15/12/2011

Que se faça Natal


Vem aí o Natal.
Dezembro, mês do frio… muito frio!
A cada dia que passa, a tristeza e a revolta invadem-me mais a alma, são o meu pão de cada dia. Imagino as mesas postas, com toalhas alegres e coloridas, cheias de doces, filhoses e outros fritos polvilhados de açúcar e canela. Mesas fartas de saborosos petiscos e carnes variadas. Crianças a correrem pela casa, com os sorrisos alegres de quem nada lhes falta. Elas sabem que as prendas já estão à sua espera, dentro dos embrulhos atados com os laços prateados e dourados. Em cada lareira crepita um lume aconchegante que aquece lares e corações.
E eu… eu passo por um período difícil na minha vida, que nunca pensei possível de me vir a acontecer. Sinto-me impotente para sair deste mundo cada vez mais ruinoso, à beirinha de cair num poço sem fundo. Já perdi tudo o que era possível perder, até a dignidade.

Eu também tive uma família na qual punha todo o meu orgulho. Linda, harmoniosa, que dava gosto de se ver, até ao dia em que a adversidade me bateu à porta e me foi, aos poucos, deixando na rua da amargura.
Vi o sol a desaparecer do meu dia e este precipitar-se numa noite sem fim, quando os primeiros raios da crise deram o seu sinal, numa casa onde nunca tinha faltado nada. E tudo o que tinha vindo a construir, com todo o empenho, se foi desmoronando como um castelo de cartas.

Os meus fantasmas atormentam-me continuamente. Foi o meu desemprego inesperado e algum tempo depois a falência da pequena empresa da família.
Como é que se pagavam as prestações dos carros, da casa, da mobília? Tudo teve que ser vendido, por muito menos de metade do preço de compra original, para pagar as dívidas, e não chegou. O cartão de crédito foi gasto até ao limite. Em vez de uma casa, passou a ser um quarto alugado para dois adultos e duas crianças. As crianças começaram a ir muitas vezes para a escola sem pequeno-almoço e sem nada para o lanche, quando não sobrava nada para lhes dar de comer. E aconteceu a ruptura familiar, pois “em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”. E as crianças foram levadas para uma Instituição porque estavam em risco.

Dizem que uma grande dor sozinha mata menos do que muitas mais pequenas. Não sei, mas talvez... porque as facadas que me têm sido sucessivamente espetadas, me levaram a ir definhando lentamente até que, um dia destes, tudo se poderá vir a consumar definitivamente, por aí, numa qualquer sarjeta.

Agora só a miséria mora comigo, ou eu com ela. Eu sou este corpo à espera de uma qualquer cama ou canto onde afogue a pobreza, onde esqueça as cores gélidas de um frio que se me entranhou nas carnes já decepadas de um espírito que um dia foi luminoso, para ser, em cada dia, protagonista num espectáculo da fome.

E é sempre a mesma coisa todos os anos por esta altura. Lembra-se muito os pobres, dá-se umas esmolas aos pobrezinhos, uns caldos, umas sopas de Natal e depois cada um vai à sua vida até ao ano seguinte, porque já descarregaram a consciência. Como se o pobre só comesse uma vez por ano! Será isto espírito de Natal?
Eu sempre ouvi dizer que Natal é quando o Homem quiser. Mas se calhar, é só mesmo quando o Homem quiser!
Por isso é que os que tem o grande poder, capaz de reverter as condições das pessoas como eu, de vez em quando juntam-se para trocarem impressões sobre assuntos relacionados com pobreza… mas ficam-se pelos discursos e pelas jantaradas obscenas onde isso se discute, com os media a dar cobertura.
Queria que essa comida lhes soubesse a podre e a vomitassem em vez das palavras gastas!
Neste Natal, queria que a pobreza lhes entrasse por todos os orifícios do corpo... por todos os poros da pele.
Talvez que assim tivessem a real percepção do que é a pobreza... e compreendessem um pouco da verdadeira dimensão do Natal.

