29/01/2010

Pontos nos i

O sonho foi igual ao de todas as noites. Sonhei que a janela, a mesma janela de sempre, estava fechada e que para lá dela é que era o mundo: lá fora é o mundo e eu fico sempre inquieta enquanto não abro a janela ao sol que por ela me chega. Revolvo-me e não durmo enquanto não acordar.
Quando os mesmos sonhos se sucedem noites a fio passam a ser parte da vida. Quando reclino a cabeça no travesseiro para dormir já sei o que acontece a seguir: a janela, o mundo lá fora à espera, impaciente para entrar no dia seguinte.
Assim entraste na minha vida: todos os dias um pouco, sempre um pouco mais, um sonho que se repete; e passaste a ser-me vida, janela para o mundo. Entraste-me pela porta e foste-me janela. Mirei os meus olhos aos teus e aos poucos gostei de ti até me tornar adicta. Sim, porque me és droga: remédio do qual dependo para me curar as mazelas e, ao mesmo tempo, veneno que me mantém submissa, me envenena lentamente, me mata todos os dias um pouco.
Conheci-te num tempo em que o tempo já não era o que era. Vieste por mãos queridas e eras delas, mas as minhas te tomaram para mim. A culpa não foi minha: foste tu que, sem pudor, me seduziste, te apropriaste da minha vida e fizeste com que me fosse apaixonando por ti. E és-me sol, luar, água para beber, lume para me queimar.

As pálpebras pesam nos olhos cansados, a cabeça fecha-se, as costas doem…
- Coça-me as costas.
Sinto as mãos percorrerem-me os ombros doridos e uma paz silenciar-me as veias e as artérias alteradas. Era assim que deveria ser sempre. Era assim que eu queria estar sempre: tranquila, sem nada desejar, sem mais nada querer.
- O que é que é o comer? Falta muito para o jantar? Já estou com fome.
E lá se vai o sossego! Chega-nos um cheiro estranho. Fumo. Vou até à cozinha, o jantar foi outra vez queimado: o caldo está entornado!

Isto não é normal. Não pode ser normal. Não consigo fazer tanto ao mesmo tempo, com a mente sempre com resmas de coisas para pensar. E tu fazes-te prioridade. Absorves-me. És-me o mundo que me traz alucinada. Que me tira a vida. E o teu papel não deveria ser esse. Não pode ser esse!

Toca o telefone:
- Estou! Sim… onde? Vou já de seguida!
Entro no carro e saio para a estrada. Ligo o rádio na estação preferida:

"It's got to be-ee-ee-ee-ee-ee-ee perfect
It's got to be-ee-ee-ee-ee-ee-ee worth it
yeah.
Too many people take second best
But I won't take anything less
It's got to be
yeah
pe-e-e-e-e-erfect!"

Perfeito! Sair da rotina é o melhor que me pode acontecer. E canto, grito, a par desta música que me faz esquecer, por uns momentos, a loucura em que se está a tornar a minha vida…

11/01/2010

Chuva

Lá fora a chuva cai: ouço-a a bater nas telhas. Presto atenção e saboreio o som da chuvada como se fosse música. Suspendo os deveres da escola e enrolo-me na mantinha sobre a cama para mais confortavelmente a apreciar. Só tenho medo se fizer trovões; a avó costumava dizer que era o Pai do Céu a ralhar...

Olho para o tecto de forro de madeira e para as paredes decoradas a caixas de fósforos e sorrio: sinto-me tão bem no meu quartinho - o meu pequeno mundo!
O que começou por ser uma pequenina colecção de caixas de fósforos com motivos de flores tornou-se já numa colecção enorme destas caixinhas de todos os estilos: os meus amigos, sabendo desta minha paixão, começaram a granjeá-las para mim. E eu, que comecei a colá-las à volta da janela, vou já na terceira parede quase cheia. O pai bem começou por ralhar e dizer que eu estava a fazer um duplo disparate: estragava as paredes e a colecção perdia todo o valor, mas depois acabou por se render e apreciar também; a mãe é que não acha muita graça, diz que eu só perco tempo com coisas que não dão interesse nenhum e o que eu havia de fazer não faço. Ela nunca me irá entender.
Eu sei que isto não vai durar para sempre, que acabará por se estragar ou por alguém estragar; algumas já se descolaram e voltei a colá-las, outras tive mesmo que as substituir porque se deterioraram completamente, mas também não me importa o tempo que dure, o que interessa é que eu goste e me sinta bem enquanto durar.
É como a chuva que continua lá fora... há coisas que nos são agradáveis ao coração, mesmo que os outros não o entendam.

(Publicado em: Memória Alada, 2011)

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