mas aquilo parecia-lhe uma violação. “Perdão, meu amor…”, foram as palavras que lhe afloraram à mente. E afastou-se. Afastou-se sem se poder saciar naquela boca, que tantas vezes tinha povoado os delírios das suas noites. Afastou-se sentindo um arrepio profundo a inundá-lo, até lhe deixar as mãos trémulas e a cabeça à roda. E, de repente nauseado, antes de ter tempo de procurar onde se sentar, notou que o chão lhe fugia…
As emoções tinham sido muitas e demasiado fortes nos últimos dias, e aquela vertigem, que lhe tirou momentaneamente os sentidos e o atirou ao chão, era o resultado disso.
“Luísa… oh, Luísa… tanto te esperei!...”
Continua

22/11/2008

Maldita droga!

Os pássaros grandes, quando intentam urdir um ninheiro, não têm comiseração de qualquer espécie.
Maldita droga!

Tenho tanta pena de não te conseguir dar a mão!
Tenho tanta pena de que a droga seja o teu pão!
Tenho tanta pena de que, quando te ia conseguindo a recuperação, a tua mãe não tenha permitido, dizendo que não ia deixar o filho recluso num Eremitério, sem poder ter a família por perto. No entanto, agora que a começaste a odiar, lavou de ti as mãos!
Essa aleivosia empurrou-te para as ruínas da cidade, onde te perdes numa infinitude de delinquência e miséria.

Lembras-te Tó, quando eras ainda um miúdo no último ano da catequese, e no grupo te indagámos se era verdade que fumavas charros?
Nem sequer te remeteste ao silêncio. Negaste. E soubeste tão bem negar, com um tão grande misticismo, que todos fingimos acreditar. Mas fiquei de olho em ti.
O teu pai chegou a falar-me da tua inteligência como uma enorme preciosidade. E eu sei que assim era. Mas começaste a fumar cada vez mais e foste enredado totalmente nas malhas dessa teia impiedosa.

Quando ainda estarias a tempo, sabes bem como demos os passos necessários a que mudasses de ares, para te libertares desse vício assassino… mas à última hora, foste levado a não sair de casa. Mais tarde, outros te tentaram ajudar e te conseguiram internar. Mas, esse sincelo que se despenhou e se espetou em ti, já estava por demais enterrado que nunca mais te abandonou.

Tenho tanta pena de não conseguir encontrar o unguento eficaz que te cure as feridas, para que ganhes o ânimo necessário a te libertares desse reino dos mortos vivos!
Maldita droga!

26/10/2008

Cor matinal



Um som estridente ressoou pelo casarão adentro, fazendo rodopiar, num gesto de bailarina, o coração assustado de José Miguel. Ainda de forças quebradas pela noite mal dormida, teve de inventar um grande esforço para se erguer. Transpiravam-lhe as mãos quando rodou a chave na fechadura. Do lado de lá, dois rostos femininos encaram-no com surpresa. Identificam-se. 
– Quem é o senhor? – Pergunta uma das jovens. 
José Miguel fica sem saber que responder, mas consegue dominar a situação e ilude a pergunta. 
– Que desejam? 
– Vimos buscar os meninos. – Percebe uma resposta seca, talvez numa tentativa de cortar pela raiz uma eventual resistência. Então, propõe-se travar aquele propósito sem qualquer capitulação. Estava ali para proteger os seus pequeninos. – A mãe deixou-os sozinhos em casa… 
– Não! – Cortou José Miguel – deixou-os comigo! 
Assim. Com total liberdade. Ninguém lhe arrancaria aquelas pérolas que acabara de encontrar. Por isso ensaia o acto falaz. – São meus filhos. Nunca permitirei que os levem! 
– Mas a mãe… 
– Já não têm mãe – gemeu. – Não os podem deixar também sem pai… 

Quase desfalecia de dor. José Miguel começava, agora, a entregar-se a um sentimento de inquietação que o rondava, pela ideia de que poderiam querer interná-los num lar de acolhimento de crianças em risco, afinal eram órfãos, e ele um intruso. Mas não existem verdades absolutas. Os sustos e as surpresas surgem sempre repentinamente, revelando o quão ilusória é uma certeza e abstracta uma harmonia. Do mesmo modo, na escuridão pode esplender inesperadamente uma luz, qual galanteio que converte uma amálgama de mágoas em sintonia perfeita de cores e tons. Deste confronto com as Técnicas de Serviço Social vem a nascer nova alma em José Miguel. Luísa vive. Acordou quando todos a julgavam morta. Era ela que as tinha ali mandado.