(Publicado pela primeira vez a 04.12.2008 em Sonhar que... é possível acabar com a Pobreza)


Que se faça NATAL para todos.
Um Santo, Feliz e Harmonioso Natal, repleto da sua verdadeira dimensão e essência!


05/12/2011

Um voo no tempo



"A minha história mais que perfeita acaba aqui.

Mas eu abro a boca num bocejo e esfrego os olhos piscos, teimando em me vestir da vida, sempre renovada, que sei que cada dia terá para me oferecer.

(...)"

(Do excerto final de "Memória Alada")

Um voo no tempo, até aos lugares onde moram as borboletas.


11/11/2011

Em Voo


Dizem que voltamos sempre aos lugares onde fomos felizes.
Então, chega um tempo em que já não conseguimos conter mais o que nos quer extravasar do peito.
Balançamos, balançamos... e o salto acontece.

"Para mim um balanço
é mesmo balançar,
balançar até dar balanço
e sair..."

Mesmo sem rede.
E temos que abrir as mãos, como diz a canção da Mafalda Veiga.
Abrir as mãos, as asas... e voar.

Mesmo que antes tenhamos tido as mãos presas, as asas cortadas.

Mas chega a altura de soltar o grito:

"Agarras a minha mão
com a tua mão
e prendes-me a dizer
que me estás a salvar.
De quê?
De viver o perigo.
De quê?
De rasgar o peito.
Com o quê?
De morrer,
mas de que paixão?
De quê?
Se o que mata mais é não ver
o que a noite esconde
e não ter
nem sentir
o vento ardente
a soprar o coração..." !!!

Por mais frágeis que sejam as asas, elas são para VOAR!

14/10/2011

Vindimas


Começa a cair o Outono sobre as terras e as gentes. Com ele vêm as vindimas.
Os carros de bois apetrecham-se de tinas e cestos para recolher as uvas vindimadas. No ar, um aroma doce paira juntamente com o sol por cima das nossas cabeças. Até parece que é o sol que é perfumado.

A mãe fez-me uma saia em plástico transparente, com elástico na cintura, para eu vestir por cima da roupa. Assim não me sujo nem me molho se chover. O meu cortar dos cachos para o cesto de verga é intervalado pelo depenicar de bagos saborosíssimos para a boca. Hoje é uma barrigada! A navalha que me coube para cortar os cachos não resulta tão bem como uma tesoura e é perigosa para os meus desastrados dedos, mas não havia uma tesoura para mim e, para o trabalho que eu faço, dá muito bem, foi a resposta que ouvi quando reclamei. Mas é uma aventura e um prazer andar pelo meio das videiras, quase encoberta por elas, e escutar as conversas dos adultos, que até se esquecem dos mais novos por ali à solta.
As mulheres, que andam a dias por dias nas vindimas de uns e de outros, nunca se fartam de tagarelar. Ali se desfiam vidas, próprias e alheias, se descobrem segredos guardados quase a sete chaves, mas, afinal, não tão bem guardados assim. A Manuela foi enganada pelo namorado; a mulher do ti Augusto Silva, já daquela idade, anda grávida outra vez, coitada; a Celeste já está a passar da idade casadoira e agora arranjaram-lhe uma alcofa com um rapaz que ela nem conhecia; a Alzira escreve-se com um rapaz que está no Brasil; o Zé da ti Olinda deixou a Rosalina, um namoro já de há uns anos, e enrabichou-se por uma da banda de além… e por aí afora: a ti Amélia e a cunhada agora não se dão por causa das partilhas do sogro e andam a pôr os homens delas, que são irmãos, um contra o outro…
As vindimas são de uvas e são de gente. E eu fico a pensar em como as vidas dos adultos são tão complicadas, ou como eles próprios as complicam. Nas vindimas cortam-se cachos e corta-se tudo, até os meus dedos. Pois é, cortei-me. Tinha que ser: com esta navalha, a minha distracção a ouvir o que não era para mim, e a minha natural aptidão para os desastres, só podia! O tio, que andava por ali a acarretar os cestos cheios de cachos para a tina no carro de bois, raspou, com a navalha, um bocado de feltro do seu chapéu preto e colou-mo no golpe para não saírem por lá as tais ditas “tripas grossas”, como de costume. Como, por causa disto, já não me dava jeito continuar a vindimar, segui carreiro acima até à adega.

