20/10/2009

Tatuagens Escondidas [3]

- "À meia noite se levanta o francês; sabe das horas mas não sabe do mês."
- Quem é o francês, avô?
- Vá, adivinha!
Assim me arreliava o avô, com as adivinhas que me propunha e que eu nunca adivinhava à primeira. E também:
- Escreve: onsamimedia.
- Como é que isso se escreve?
E ele dizia letra por letra "o-n-s-a-m-i-m-e-d-i-a".
O avô tinha sido professor quando ainda não havia escolas, e os rapazes daquele tempo vinham lá a casa para aprender a ler e a escrever e a fazer contas, disse-me ele.
- Mas só os rapazes? Então e as meninas aprendiam com quem?
- Só uma ou outra é que vinha cá de vez em quando só para aprender a fazer o nome, porque, a elas, os pais não as mandavam aprender.
- Oh, coitadinhas! Mas porquê?
- Então, aprendiam outras coisas que as mães lhes ensinavam: lavar a roupa, remendar, cozinhar, cozer a broa... para serem boas donas de casa. Vá, já escreveste? Mostra cá! Agora lê ao contrário.
- Ao contrário como, avô?
- Começas da última letra para a primeira.
Custava-me a fazer o exercício, mas lá ia eu:
- Ai-de-mi-mas-no... mas o que é que quer dizer?
- Não leste bem! É: ai-de-mim-as-no!
Mas eu não lia assim porque estava escrito tudo pegado, quando eu achava que para se ler como o avô dizia tinha que estar escrito, pelo menos, em duas palavras: onsa-mimedia. E teimava com o avô que como eu lia é que era. E ele:
- Estás a ver? Não sejas teimosa! É isso que não deves ser: asno; ai de mim asno!
E eu ficava aborrecida, meio amuada.
Era assim que ele brincava comigo de me arreliar. Se calhar, para ver se eu não ficava mais mimada do que já era... (agora já tenho consciência de que era mimada e que ainda sou, mas não o consigo evitar).

Quando o avô morreu, eu nunca tinha tido contacto com a morte de uma pessoa. Nem sequer nunca tinha pensado que o avô pudesse morrer um dia, apesar de ele ser velhinho e ter bronquite - aquela falta de ar que parecia que tinha pintainhos no peito a piar.
Mas ele um dia morreu. E obrigaram-me a dar-lhe um beijo no rosto branco e frio, dentro do caixão.
E eu passei a ter medo da morte e repugnância aos mortos.

(Publicado em: Memória Alada, 2011)

20 comentários:

antonior disse...

E com o tempo aprendemos a necessidade de estar de bem com o Mistério. A viver com a consciência do desconhecido. E a deixar de ter repugnância pelos invólucros que já não possuem conteúdo. São o que são. Um fato que usaram como nós usamos o nosso.

Para enfrentar estas realidades alguns de nós precisamos de ferramentas, de muletas. E há muito quem as fabrique e delas tire proveito. Mas o Mistério é a verdadeira essência do sagrado. Há que o respeitar e amar, até porque dele fazemos parte e ele faz parte de nós. Nada que com ele se relacione é ferramenta ou negócio. Como dizes noutro lado, recebe-se de graça e de graça se dá.

Beijinhos

antonior disse...

Esqueci-me de dizer que respondi aos comentários feitos ao meu post "A PROPÓSITO DE UMA IGUANA", como de costume, na mesma página em que foram colocados.

antonio ganhão disse...

As convenções são por vezes castradoras... nunca percebi esse beijo de morte.

Mas nesses tempos, do teu avô, ao menos as mulheres aprendiam coisas verdadeiramente úteis... ;)

Fá menor disse...

Antonior,
é verdade, com o tempo... mas quantas vezes não fica tudo apenas camuflado com a ajuda dessas muletas que utilizamos! E, de repente, tudo volta a doer outra vez e outra!...
mas há que aceitar esse 'Mistério' como parte de nós.
Já li a tua resposta, lá no teu sítio.
Obrigada.
Beijinhos

A. Brás disse...

Este é um tema sensível. Trata-se de um dos temas mais duros no que toca ao mais profundo e complexo da condição humana. Sobretudo, no que se refere a emoções, sentimentos,... Nem sempre é fácil gerir tudo isso com alguma tranquilidade.
Oro por ti, e para que possas, um dia, chegar a dizer como São Francisco de Assis, no auge da serenidade que só pode brotar da sabedoria, própria dos que foram chamados a serem santos. Olhar para ela e chamá-la de: "a irmã morte".
Saudações missionárias!

Já estamos a seguir também este blog. Mto bonito!

poetaeusou . . . disse...

