20/06/2010

Fogo

Naquela tarde, o sol fervia-lhe antipaticamente nas têmporas, ao adentrar-se inconsequente no automóvel, estrategicamente estacionado, e feria-lhe de luz intensa os olhos: nem os óculos escuros lhe escondiam os raios vibrantes. Ainda no dia anterior lhe chovera de improviso e, poucas horas volvidas, um sol sem tréguas o despia de nuvens e se apostava a vesti-lo de fogo. E pensou que precisava de uma cortina de sombra, uma corrente de ar, uns pingos de chuva que o viessem refrescar: ardia.
Dali podia percorrê-la com o olhar quando saísse ou entrasse em casa. E enfim vira-a: bebera-a toda com o olhar. Tinha pensado que era quanto lhe bastava, mas encontrava-se pegado àquele assento, à espera de nova visão. Ela saíra, havia de regressar.
Quanto da vida se suspende de um contacto, ainda que só visual, à distância, mesmo que só um dos lados o saiba, o sinta, o aprecie!

Parecia tomado de febre quando levantou a cabeça para o espelho retrovisor e viu reflectido o seu rosto brilhante de suor, marcado pelo cansaço e pela indecisão. Viu-se o jovem que era, mas sentiu-se velho, ao notar as rugas a marcarem-lhe a testa. Sabia que era preciso construir o futuro, mas então, porque se detinha ante um passado que o prendia numa espécie de limbo, do qual não ousava sair? Queria olhá-la de longe, nem que só uma vez mais, e uma pequena felicidade lhe sorriria. Mas essa felicidade ser-lhe-ia suficiente? Se não podia ser de outra forma, sim, tinha de ser suficiente. Vê-la secretamente, saber que estava bem, encher-lhe-ia os olhos e acalmar-lhe-ia a alma.
Ainda desse modo se agitava quando a avistou de volta: magra, mas belíssima como a conhecera. Escorriam-lhe de cobre os cabelos levemente volteados sobre os ombros, enquanto que os olhos de luar se ocultavam por detrás dos óculos escuros – mas adivinhava-os – e eram fascínio e dor: promessa e recusa. Ali, ao alcance de uns passos: todo o seu tormento, a sua agonia – a sua vida.

(M. Fa. R. )

26 comentários:

antonio ganhão disse...

Onde nos levam todas estas folhas esparsas?

Fá menor disse...

Onde o teclado e a tesoura deixarem...

Mário Rodrigues disse...

Olá FA

...

Um beijo

Nilson Barcelli disse...

Ao que um amor não correspondido pode levar.
Captaste muito bem essa atmosfera.
Gostei muito.
Boa semana, beijos.

legalmente loira... disse...

oi fa,
que lindoooo ela me levou para longe!!
beijos com carinho.

Utilia Ferrão disse...

Amiga Fa
Que bela narração,espero que se termine bem.
Beijihos

O Árabe disse...

Assim é: apegar-se ao passado, ainda que belo, é deixar de construir um novo futuro...
Belo texto. Boa semana!

poetaeusou . . . disse...

*
exorcizei-me,
no Fogo das tuas palavras !
,
conchinhas, deixo,
,
*

AC disse...

“Ali, ao alcance de uns passos: todo o seu tormento, a sua agonia – a sua vida.” Ou a sua não vida.

Gostei da densidade do relato, da carga obsessiva colocada no protagonista.

Gostei do blogue, vou segui-lo.
Bjs

maresia disse...

Txi Fa...Parece um filme...daqueles antigos, a preto e branco...e tal...Maravilha ...
E nem me fales em vuvuzelas...A Meo é maravilhosa...quando inventa um botão que apaga para sempre aquele enxame de abelhas...ufa!
Beso em tu
;)

Laura disse...

Ah, a menina virou contadora de contos de amor, amor perdido, encontrado, ou de novo deixado? ah, menina, as histórias têm por força de acabar bem, tudo em amor, quem tiver de ficar para trás, paciência, mas que gosto de sonhar com o amor maior do mundo, lá isso sim..Beijinho da laura

legalmente loira... disse...

oi fa,

estamos sempre indo para novos rumos...novos caminhos beijos com carinho

Maria Soledade disse...

Fa Menor? Qual quê?!!Que Grande Fá MAIOR...O teu texto está:Soberbamente EXCELENTE!!

Quantas vezes somos assombrados pelo passado,obrigando-nos a viver um presente sombrio, e um futuro cinzento?

Nada como nos divorciar-mos do passado de côr cinzenta para que o presente e o futuro possa ser pintado numa tela bem colorida...

A-D-O-R-E-I....

Beijinhos Grandes/Até sempre Linda

A.S. disse...

Ele sentiu que ela ia chegar,
romper do infinito!
Talvez não estivesse ainda
preparado para a sua vinda.
Talvez ele tenha chamado o seu nome
e ela tivesse passado,sem olhar.
Talvez ela tenha vindo só para tu a veres.
Por isso passou. Indifernte.
Por isso se afastou. Serenamente,
para o impossivel donde viera!


Beijosss
AL

helia disse...

" E pensou que precisava de uma cortina de sombra,uma corrente de ar, uns pingos de chuva..."
É o que muitas vezes precisamos para nos refrescar não apenas o corpo, mas também a alma...
Um lindo Texto!

. intemporal . disse...

.

. ardo de comoção .

.

. porque me re.vejo in.condicional.mente neste bel.íssimo texto .

.

. por vezes,,, o ouro abunda na sílaba tanta e aqui, neste espaço de construção,,, curvo.me perante a sabedoria de assim se saber dizer .

.

. do fundo do meu coração:

.

. ! parabéns, Fa .

.

. um bom fim de semana .

.

. um beijo meu .

.

. enternecido .

.

. paulo .

.

Rafeiro Perfumado disse...

Mais uma prova das consequências nefastas do aquecimento global, até já prejudica as relações! ;)

Unknown disse...

O amor é como fogo: para que dure é preciso alimentá-lo ...

Agradecido pela visita ao meu espaço,volte sempre.

Beijo.

bettips disse...

Obrigada Fa, pela tua constância nas soltas coisas.!
Esperta, mesmo sendo "a esperteza saloia..." que é o que mais está a dar.

Não sou esperta: e por vezes, nem sequer inteligente!
Abçs

vieira calado disse...

Hoje vim ver ver este seu blog.

Gostei da maneira como escreve.

Bom resto de fim de semana.

Bjs

Elcio Tuiribepi disse...

Oi...qaunto tempo...você escreve contos muito bem...venha conhecer o Espaço Aberto...tem um link lá no Verseiro...tem blogagens coletivas, saúde, cinema, musica, arte, educação....enfim, é um espaço para todos...participe...tivemso agora um concurso, você poderia ter partcipado..
Obrigado por sua presnça lá no Verseiro...
Um abraço na alma

Beijo

Gasolina disse...

Gostei do oposto entre este texto maduro e a jovialidade dos quereres e dos mandares dos outros, mais abaixo.

tulipa disse...

É bom ler palavras cheias de sentimento, como estas.

Aqui...
deliciei-me!!!

Beijos de saudades.

legalmente loira... disse...

oi fa,
sempre muito bom voltar aqui para reler-te.
lindo domingo com bjos.

Vanuza Pantaleão disse...

Oi, Fa!
Maravilhoso esse conto!
E tem uma metalinguagem que vai fundo na nossa alma...
Obrigada, amiga, pela sua presença tão querida no nosso espaço!
Beijos e carinho!!!

Secreta disse...

Um texto...imensamente sentido...
Beijito.

poderá também gostar de:

Mais Rabiscos