Pela parede da adega trepa uma lagartixa e entra por uma fresta. Lá dentro é fresco. O chão é de terra negra pisada pelos pés, como pisadas pelos pés vão ser as uvas dentro do depósito de cimento quadrado. Ainda está vazio, à espera das uvas que vão chegar mais logo para se transformarem num mosto viscoso e peganhento que depois será vinho. Nos anos passados fui reparando nisso tudo: como as uvas eram pisadas e deixadas a ferver durante dias no depósito, sendo mexidas novamente com os pés, de vez em quando, até o vinho estar pronto a ser retirado para as pipas onde continuava ainda a ferver; como os engaços eram depois espremidos na prensa para fazer mais vinho – o vinho do repiso; e como estes engaços depois de espremidos eram abafados para fazer aguardente na alambiqueira.
Este ano não deverá ser diferente. Está tudo a postos.

13/09/2011

A Pedinchice


Uma caixa de fósforos e meio litro de petróleo; um quilo de prego de meio solho e de ripa, misturados; um pacote de cloreto e um quarto de quilo de sabão azul; um pacote de massa de meada; meio quilo de açúcar amarelo. Com conta, peso e medida. Os rebuçados quase todos. Sem conta nem medida.
Foi assim uma tarde inteira atrás do balcão da loja. E uma enorme ralhadela furiosa do pai.
Aos poucos, o pai tem vindo a confiar-me a loja. Desde pequena fui aprendendo e ajudando e, agora, para além de aviar os fregueses, anoto as faltas de mercadoria e faço as encomendas aos vendedores quando o pai não está, confiro a mercadoria que os viajantes vêm entregar e arrumo-a nas prateleiras; e, ainda, tenho ao meu encargo o registo das facturas das compras no livro.
Esta tarde, o pai teve que sair e eu fiquei sozinha a tarde toda, como algumas outras vezes. Até me desenrasquei bem… só com os rebuçados é que correu mal.
- O frasco dos rebuçados está quase vazio porquê?
- Vendi-os…
- E onde é que está o dinheiro? – perguntou o pai, de gaveta aberta, depois de conferir as vendas que eu tinha anotado.
Fui apanhada. E tive que dizer toda a verdade, que era só uma: tinha-os dado à Nelita, à São e à Fernanda.
A voz do pai ecoou pela loja inteira e, decerto, pela rua além. Eu encolhi-me com medo de que a trovoada trouxesse chuva, mas a nuvem negra passou ao lado e escapei desta. Não escaparei de uma próxima, deixou o pai prometido. Mas não acontecerá mais, também deixei prometido eu.
Desta vez, estas minhas amigas conseguiram levar-me à certa quando me vieram chamar para jogar à macaca com elas. Como eu lhes disse que não podia sair, encostaram-se ao balcão a dizerem que então tinha que lhes dar rebuçados para as compensar; e voltaram mais vezes, com falinhas mansas, a pedir  sempre mais. Mas não voltarei a cair noutra, porque agora vejo como fui palerma ao deixar-me levar na pedinchice delas e no que elas me diziam.
Afinal, se elas gostassem de mim, como eu gosto delas e, ainda para mais, sendo duas delas mais velhas do que eu, não teriam ousado abusar da minha bondade e fraqueza, agindo daquela maneira, só pensando nelas e nada em mim.

29/08/2011

Droga Maldita!


O lado negro acabou por levar vantagem.
Existe um reino dos mortos-vivos que lança uma capa negra, como rede pesqueira, sobre um mar ingénuo e carente.
As aves partiram em debandada, sem rumo nem norte, deixando-o entregue à sua má sorte. E ele não se conseguiu desenvencilhar, nunca mais, da rede. Ainda espreitou, algumas vezes, por um buraco que alguém lhe alargou, mas o corpo não obedeceu e acabou por sucumbir à desgraçada mente, cada vez mais fraca e doente. Tó. Droga maldita, que escreve a morte sem piedade nem dó.
RIP.

