20/05/2009

As meias das cerejinhas

Ganhei, do pai, umas meias, até à curva da perna, com umas bolinhas penduradas de lado que parecem duas cerejas. Há que tempos que eu as desejava. Já tinha sorrido para elas... e elas para mim, através da montra. Até já tinha começado a poupar para elas, deixando de comprar daquelas farturas deliciosas, polvilhadas de açúcar e canela, que a dona Mariazinha vem vender ao portão do colégio, e também das saborosíssimas sandes de fiambre fininho, que eu nunca tinha provado na vida antes de vir estudar para a vila. Mas hoje o pai comprou-me as benditas meias. Comprou porque eu as ganhei. Foi a minha recompensa por ser uma menina corajosa.
Às vezes tem que se ser corajosa à força. E foi o que me aconteceu no sábado passado, à tarde. O pai levou-me com ele a Coimbra… quer dizer, não levou, ou melhor, não chegámos lá, porque o carro avariou pelo caminho. E aqui entra a minha coragem forçada: o carro ficou na beira da estrada comigo lá dentro, enquanto o pai foi procurar ajuda.
Disse-me que tinha que ficar ali porque não me podia levar, que ficasse sossegada, sem medo, que depois me compraria uma coisa. Pediu a um cantoneiro, que andava ali a limpar as valetas, que fosse olhando por mim e pelo carro, e apanhou boleia à procura de um mecânico. Fiquei ali, a contar os carros que passavam, até lhes perder o conto, e a olhar o senhor a raspar a ervas com a enxada, vendo-o ir-se afastando a pouco e pouco. Uma vez ele veio perguntar-me: “A menina está bem?”, e eu só acenei, com a cabeça, que sim. Devem ter-se passado muitas horas até o pai voltar, pois já estava a começar a ficar chateada e cheia de fome, e a tarde ia bastante avançada quando ele lá apareceu com um senhor, que se pôs de volta do carro até que ele começou a trabalhar.
Depois o pai deu uma gratificação ao cantoneiro e voltámos para casa, mas ainda parámos num café para eu lanchar um bolo e um garoto. Foi uma aventura e tanto! E hoje o pai comprou-me as meias das cerejinhas que eu tanto queria e, também, um casaco comprido. Assim, o carro até pode avariar mais vezes!

15/05/2009

Leituras

A leitura exerce um enorme fascínio sobre mim. Ler permite-me a fuga para um mundo encantado, um mundo onde posso descobrir muito do que a minha curiosidade me pede e que não obtenho de outra maneira. Ler satisfaz-me e inquieta-me. Satisfaz-me porque me proporciona momentos de verdadeiro prazer e delírio, ao descobrir coisas novas; inquieta-me porque sinto uma avidez de ler tanta coisa a que não tenho acesso.
Já li quase tudo o que havia em casa para ler; leio o que vou encontrando e pedindo emprestado; leio os livros que vou buscar à biblioteca - àquela carrinha que passa por cá de tempos a tempos, e da qual não me deixam trazer todos os livros que quero, nem dos que quero, só dos da fita verde – mas leio também os que o meu amigo Zeca traz; leio outros que ele me empresta, do Tio Patinhas e de outros heróis de Banda Desenhada, se bem que alguns não fazem muito o meu género, mas à falta de outros, é melhor do que nada; leio também as revistas de fotonovelas e a Crónica que a minha amiga Manuela compra quase todas as semanas e me empresta, mas leio às escondidas, porque tenho medo que o pai me veja ler essas coisas… não é por nada, que acho que não faço mal nenhum, até porque já fiz onze anos, mas ele pode não compreender e ralhar comigo com aquela sua voz de trovão que me faz encolher toda.
E é claro que também leio os livros da escola, mas esses é por obrigação, apesar de quase nem precisar de os ler, pois o que percebo nas aulas quase me basta para apreender a matéria e tirar boas notas.
Há dias encontrei uns livros antigos do pai e, entre eles, uma Bíblia que tem feito as minhas delícias. Tenho vindo a lê-la, aos poucos, desde o seu início, enquanto a mãe me espreita no quarto, ficando a pensar que estou a estudar. Ela até diz às vizinhas que tem uma filha que não faz mais nada senão estudar, que não puxa para fazer mais nadinha; vê outras meninas da minha idade que fazem tudo em casa às mães, mas eu, que não sabe a quem é que eu saí…

(Publicado em: Memória Alada, 2011)

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