[Texto enviado
ao 7.º Jogo das 12 Palavras]

03/10/2008

Sombras IV

Desde aquela manhã em que acordara com o bilhete ao seu lado, aquele bilhete manuscrito por aquelas mãos que tinha tido entre as suas, aquele bilhete que ficara como despedida de um amor que parecia não ter fim, desde aquela manhã, que a sua vida tomara um rumo sempre pendente de um acalentado reencontro.

Mergulhou o rosto entre as mãos e abafou os soluços que lhe saltavam do peito. Olhou a foto uma vez mais e percebeu o seu coração a bater pesadamente.

Ai, o coração... como batia forte quando, tímidos, os seus passos o levaram até ela!
Fora ficando fascinado com o seu sorriso, que exalava o perfume das flores abertas ao sol da manhã. Os seus olhos transbordavam lagos verdes de uma perene sedução; os cabelos ondeavam reflexos quentes do sol e todo o seu corpo se movia nessa luz.
Inflamado de paixão e sedento de amor, o seu olhar traiu o que o seu peito encobria. E nesse lume aceso arderam os dois, quando os seus lábios se roçaram...
“Amo-te..." - Ainda ecoava aos seus ouvidos.

- Porque me abandonaste depois da mais bonita noite de amor que me deste? - Soluçava - Senti tanto a tua falta!... Perdi-te... e agora perdi-te para sempre! Fazes-me tanta falta…
Sentia-se inundado por um sentimento de perda irreparável. A esperança que lhe permitira caminhar, toda se esfumara agora como um feitiço quebrado.

O castelo de sonhos que tinha construído desmoronara-se nesse dia em que lhe perdera o rasto. Luísa deixara-o, abandonara-o. Só constatara isso, a muito custo, depois de algumas infrutíferas buscas. Depois acomodara-se. Se era isso que ela queria, tinha que respeitar. Se bem que a esperança, essa, nunca o deixara. Afinal o mundo até nem era assim tão grande.
Seguira com a sua vida. Concluíra o curso e tivera as suas aventuras, mas não se ligara a ninguém. Os seus sonhos residiam na reconstrução daquele castelo desmoronado. Castelo esse que agora se diluía em pó.

Mas, no meio da nuvem de poeira negra, brilhavam duas pedras preciosas que não sabia que existiam. Agora arrancaria força dos escombros do seu peito para, com elas, alicerçar um novo e dourado castelo.

23/09/2008

Pétalas murchas


Chama-se Rosa. No seu nome, uma ténue semelhança com a sua vida – nos espinhos que uma e outra possuem. Ela bem que se rodeia de flores que lhe ornamentam o jardim e toda a casa, e que em cada manhã, ainda mal desponta o sol, ela cuida com carinho, colocando água nas suas raízes, e falando com elas como se fossem suas filhas. Mas toda a sua vida foi um movimento constante à procura de um método eficaz de alcançar um farol, ou mesmo um luar que lhe alumiasse a escuridão.

Bem cedo, quase criança ainda, a custo obteve licença dos pais para fazer uma viagem a outro país, à procura da felicidade que tardava em chegar. Mas regressou, passados poucos anos, com o corpo amortecido e pena no olhar. A felicidade não estava lá!

Num Verão cheio de azul experimenta um desconhecido sobressalto no peito ao conhecer um nefelibata que virá a ser o seu marido – um copinho de leite que nunca deixará as saias da mãe. Sentindo-se inundar por um sentimento avassalador, Rosa foi-se deixando levar na conversa deste menino da cidade e, passado algum tempo, uma sombra a vem trespassar ao perceber que se encontra grávida. Essa vulnerabilidade arrasta-a para um casamento a todo o vapor que a vai afastar da família e, lentamente, mergulhar num ostracismo do qual só com algum esforço se libertará.

Comungar difícil este, entre uma rapariga do campo e um moço da cidade. Lisboa é um degrau que a faz mergulhar de cabeça num imenso mar desconhecido.

É num apartamento, porta com porta com o dos pais dele, que se sente como que encerrada dentro duma caixa, de manhã à noite, enquanto ele sai para trazer, ao fim do mês, algum dinheiro para as despesas dos dois e do bebé que vem a caminho. Mas o maldito dinheiro mais parece ter-se erodido. Acaba por descobrir, mais tarde, que afinal os ordenados que ele diz ter em atraso já foram gastos a pagar as compras da mamã. Começa aqui a tempestade que vai provocando o distanciamento, rumo à morte de um amor que se foi tornando a fusão de um céu com um inferno. Luís nunca se libertará da mãe e Rosa nunca conseguirá penetrar esse casulo e, por mais que se esforce, não se consegue adaptar a essa vida. Assim, aos poucos, isso vai-se tornando numa enorme obstrução àquela vida a dois.