Acolhe nos braços, Pai, este teu filho pródigo.

19/08/2011

Desfolhada


A madrugada e a manhã foram longas.
Aquece. Está quente. Cada vez mais quente. Tão quente de uma luz de fogo que doira.
Espigas de milho, loiras, reluzem na eira ao calor do sol.
À medida que estas haviam sido despidas das camisas, logo cestos as tinham aparado para, depois de cheios, serem levadas para a eira e estendidas ao sol a corarem como oiro.
Era uma montanha enorme, que custou a vencer.
Os milheiros tinham sido cortados da terra com foicinhos, um a um, dias antes. Também me calhou a mim, para aprender, mas os canoilos eram grossos e a minha habilidade não era nenhuma. Cortei-me num dedo. A mãe disse que saíam por lá as tripas grossas. E “vai-te embora, vai-te embora… que não sabes fazer nada.”
Não percebi isso das “tripas grossas”, assim como há muitas outras coisas que não percebo, e depois riem-se de mim por eu não perceber, mas também ninguém me explica nada, e uma pessoa não nasce ensinada. E não é verdade que eu não saiba fazer nada, chateia-me que me digam isso, é só que há trabalhos a que não estou habituada. Mas a mãe tem a mania de me comparar com as outras raparigas que têm à volta da minha idade, que começaram a trabalhar ainda crianças e que, por isso, trabalham como “gente grande”, como ela diz, e que eu não presto para nada. Eu não lhe levo a mal de ela me dizer que não presto para nada, porque penso que percebo o que ela quer dizer: que sou muito miúda e franzina e assim não tenho força nenhuma. É que ela nunca teve jeito para as palavras.
Enrolei um lenço no dedo, por causa do sangue que escorria, e fui para casa, mas isso já passou e hoje já deu para ajudar a descamisar o milho.
Foi o ti Joaquim Fernandes que trouxe todo o milho na palha, em várias carradas de carro de bois, para o troço da oliveira ao pé da adega da nossa antiga casa. É aí que está a eira. Ontem à noite juntou-se um grande grupo à volta da montanha de milheiros e deram-lhe um grande avanço, à luz da lua e do petromax. Hoje começámos cedo. A tia e a madrinha vieram ajudar-nos, à mãe e a mim, e acabámos com o que faltava. O pai tinha-me arranjado, de um pau de moita, um bico para descamisar as espigas, e eu desenrasquei-me muito bem.
Agora cheira a espigas de milho acabadas de desfolhar. Um cheirinho tão bom e doce, que o sol espalha por aí além.

04/08/2011

Pontos nos iiiiiii


Os olhos são espelhos da alma.
Quando a alma dói, quando chora ou ri, ou tem sono, frio ou fome… ou quando adoece… os espelhos da alma mostram-na nos seus diferentes tons.
Mas, e se são os espelhos a adoecer? Como podem eles saber?
Há já algum tempo que os meus olhos se magoam. E a alma magoa-se por eles.
É o espelho que se vira ao contrário. É o mundo que fica invertido. Raiam-se os olhos como um espelho partido. Espetam-se na alma aos pedaços. E até o corpo fica ressentido.
Parecem fungos, ou farpas, que se introduzem nas frestas e distorcem os reflexos de luz. São areias movediças. São pontes levadiças que não me deixam passar. São cancelas, são tramelas, ciscalhadas, gramíneas, remelas, e quero livrar-me delas.
Acho que preciso de um colírio. Para lavar os espelhos. Para tirar pó dos cantos. Para lhes dar outro brilho. Para escorrer até dentro e regar bem a alma.
Porque o espelho a aprisionou. E a alma não se vê no espelho.
Tenho de marcar consulta no oftalmologista.
Ou terei de desistir de ti…