*
um avô
Mestre-Escola !
,
sensivel homenagem,
parabens,
,
conchinhas,
,
*

Alberto Oliveira disse...

... a pedagogia da vida e da morte. E pelo meio, meninas a "aprenderem" a serem boas donas de casa. Inimaginável hoje em dia. Felizmente.

Beijos e sorrisos.

Daniel disse...

Temos algo em comum.

Meu primeiro contato com a morte foi com a do meu querido avô e também nunca achei que ele fosse morrer, mas ao contrário de você, quando isso aconteceu, eu fiquei a vontade parar lhe beijar e pegar em suas mãos dentro do caixão.

Beijo

Å®t Øf £övë disse...

Fá,
Gosto de ler este tipo de recordações. São recordações doces e ternurentas.
Bjs.

Gabriela Rocha Martins disse...

daí a minha péssima relação com a morte .porque ,como António Lobo Antunes ,considero.a um estúpido acidente natural ,atendendo ao facto de NÓS nascermos para viver e não para morrer

mas como este assunto daria pano para muitas mangas ,fico.me por aqui

com



.
um beijo

rosa dourada/ondina azul disse...

Belas recordações de um avô professor!

Bom Domingo,
te desejo

Bjs,

Luis Ferreira disse...

Mais um excelente texto...

Gosto muito de ler o que por aqui deixas e vais escrevendo.

Com amizade
Luis

Nilson Barcelli disse...

Menorzinha, começando pelo fim...

Quando morreres, vais gostar que a tua família tenha repugnância de ti?

Dantes, os mais velhos gostavam de brincar com os mais novos. Principalmente os avós, porque era habitual os netos nascerem e serem criados (pelo menos até determinada idade) na casa dos avós.
Hoje, histórias tão deliciosas como a que contas aqui são muito raras.

Querida mimada, um beijo.

Unknown disse...

Uma homenagem linda e perfeita a um Avô que foi seguramente um segundo pai.

Quanto ao obrigar a dar um beijo no rosto do Avô já frio, me desculpe a sinceridade, mas acho isso um perfeito disparate.

Beijos devemos dar aos vivos, mima-los e acarinha-los enquanto cá estão, depois de mortos, todos nós dispensamos os beijos.

Beijinhos,
Ana Martins

Ver para crer disse...

Bom tempo em que as crianças tinham tempo para estar com os avós. Agora nem com os pais!!!

*Lisa_B* disse...

Querida amiga,
ando pouco pela net e vou tentando comentar ou responder a quem deixa por lá traços :-)
Hoje dediquei um pouco mais a todos os amigos e estou a passar aqui mais um minutinhos além do normal.
Já tinha saudades dos teus textos...espantosos.
Nada poderei dizer que mude esse sentir porque foi "traumatico " o facto de te forçarem a beijar...
no entanto confesso que o beijo final num rosto gelado nunca se esquece e para quem não estiver habituado é chocante a frieza da pele outrora cálida :-(

Beijinhos meus com carinho.

Rubens da Cunha disse...

belo e triste, como toda grande literatura

Espaço do João disse...

Quem não acredita na morte?
Sómente aqueles que nunca nasceram poderão não acreditar na morte. Se nascemos, vivemos, convivemos com outros, também é natural que um dia vamos estar com eles no mesmo sítio a fazer as nesnas coisas que eles estão a fazer.Nada é mais certo que ela. Estejamos onde estivermos teremos a sua visita. Pensemos antes nos vivos, pois dos outros já não podemos esperar nada.

O Árabe disse...

Assim é, amiga. Nenhuma criança deveria ter contato com a morte; até porque, acima de tudo, a criança é vida! Boa semana, belo texto.

Pena disse...

Oh, Docinho Lindo de Amizade:
Que lindo. Adorável. Terno.
Fez-me comover até às lágrimas.
"...Quando o avô morreu, eu nunca tinha tido contacto com a morte de uma pessoa. Nem sequer nunca tinha pensado que o avô pudesse morrer um dia, apesar dele ser velhinho e ter bronquite - aquela falta de ar que parecia que tinha pintainhos no peito a piar.
Mas ele um dia morreu. E obrigaram-me a dar-lhe um beijo no rosto branco e frio, dentro do caixão.
E eu passei a ter medo da morte e repugnância aos mortos...."

Lindíssimo. Sem palavras.
Beijinhos mil.
Com fascínio e encanto merecidos.
Beijinhos puros de amizade sincera.
Adorei.


pena


Que ternurinha é ter um avô... É Perfeita e doce.
Bem-Haja, extraordinária e sensível amiguinha fabulosa.

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