José nasce com estas linhas a delimitar o seu meio envolvente, e é ele o exponente que permite a Rosa emergir da loucura que já começava a apoderar-se dela. É por ele que, uns meses depois, decide regressar à terra, àquela tapeçaria de luz e cor, de cujo orvalho tanta falta sente. Luís, se os amar, acompanhá-los-á, pensa.

Com a promessa de que se mudaria definitivamente para a aldeia, Luís começa a passar com a esposa e o filho todos os fins-de-semana. Tudo parece bem encaminhado. De cada vez que estão juntos a paixão parece embriagá-los, o amor que os une parece derretê-los como se fossem chocolate.

Mas chega uma altura em que o que era certo começou a ser variável, e o que parecia ser, deixou de parecer. Luís alega afazeres que o retém na cidade e Rosa sabe que a silhueta da mamã nunca o largará. Mas ainda não sabe tudo. Um pressentimento avisador e conselheiro leva-a a procurar vasculhar o que porventura se passará.

E descobre. Mas descobre tarde demais. É como se um raio a fulminasse na vertical. O marido tem um amante. Um homem que vive com ele na sua casa, que partilha com ele a cama que era a sua. E sente-se conspurcada com esse lodo que lhe penetra a pele, a carne, as entranhas. E sente-se de repente atravessar por uma náusea que lhe arranca o coração, quando o marido, de rosto lívido como a cal, lhe confessa ainda mais.

E agora, é de cotovelo apoiado no parapeito da janela, e de mão sustentando a cara, que pensa no que há-de ser a sua vida, a partir do momento em que se tornou numa rosácea de pétalas murchas. Aquele momento em que recebeu a confirmação do já esperado. A confirmação de que contraiu HIV.

(baseado em casos reais)

04/09/2008

Os olhos que me vêem

Os olhos são de uma transparência igual à da água cristalina de um lago azul.
Lembro-me bem de me ter sido tirada esta foto que agora encontro na gaveta da cómoda.
Gosto de remexer nas gavetas. Estas têm sempre coisas interessantes que me atraem, que espicaçam a minha curiosidade. E esta sala, ao lado do quarto dos pais, é uma tentação.
Tinha vestida uma saia branca, às pregas. Tão linda! Ainda deve andar por aí nalguma gaveta. Vou ter de a procurar...
Ai... os sapatos!... recordo... já estavam apertados. Chorei porque não os queria calçar. Aleijavam-me - os pais pensam que sou sempre pequenina - mas fiquei bonita com eles.
Teria uns cinco anos. Os cabelos loiros, muito encaracolados. O padrinho até me pintou num quadro que está ao pé do rádio. Às vezes perco-me a olhar para ele, porque me prende a atenção o cabelo tão amarelo! Até me custa a acreditar que seja mesmo eu. Mas sou.
É que os olhos dos outros vêem-nos sempre de maneira diferente do que os nossos a nós próprios.

(Publicado em livro: Memória Alada, 2011)

14/08/2008

Marcas… de água

A avó foi sempre uma mulher muito religiosa. Com ela aprendi, muito cedo, muita da doutrina que só iria aprender, mais tarde, na catequese. Agora, que já sou mais crescida, começou a falar comigo de mulher para mulher. Eu, ainda um pouco envergonhada pelo que ela me conta e ensina, começo já a sentir-me uma rapariga crescida. Nunca a mãe ousou falar comigo destes assuntos de mulheres. As coisas que ela já me contou! Nem sei se deva reproduzir tudo, pois são coisas de me fazer corar. Se a mãe sabe pode ficar aborrecida, com o génio que tem! Mas a avó diz que eu tenho que saber estas coisas, que são muito importantes para uma mulher. Ela contou-me que há meninas com a minha idade que já são mulheres e que eu também posso ser brevemente. Ser mulher quer dizer que irei ter a menstruação uma vez por mês. Esta é um sangramento que indica que o meu corpo está preparado para poder vir a ter filhos. Por isso, não me convém que eu brinque com os rapazes, porque as mulheres devem ser recatadas, e eles não têm que saber nada disto.
Ela contou-me que, no seu tempo, as meninas não sabiam de nada e eram apanhadas de surpresa quando sangravam pela primeira vez e algumas ficavam aterrorizadas a pensar que iam morrer. Mas com ela foi diferente. Contou-me que foi mulher muito tarde. Tinha quase vinte anos, já namorava até o avô, e menstruação nada. Foi preciso ir para a praia, no Verão, durante quinze dias. Lá, um banheiro dava-lhe banho no mar todos os dias logo pela manhã, que ela até engolia uns pirolitos. Como eu não sabia o que eram pirolitos, ela explicou. O que me lembrou o que um amigo das minhas outras duas primas também há dias me fez.