21/07/2011

Papoilas no Trigo


Hoje a mãe fez-me levantar cedíssimo. Se há coisa que não gosto é de me levantar cedo. Gosto de me deixar dormitar no quentinho até o sol entrar bem pela janela. Mas hoje, ainda o sol não tinha nascido, já ela me sacudia para que me levantasse. Que tinha que ser, que tínhamos de fazer uma madrugada a cortar trigo enquanto ele estava macio, que senão depois abria o sol e custava mais, porque o calor apertava e a palha ficava áspera. Caramba… ia ser duro. E logo eu que não tinha jeito nenhum com o foicinho! De que lhe iria servir o meu trabalho, se eu não faria nada que jeito tivesse? Já quando foi no tempo de cortar o arroz não consegui levar o eito para a frente como as outras mulheres (como se eu fosse uma grande mulher!...) e elas cortaram o meu eito na frente e deixaram-me sozinha para trás. Isso foi uma grande vergonha e humilhação, e elas fartaram-se de rir, mas se eu não conseguia acompanhá-las, não conseguia, pronto. Se elas fossem outras tinham-me dado um eito mais estreito.
Eu não me dou bem com este tipo de trabalho na agricultura. Mas a mãe é que é viciada, só gosta de andar na terra, até se esquecendo das horas. Por isso é que o pai, muitas vezes, se chateia e ralha quando ela não vem mais cedo fazer o almoço ou o jantar. E se eu experimento cozinhar uma vez por outra, nunca é conforme à vontade dela, porque não era aquilo que ela tinha em mente fazer, ou porque não saiu nada de jeito, ou porque não me tinha mandado, é sempre ralhete. Então para a outra vez não faço e ela que ouça do pai quando se atrasar.
Bem, lá me levantei e fui atrás dela de má vontade, ainda estava neblina e orvalho. Os caracóis andavam a passear pelo fresco da madrugada. As rolas arrulhavam de um lado e um galo cantava de outro. Eu perdia-me nessas contemplações, e a mãe: “Anda rapariga, que não é para ir a contar os passos!”
Mal chegámos, começámos na ceifa pondo o trigo cortado a descansar em molhos sobre o restolho. A mãe andara lá noutras madrugadas e já estava, por isso, uma grande área ceifada. Hoje era para cortar o resto. Dali a algum tempo tinha bolhas de água na mão direita, pelo trabalho com o foicinho. De nada me valeu queixar-me. “Isso é de não estares habituada. Tens que andar mais vezes… vá mas é depressa que isto não é trabalho só para mim.”
O sol começou a levantar-se e com ele começou a vir, mais intensamente, o aroma doce e agradável a palha cortada. Ah, e havia papoilas pelo meio do trigo. Havia papoilas pelo meio do trigo… Comecei a ficar mais alegre, talvez por isso, ou porque o sol sorria, ou talvez porque comecei a ver o campo de trigo, quase todo cortado, como um espectáculo fascinante.
E eu já só pensava que não faltava muito para terminarmos. E de tarde seria para ir à praia. A mãe tinha prometido.

08/07/2011

Voo de Peneireiro


José Miguel sentou-se na esplanada do café e perdeu os olhos, por entre as copas das árvores, num ponto fixo no horizonte. Um ponto que era apenas um nome: Luísa.
Esse nome martelava-lhe no pensamento com insistência e corroía-o em ânsias obsessivas. Tentara libertar-se, mas era como se estivesse numa praia depois de ser vomitado pelo mar e, ao mesmo tempo, desejando esse sal que o cuspira.
Como é que se deixara naufragar naquelas águas? A tempestade, que até parecera que amainara, afinal, tinha regredido e virara-lhe o barco antes que ele tivesse tempo de chegar a um qualquer porto.
Respirava. Pelo menos respirava depois de dar à costa. Estava vivo. Tomar consciência disso era um alívio, mas também sofrimento. Quando é que voltaria a respirar sem aquela dor no peito? Se calhar estava na hora de tirar férias, de sair de Coimbra por uns tempos. Talvez fazer uma viagem, conhecer outros lugares, outras pessoas. Tirar a vista desse ponto do horizonte, tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe.
Mas ali se mantinha a pairar, tentando equilibrar-se, de olhos fitos no sustento da sua felicidade, qual voo de peneireiro, que se sustém parado no ar com um bater agitado de asas, na mira do seu alimento. Contudo, nem se decidia a descer à terra, no voo picado necessário à sua sobrevivência, nem a voar para longe.

