26/10/2008

Cor matinal



Um som estridente ressoou pelo casarão adentro, fazendo rodopiar, num gesto de bailarina, o coração assustado de José Miguel. Ainda de forças quebradas pela noite mal dormida, teve de inventar um grande esforço para se erguer. Transpiravam-lhe as mãos quando rodou a chave na fechadura. Do lado de lá, dois rostos femininos encaram-no com surpresa. Identificam-se. 
– Quem é o senhor? – Pergunta uma das jovens. 
José Miguel fica sem saber que responder, mas consegue dominar a situação e ilude a pergunta. 
– Que desejam? 
– Vimos buscar os meninos. – Percebe uma resposta seca, talvez numa tentativa de cortar pela raiz uma eventual resistência. Então, propõe-se travar aquele propósito sem qualquer capitulação. Estava ali para proteger os seus pequeninos. – A mãe deixou-os sozinhos em casa… 
– Não! – Cortou José Miguel – deixou-os comigo! 
Assim. Com total liberdade. Ninguém lhe arrancaria aquelas pérolas que acabara de encontrar. Por isso ensaia o acto falaz. – São meus filhos. Nunca permitirei que os levem! 
– Mas a mãe… 
– Já não têm mãe – gemeu. – Não os podem deixar também sem pai… 

Quase desfalecia de dor. José Miguel começava, agora, a entregar-se a um sentimento de inquietação que o rondava, pela ideia de que poderiam querer interná-los num lar de acolhimento de crianças em risco, afinal eram órfãos, e ele um intruso. Mas não existem verdades absolutas. Os sustos e as surpresas surgem sempre repentinamente, revelando o quão ilusória é uma certeza e abstracta uma harmonia. Do mesmo modo, na escuridão pode esplender inesperadamente uma luz, qual galanteio que converte uma amálgama de mágoas em sintonia perfeita de cores e tons. Deste confronto com as Técnicas de Serviço Social vem a nascer nova alma em José Miguel. Luísa vive. Acordou quando todos a julgavam morta. Era ela que as tinha ali mandado.

[Texto enviado
ao 7.º Jogo das 12 Palavras]

18 comentários:

antonio ganhão disse...

Pois o jogo resultou num bom texto, duma saga a seguir. Lá pelo meu sítio iniciei uma nova série.

LuisaB disse...

OLá amiga
Que lindo texto e promete pelo enredo demonstrado, dará certamente um belo enredo de livro pela parte tocante dos orfãos e a parte social como instituição e os medos ,fantasmas, que tal acarreta para quem lá vai parar.
Boa continuação de escrita ...
Beijinhos e abracinhos

O Profeta disse...

Adoro as tuas ficções...

Doce beijo

Justine disse...

A tua imaginação é mesmo um cavalo à solta, que me contagia com a sua exuberância.
Há continuação??

Tiago R Cardoso disse...

belíssimo texto...

Cris disse...

ó Fá,

faz-me um favor grande e com certeza que não será só a mim que o farás: publica o livro com a história toda!
É que custa estar tanto tempo à espera do resto!
Eu estou sempre a dizer que escreves bem, que cativas o leitor, que as tuas histórias são mais que interessantes. Faz mais, sonha mais, tenta ir mais além.

Beijinhos

P.S. Espero conhecer-te no lançamento do livro 22 olhares

Luna disse...

Nada na vida é preto no branco, a verdade é sempre dubia
beijinhos

Luis Ferreira disse...

Uma excelente ficção para acompanhar.

Adorei ler

Parabéns

Luis

**Viver a Alma** disse...

Salvé amiga
Passando e deixando um beijo. Ainda não estou em pleno depois desta paragem forçada sem computador. Agora vou vendo no google o que posso salvar, porque o disco foi-se e também agora a "partid do Fonfon, deixou-me um tanto abalada, porque nada previa....ele estava bem..devia ter comido algumas ervas no terreno. Parecia dormindo... fui dar com ele de manhã debaixo do carrinho com flores...enfim, nenhum Ser se mantém sempre nesta densidade...
Posso porque razão colocou fundo preto na sua página?...Parece ser a côr que a maioria adoptou para mudar o visual dos seus blogs....

MAriz

- R y k @ r d o - disse...

Um belo conto que gostei de ler. O meu elogio
.
Saudações poéticas.
.

Ane disse...

Gostei de ler, fiquei com pena de José Miguel e dos meninos,
tomara que fiquem bem! E há muitos assim por aí...

Ane/De Outro Mundo :)

Crônicas de Areia disse...

Bom dia, Fá.
Tornou-se um tanto complicado para mim esse comentário, justamente por não conhecer a obra toda, mas vou reparar meu erro.
Mas o que se mostrou é uma história densa e que mexe com crianças e questões sociais, que são sempre complexas, ainda mais quando envolve adoção.
O enredo envolve e nos puxa, e isso é muito bom.

Abraços, Fá.

Marcio

Anónimo disse...

Olá Fá
Adorei te ler mais uma vez.
Você tem muito talento pra esse gênero literário.
Parabéns.
Abraços.

Jeanne Geyer disse...

Muito bom mesmo, não sei como funcionam estes jogos, mas tens o dom da escrita, gostei muito. Beijos
https://enfimsetenta.blogspot.com/

Kinga K. disse...

Siempre se debe ver la luz desde la oscuridad...

Ana Freire disse...

Mas que grande volte-face, na situação... mesmo no final do texto!
Adorei ler, Fá! Um texto genial, que nos prende a atenção, do princípio ao fim... literalmente! E que nos proporciona um certo conforto! Precisamos de finais felizes, nesta fase caótica que o mundo atravessa!
Um beijinho grande! Feliz Primavera e um bom fim de semana... hoje já em fuso horário de Verão, para meu contentamento! Finalmente os dias parece que rendem bem mais...
Ana

Porventura escrevo disse...

Concordo
É preciso mestria para dar a volta ao texto assim
🙂

Mariete Salema disse...

Escrever prosa não é fácil. É preciso elevada imaginação. Estou a gostar muito de ler as suas histórias

Feliz terça feira

ilusões em poesia intima- - - poesia sem vernáculo
***

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