Estas minhas primas, a Graciete e a Sílvia, são filhas da minha tia Rosária, irmã da minha mãe. Alguns domingos, depois da missa, fico com elas toda a tarde. Num destes domingos fui com elas e os tios à praia. E foi lá que encontraram o tal amigo. Este queria brincar a empurrá-las para dentro das ondas. Elas fugiam e como ele não as apanhava, fui eu que paguei. Pegou em mim ao colo e mergulhou-me numa onda enorme. Como eu não estava a contar, engoli muita daquela água salgada, não só pela boca mas também pelo nariz, que até me engasguei toda. É isso que é engolir um pirolito.

Com os banhos na água do mar, a avó ficou, finalmente, menstruada pela primeira vez. Diz que sangrou tanto que a melhor solução que encontrou foi a de vestir umas ceroulas do pai dela, porque diz que no seu tempo as mulheres não usavam cuecas. Perante a minha cara de espanto, ela pareceu-me um pouco embaraçada, mas lá foi contando que as saias eram compridas e que usavam uns saiotes que, nessas alturas, enrolavam às pernas presos com um alfinete.
Pronto, não me parece que deva entrar em mais pormenores. Mas que ela me tem ensinado muito... isso tem!

(Publicado em livro: Memória Alada, 2011)

12/08/2008

Marcas

Chegaram as férias grandes. No meu rosto quase não restam cicatrizes muito visíveis. Já nem penso muito nelas, pois não são mais do que pequenas marcas que, mais ou menos perceptíveis, sempre ficam de qualquer acontecimento ou experiência.

Agora passo uma boa parte do dia em casa da avó e, às vezes, até lá passo a noite, na cama de ferro que está na casa de fora. Numa destas noites, parecia-me que a cama se elevava muito alta e me levava a flutuar junto ao tecto. Aflita, chamei pela avó. Esta veio e disse que era febre que eu tinha. Colocou-me na testa um pano molhado com água fria e, dali a pouco, trouxe chá de folhas de laranjeira, que me deu a beber quente, e fez-me deitar novamente, bem abafada. De madrugada acordei a transpirar e a febre passou. A avó disse que a apanhei por ter andado com a cabeça ao sol.

A casa da avó é pequenina. Tem uma cozinha, um quarto e a casa de fora. Tem, ainda, um alpendre onde me lembro que o avô passava as tardes, sentado numa cadeira.
Só a casa de fora é que é a divisão mais ampla. O seu mobiliário consiste numa mesa de centro, quadrada, e quatro cadeiras; uma cómoda, que o pai fez quando ainda só tinha treze anos – contou ele; e a cama de ferro, no canto ao pé da janela e, junto a esta, a máquina de costura, com a sua mesa de ferro rendado.
Da casa de fora para a cozinha, ao lado da parede do quarto, tem três degraus de madeira, onde gosto sempre de me sentar a ver a avó fazer a sua lida. Ela faz a sopa numa panela preta, sobre uma grossa trempe de ferro, colocada por cima do lume, no borralho. Este fica no canto, ao meu lado direito. Por cima do borralho tem a chaminé, apoiada em duas grossas vigas de madeira, sustidas pelo moirão, também ele de madeira grossa. A guarnecer a cozinha tem uma cimalha pela parede fora, em jeito de cantareira, onde a avó coloca os pratos e a outra loiça mais bonita; a pender do tecto, presa com quatro arames, uma tábua comprida onde a avó acomoda a broa.

Contou o pai que, quando era pequeno, certa vez apanhou a avó fora de casa e fritou carne numa sertã que tinha quatro bicos. Só que, entretanto, e ainda sem a ter comido, pressentiu que a avó vinha a chegar e, a toda a pressa, subiu a um banco para esconder a frigideira em cima dessa tábua. Aconteceu que o molho estava muito quente e escorreu-lhe, por um dos bicos da sertã, para a cara, queimando-a toda. Foi então deitar-se na cama, todo tapado com as mantas. A avó foi lá dar com ele e, coitado, ainda apanhou uma tareia, para além das dores que sentia na cara, toda esfolada. Ninguém o mandou ser guloso…

O resto do mobiliário da cozinha compõe-se de uma mesa, em frente às escadas, no canto atrás da porta que dá para o alpendre, onde a avó lava a loiça; outra mesa baixa, ao lado, com um banco e uma cadeirinha de madeira, ao pé, onde se tomam as refeições; uma bancada comprida, por baixo da cimalha; e, encostado à parede, entre as escadas e o borralho, está um armário que tem Santinhos em cima.