29/06/2011

Experiências e Disparates


Agora que já não ando na escola sobra-me tempo para dar e inventar.
O rádio toca de manhã à noite e eu vou aprendendo a dançar, sem ninguém ver, e escrevendo, aos poucos, as letras das canções. Assim que estão completas passo-as a limpo para outro caderno. É só estragar papel, ralha o pai. Já tenho uma grande colecção… um dia, quem sabe, ainda hei-de cantar num conjunto, como o mano, e aprender a tocar viola. Oh, sim, encanta-me tanto o som das cordas da viola que hei-de ter uma e aprender a tocar.

Também não perco os folhetins da Emissora. E, principalmente, a “Simplesmente Maria” que dá na Rádio Renascença, e que a minha amiga Manuela vem escutar todos os dias comigo, de ouvido colado ao rádio, porque ele não apanha muito bem este posto, mas mesmo assim é melhor do que o dela que não apanha mesmo nada. À conta disso, volta e meia lá vão pilhas novas, para se ouvir melhor, e o pai a ralhar: eu estou para ver quem é que paga as pilhas!... não sei que raio de encanto é que vocês têm aí, que nunca mais acabam com essas confissões de cabeças encostadas! Assim como são duas raparigas, se uma fosse um rapaz eu já desconfiava!… E nós ficamos vermelhas que nem pimentões, mas no dia seguinte voltamos ao mesmo.

Outra coisa que queria aprender e que já consegui foi a costurar à máquina. Não foi muito fácil, porque eu não dava o balanço ao pedal até ao fim e a máquina andava para trás encravando a linha toda na canela. Teve que vir a mãe desencravá-la e ralhou que só visto, como é seu hábito. Mas enquanto ralhar e não bater, vou escapando e continuando com as experiências e os disparates. Mas a tia costuma dizer que a estragar é que se aprende. E eu acho que quando se quer muito uma coisa, com algum esforço consegue-se.
Pois bem, depois de tanto tentar, mas sem agulha nem linha, só com o tecido por baixo do calcador, lá consegui dar o balanço certo e o tecido já começou a correr sempre para trás. Vitória! Depois foi só colocar a agulha e chatear a mãe mais um bocado para que me viesse ensinar a enfiar a linha na máquina. Agora já sei coser a direito que é uma beleza. O pai até já disse que me vai mandar aprender a costura e a bordar à máquina. E eu acho que, assim como assim, até pode nem ser má ideia, que até saio daqui para a liberdade lá fora…

21/06/2011

Pontos nos iiiiii


O que é que eu faço aqui?
Colo o nariz ao vidro da janela e pergunto-me: mas o que é que eu faço aqui, neste mundo tão grande e frio?
Penso em abri-la e debruçar-me no parapeito, sorver um sopro de vento, um doce-amargo do tempo...
E há tanta vida lá fora à espera para eu passar.
Ouço, ao longe, tambores... ouço-te as palavras no vento. Grito por ti, para que me livres do pesadelo, mas o vento sopra ao contrário e não chega até ti o eco da minha voz.
Quando ousarei partir o vidro da janela e abrir as asas para me soltar?

02/06/2011

Gaivotas


A praia estende-se pelo enorme areal quase deserto a esta hora. O sol cai a pique sufocando-me os olhos de luz. Torra.

Acabei de almoçar e apeteceu-me vir espreitar o mar; quero aproveitar bem estes dias de inteira liberdade, sem os pais a controlar-me.
Eles, depois de eu muito os chatear, lá me deixaram vir passar esta semana na praia com as primas, na casa que elas alugaram. Mas eu prometi que teria juízo, e tenho. Só vou para a praia quando as primas também vão… bem, excepto agora. Elas não quiseram vir a esta hora, com tanto calor, e eu não pude esperar. O mar é tão perto que eu o avistava no intervalo das dunas, e o seu barulho fazia eco em mim.