No fim do almoço, a avó faz-me rezar com ela, viradas para os Santinhos, a dar graças a Deus pelo alimento que tomámos. Depois, obriga-me a dormir a sesta, fechada no quarto dela. É claro que eu, às vezes, não tenho sono e, por isso, não quero dormir, mas ela tenta convencer-me dizendo que é para dar o repouso ao comer. Tem que ser, senão ela ameaça com os gaifarros. Eu finjo que acredito. Pensa ela que me engana, como quando eu era mais pequena. Então, ia ela do lado de fora da pequena janela do quarto e fazia um barulho com as mãos nos vidros, a fingir que eram os tais gaifarros, para me amedrontar e ver se eu sossegava, mas eu comecei a perceber que era ela. Agora, tal como dantes, são mais as vezes em que, sem que ela dê conta, abro esta janelinha, que dá para o alpendre, e me escapo para o exterior. É tão mais agradável brincar na rua, do que estar fechada no quarto, a ver as aranhas a tecerem as suas cortinas no tecto.

05/08/2008

Prova final

Hoje foi o meu exame da quarta. Não foi na minha escola, mas numa da sede do concelho, ao lado da Casa da Criança, onde está uma estátua dum rapazinho a tocar uma trombeta longa.
De manhã, uma prova escrita parecida com as que estava habituada a fazer e, de tarde, a oral. Não achei nada difícil, pois correu-me muito bem. Não dei erros no ditado e acertei todos os problemas. Fiquei aprovada, claro, nem outra coisa estava à espera, depois de tanto esforço despendido! Fiquei a saber que um dos professores é amigo de um dos meus irmãos, pois quando ele viu o meu nome, perguntou-me se eu seria a sua irmã. E conheci uma menina, a Joana, que me disse que ia estudar para o Ciclo e me perguntou se eu também iria. Respondi que não sabia, que o meu pai é que mandava. Então ela insistiu com o meu pai e ele disse que ia pensar no assunto. Estou com esperança de que ele me deixe ir, uma vez que já lá teria uma amiga.

No fim da oral o pai trouxe-me ao parque infantil.
O parque infantil fica no jardim da Várzea e é muito bonito. Tem canteiros de flores no meio de grandes relvados e é coberto de grandes árvores que fazem sombras fresquinhas. De um dos seus lados corre o rio que passa debaixo da ponte.
É a primeira vez que me aventuro no escorrega e nos cavalinhos de roda. Um baloiço, esse já tinha experimentado. Os manos fizeram-me um, na figueira ao pé da eira, e posso balançar-me nele, sempre que me apeteça, durante as tardes depois da escola, desfrutando da sombra da árvore, enquanto me delicio a observar os pardalitos que trabucam nos seus ramos.
Um após outro, experimento os brinquedos novos, entranhando os pés na areia, com a sofreguidão de querer eternizar estes momentos, neste lugar que me parece ser o remate de uma etapa e, ao mesmo tempo, me indicia um universo por descobrir.

29/07/2008

Cicatrizes

Ainda meio fechada num casulo, recém-repatriada de um país envolto em vapor, qual nefelibata votada ao ostracismo, sou chamada à realidade pela professora.
A dona Conceição enceta uma conversa que, a mim, me irá fazer enfrentar algum inferno ainda pendente. Esta propõe aos alunos das duas classes, terceira e quarta, que façam uma redacção sobre uma possível futura profissão, igual para todos. Médico(a). Pressupondo que virá a ser esta a nossa profissão, é sobre ela que vamos ter que escrever, como trabalho para casa.

Chegada a casa, tranco-me no quarto e começo a dar largas à fantasia, colocando-me na pele de uma médica e percorrendo mentalmente espaços que se me tornaram familiares, moldando-os a mim com uma nesga de ilusão.

Se eu fosse médica teria um consultório, bem montado, com todos os medicamentos para tratar os meus doentes. Tratá-los-ia, a todos, com deveres de uma boa médica…

Suspendo a escrita. As lágrimas afloram e temo inundar a folha branca ao verter o meu pranto. É que as minhas cicatrizes não são algo subjectivo ou variável. Estão bem visíveis. São marcas indeléveis que me deformam o rosto, depois das feridas fechadas.
Com um breve movimento de cabeça, tento sacudir estas sombras que se projectam sobre mim em queda vertical. Se eu, um dia, viesse a ser médica, quem sabe, conseguiria curar-me a mim própria, removendo estas cicatrizes que me amargam na carne e na alma…
É sobre isso que vou ter que escrever, pois vou sofrendo os meus dias na expectativa de recuperar completamente, de que todas as marcas se desfaçam como a escuridão ao ser trespassada por um luar radioso.

Uma página de Memória Alada

[Texto enviado ao 5.º Jogo das 12 Palavras - Texto IX]



15/07/2008

Neblinas IIII

Estou de volta aos bancos da escola, mas agora a realidade é um pouco diferente. Todos os meus desejos e anseios se resumem a apanhar os colegas na matéria dada e a que eu não assisti. Nada seria mais frustrante para mim do que o não conseguir fazer a quarta classe. Nem os risos de zombaria dos colegas, perante o meu rosto de palhaço, me conseguem tornar numa criança excluída. É verdade que a minha cara ainda não está curada. Ainda está feia, pintada de vermelho, com algumas feridas que ainda exigem curativo. Mas nunca pensei que os colegas pudessem fazer troça de mim por causa disso. Mas fazem. Sou o alvo da chacota deles. Divertem-se assim à minha custa. Mas não faz mal. O meu mundo de fantasias vê apenas crianças sorrindo, quais marionetas manipuladas por homenzinhos, a dançar em torno de versos imaginários. Ultrapasso, assim, todo o contexto da dor causadora de algum desequilíbrio. Fecho os olhos da alma ao frio e à miséria em que me poderia ver envolta e chego, rapidamente, por etapas sucessivas, de um ponto a outro quer na Gramática ou na Escrita, quer na Geografia, na Aritmética ou na História. Bem, na História nem tanto, mas na Aritmética ninguém me supera!
Nesta altura, por muito que me perturbe o meu inglório aspecto físico e o medo da rejeição, mesmo com crises de choro e de algum isolamento, os meus pensamentos procuram outras coisas que me fazem sentir bem: os dentes brancos sem cáries, os cabelos loiros e fartos e a natural inteligência. A minha inteligência, esta sim, é para mim o maior motivo de satisfação. É ela que me permite ultrapassar todos os obstáculos e dar uma volta completa aos contratempos.
Os colegas hão-de acabar por perceber que o meu aspecto exterior não me afectou por dentro. Pois, muito embora me fiquem as cicatrizes, as neblinas, essas, estão agora nos colegas e não em mim!

11/07/2008

Neblinas III

Passou o escuro da noite.
Os raios de sol do meio-dia vêm agora, como presente de Deus, envolver com toda a sua magia este ser triste e vago, e ajudar, já não a camuflar uma dor, mas a despertar a sua consciência em todo o seu esplendor.

Os dias têm dado lugar às semanas, estruturando um viver em que eu, qual flor de pétalas murchas, de sorriso tisnado nos lábios, tenho procurado, com alguma garra, buscar uma realidade escondida.
Melhor do que toda a sabedoria humana, essa realidade se me apresenta agora leve e simples.
Afinal, nada seria mais fácil de me ter sido fatal. O que aconteceu só pode ter sido obra de um descuido. Não. Não fechei a janela. Abri a porta. Esta, porque abre para trás, foi violentamente empurrada pela deslocação do ar, levando-me junto com ela, acabando por me fazer morder o pó da beira do caminho.

Agora poderei voltar a ser a menina de sempre, alegre e mimosa, uma vez que o pesadelo que me tem aterrado se evaporou, como neblina dissipada pelo sol.


(Publicado em livro: Memória Alada, 2011, pág. 24)

06/07/2008

Neblinas II

Estava calor. Sentada no banco direito da frente, abri o vidro da janela e esperei. O pai demorava a chegar e eu estava ansiosa para sair. Um passeio de carro é muito apetecível para mim, que todos os dias tenho de ir para a escola a pé.

O meu primeiro sobrinho tinha nascido e eu e o pai íamos vê-lo. A mãe já lá tinha ido e disse que o menino era tão lindo e pequenino. O meu interesse não era ver o bebé que, supunha, iria usurpar uma parte das atenções que deveriam ser para mim. Aliás, eu nem iria ser capaz de o agarrar ao colo. Nunca tinha pegado num bebé ao colo, com certeza não iria ser agora. O meu interesse era mesmo pelo passeio de carro. Esse, sim, era o motivo da minha ansiedade. Eram tão poucas as vezes que eu podia viajar no banco da frente que me sentia inquieta.

Finalmente o pai chegou e pôs o carro em andamento. Começava a aventura para mim.
À medida que a velocidade aumentava o vento ia fazendo esvoaçar cada vez mais os meus cabelos compridos. Decidi fechar um pouco a janela e…

Neste momento percebo que a neblina se quer dissipar...


(Publicado em livro: Memória Alada, 2011, pág. 23)

24/06/2008

Neblinas I

Era domingo à tarde. Um domingo igual a muitos outros domingos, aquele em que mergulhei neste lodo em que me sinto atolada.

Ainda não sei muito bem como aconteceu. Todo o meu corpo se encontra ainda dorido. Deitada nesta cama de hospital, tento vasculhar a minha memória à procura de um ponto de referência, uma luz que me ilumine sobre o momento em que tudo ocorreu.
Recordo-me de entrar no carro do pai, o Fiat 1100...
- Querida, não te mexas! Dói-te a cabeça? – Pergunta-me a enfermeira acabando de entrar no quarto.
Respondo que não, a cabeça não... O que me dói mais é o braço.
O braço esquerdo foi partido pelo cotovelo. E o rosto... Não sei como está o meu rosto. Sinto-o seco e repuxado em alguns sítios, noutros parece-me húmido, mas não posso mexer-lhe para verificar.
A enfermeira faz novamente o curativo, usando o mesmo método de sempre: lava-o suavemente com uma compressa embebida em água morna e aplica uma tintura vermelha. A minha cara deve ficar parecida com uma rosácea, de tão pintada! Se me olhasse ao espelho, acho que teria um sobressalto, ao reparar na figura que devo estar a fazer.
- Querida, não te dói mesmo a cabeça?
Respondo outra vez que não.
A enfermeira sai do quarto e deixa-me de novo com os meus pensamentos.

Ontem os pais vieram-me visitar e trouxeram-me um bolo. E a enfermeira, ao ver, zangou-se com eles, porque eu não podia estar a comê-lo. Ainda ouvi falar em fractura de crânio... mas, a sério que não me dói a cabeça. E, se doesse, se calhar eu também não diria nada, com medo que me operassem...
Mas, agora, é preciso que eu procure as raízes desta loucura que não me deixa recordar tudo o que se passou.
Lembro-me que, após o acidente, vi o rosto do pai branco como a cal. Só não me consigo recordar como é que fui cair do carro em andamento. Essas lembranças ainda estão no fundo da minha memória, mas sei que, aos poucos, irão emergir.

[Texto enviado ao 4.º Jogo das 12 Palavras - Texto 22]
E
(Publicado em: Memória Alada, 2011)

27/04/2008

[7] Espelho meu...

Hoje o pai levou-me ao cabeleireiro. E comprou-me uma calça comprida e uma camisola com comboios na frente.
A mãe barafustou. Isso eram ares que se dessem à garota? "Olhem para esse cabelo! Não era muito mais lindo como estava? Era preciso ir gastar dinheiro à cabeleireira para lhe fazerem uma coisa destas? Eu não lho tenho arredondado sempre? E as calças!? Onde é que já se viu uma cachopa de calças? Tu não tens juízo nenhum... é por essas e por outras que..."
Fechei-me no meu quarto à espera que se calassem.
O pai é mais novo do que a mãe. Não em idade, mas em ideias, na maneira de ser e de viver. Se calhar por conhecer e falar com tantas pessoas. Quando sai gosta de ir bem vestido e engravatado e de corrente do relógio à cintura. E tem orgulho em me apresentar aos seus conhecidos.
A mãe é antiquada. Não tem gostos. Mais parece minha avó. Só me quer vestir com os vestidos de chita que ela própria costura.
Mas quando eu era mais pequenina era uma princesa. Ouço contar que, quando ainda mal falava, o tio do Brasil, quando cá veio, me trouxe um casaco de crochê branquinho, que fez a inveja da minha vizinha:
- Eh cachopa, pareces um Bispo!!!
Quando alguém me perguntava o que ela me tinha chamado, eu respondia "O Bico! O Bico!"
Dizem-me que eu era uma menina "nas mãos das bruxas"...
Eu não sei muito bem o que isto quer dizer, mas penso que é por eu ser a única criança pequena da família toda. As bruxas devem ser as minhas três primas, que são raparigas crescidas que já vão para a "Borda d'Água", e que gostavam muito de andar sempre comigo ao colo.

Já não estou a ouvir vozes. É altura de ir ao quarto dos pais ver se estou bonita!
Neste quarto há dois espelhos grandes, um no guarda vestidos, de um lado da cama e outro no peciché, do outro lado, um em frente do outro. É aqui que gosto de me mirar!
"Espelho meu, espelho meu, haverá alguém com um sorriso tão lindo como o meu?!"

É o pai que me tem ensinado a ser vaidosa. Para desespero da mãe.

(Publicado em: Memória Alada, 2011)

06/04/2008

[6] À descoberta

A luz que se escapa pelas frinchas da porta do quarto não chega ao quarto dos pais, que fica no outro extremo da casa. Por isso não corro o risco de ser surpreendida acordada.
Desse modo, devoro o livro, à luz do candeeiro, e nem dou pela noite passar.
Uma das vantagens de se ter irmãos, rapazes, mais velhos, é a de ter acesso a livros que, uma menina da minha idade, de outro modo não teria.
Durante o dia, com eles fora, dou por mim a vasculhar-lhes as prateleiras. Estas são uma tentação para a minha curiosidade. Paulo e Paládia, Amor de Perdição - arregalo os olhos - e tantos e tantos outros...
Vou levando um a um, que não descanso enquanto não leio o mais rapidamente que consigo.
A par da leitura, a imaginação vai voando para a terra dos sonhos e é como se flutuasse num balão colorido à procura do Arco-íris.
Já começa a clarear quando me proponho, finalmente, começar a dormir.
O chilrear dos passaritos é a música que me embala o sono...

(Publicado em: Memória Alada, 2011, pág. 18)

01/04/2008

[5] Tempestade

Nos vitrais, a chuva embate com alguma violência.
Colo o rosto à janela e sorvo o ar pálido da noite.
Vindo da cozinha, atravessando a parede do quardo, o crepitar da lareira e o tilintar da loiça que a mãe lava no alguidar.
Estas noites rasgadas pela ventania conjugam sonhos que vão esvoaçando.
As cortinas de chuva ocultam o rapaz do luar, que não ousa sair à rua debaixo do temporal. Decerto estará sentadinho ao borralho, a queimar o feixe das vides que ontem carregava às costas, espetado na forquilha.
A casa da tia, ali mesmo à frente da minha janela embaciada, assim vista de lado e com o seu depósito da água no terraço, é um castelo.
O rapaz do luar lá se resolveu a voar por entre os rochedos das nuvens, montado no seu cavalo alado. Ui, como é veloz! Atrás de si, deixa um rasto luminoso que percebo lá ao longe.
Um trovão!... ponho-me à escuta... um barulho chega até mim através da parede do quarto. Os pais discutem novamente... as vozes alteradas provocam-me um sentimento que não consigo descrever. O meu coração começa a ficar apertado, sufocado, não cabe no peito e quer saltar para fora de mim. Atiro-me de bruços para cima da cama e envolvo o corpo nas cobertas. Começo a soluçar, dando vazão às lágrimas libertadoras. Lembro o conselho da avó, quando lhe confidenciei a amargura do meu coração, "reza, filha, reza...".
É isso que faço, procurando abstrair-me de tudo o mais.
O candeeiro acaba por ficar sem petróleo, a torcida quer apagar-se. A tempestade parece finalmente ter acalmado. E o gato, enroscado no tapete de retalhos que a avó me fez, faz tempo que deixou de passear o rabo pelo meu pé que espreita o soalho, e dorme agora a merecida soneca, depois de ter caçado o ratito que saltou de trás do cadeirado.

(Publicado em: Memória Alada, 2011)

04/01/2008

[4] Inocência

A felicidade é da cor de um céu sem nuvens e tem retido o odor das flores silvestres que se inspira, em tardes soalheiras, ao longo dos pinhais por desbravar; o canto das cigarras e dos grilos imprime-lhe o tom da melodia que sai da boca da criança, que apenas tacteia ao começar a desfolhar o livro da vida.
Oh, como sou feliz ao perscrutar os anelos do coração, os anseios de uma alma que ainda não ousa abrir os olhos!
Voo em meu redor, como uma borboleta mal saída da crisálida. Tudo à minha volta foi feito para mim. É meu.
As primeiras lembranças são marcantes. Permitem a um ser abrir-se ou fechar-se, dar-se ou retrair-se.
A idade da inocência é como o carneirinho da tia a quem ensinei a dar marradinhas.

O carneirinho estava sempre fechado naquele curral ali em baixo, na parte de trás do terraço.
Era de pêlo branquinho, tão pequeno, tão lindo!...
Quando a tia ia levar o almoço ao tio mandava-me para a minha mãe. Mas eu batia o pé e não queria ir. Sentia-me melhor em casa da tia.
- Não podes ficar aqui... tenho que fechar as portas. Olha, só se ficares no curral do carneirito. - Dizia-me a tia, para que eu fosse para minha casa.
- Eu fico com o carneirito. - Respondia decidida.
E a tia fechava-me lá no curral ao pé dele, avisando depois a minha mãe.
O carneirinho aproximava-se de mim e eu, com algum receio, colocava as mãos à frente para me proteger e mandá-lo parar.
- Ai não, não, não, não...
Mas ele batia levemente com a cabeça nas minhas mãos, aprendendo assim a dar as primeiras marradinhas, claro que pelo seu instinto, mas também pela força do meu gesto repetitivo.
E era assim que a minha mãe nos surpreendia.
A beleza destas brincadeiras faz-me acreditar que a inocência anda sempre de mãos dadas com a felicidade.

(Publicado em livro: Memória Alada, 2011, pág. 14)

poderá também gostar de:

Mais Rabiscos