Primeiro, sentei-me no muro a olhá-lo. Uma imensidão que toca no céu sem nuvens, onde as gaivotas se perdem. Depois, avancei até à orla da espuma, atraída pelo enrolar das ondas inquietas. Fui deixando os rastos dos pés na areia húmida, junto aos das gaivotas, até os mergulhar na água ansiosa. Que fria! Recuei. Caminhei ao longo da areia beijada pelo mar, a apanhar conchinhas, fugindo aos pulinhos de cada vez que o mar se aproximava.

Recolhi-me, por fim, junto às barracas da praia, procurando um pouco da sua sombra. Estendi a toalha à sombrinha e tirei o vestido; por baixo, o fato de banho novo que eu tanto queria. É azul-escuro, com umas risquinhas em azul mais claro no peito, que dão com a cor dos meus olhos, os quais protegi do sol nesta sombra onde me deitei a olhar o céu longamente. Apurei todos os sentidos. Um bando de gaivotas passa a voar – três e três: seis; sete; oito e mais outra: nove. E é o marulhar das ondas; o vento do mar nas narinas e nos ouvidos; as abas da barraquinha a dar a dar. Mais outro bando de gaivotas – doze – a voar. Para onde voam as gaivotas?

Agora voa uma em sentido contrário. Eu sou como essa gaivota. Perdida. Solitária. Se calhar, rejeitada pelo bando e que, por isso, voa para o outro lado. Também eu, muitas vezes, me afasto à procura de um lugar para mim, um lugar só meu, onde só eu entro. Eu e as gaivotas que me voam nos sonhos.

19/05/2011

Cresci II


Cresci.
E o que é que se ganha em crescer? Ter doze anos já não é o mesmo que ter dez ou onze. É verdade que eu já não queria ser uma criancinha pequena e gosto que me olhem como uma rapariguinha crescida, mas às vezes é uma chatice. Chatice e não só. Também dói. Agora, depois de ser menstruada pela primeira vez, já sei que ser mulher também dói. E muito. Quando isso aconteceu, na semana passada, doeu tanto, tanto, que eu não sabia o que fazer para que as dores parassem; estas eram maiores do que a vergonha que tive de engolir para pedir ajuda à mãe. E ela, em vez de me ajudar logo, até parece que ficou com um sorriso de troça: “Ah, isso é o sinal da mulher.” O sinal da mulher, o sinal da mulher…, isso sabia eu! Não que ela alguma vez me tivesse dito alguma coisa; se não tivesse sido a avó, enquanto ainda vivia, a falar comigo de mulher para mulher, seria apanhada desprevenida e o choque seria bem maior. Só que a avó não me disse que dava dores assim tão insuportáveis. E eu rebolava em cima da cama e no chão sem encontrar posição nenhuma que me desse algum conforto. Depois a mãe lá me arranjou uma toalha quente para pôr em cima da barriga, e as dores lá foram amainando. De cada vez que penso nisso começo a temer a próxima vez.

(Publicado em: Memória Alada, 2011)

10/05/2011

Breve Aragem do Mar na Alma


Uma aragem fresca passou-lhe ao de leve pelo rosto como um beijo, como uma carícia de despedida com uma mensagem dentro. Que lhe queria dizer aquela aragem?
Stella abraçava-o e ele deixou que lhe aconchegasse o corpo gelado no seu quentinho, abandonando a cabeça no seu ombro, fechando os olhos, sem querer pensar nada. Mas pensava. Taiki pensava que há coisas que não se devem adiar tanto tempo. Pensava e pensava, tentando respirar aquele ar impregnado de maresia.
O vento, por vezes, traz-nos perfumes de recordações, e incita-nos na procura de um sinal de permanência nelas, ou então de um ponto de viragem.
Sim, claro, percebia, tinha recebido um beijo de despedida de Loiris. Era essa a mensagem definitiva que lhe roçou a face, a dizer-lhe que não podia viver agarrado a uma recordação que não frutificaria. Era preciso encerrar um capítulo da sua vida, para que vida nova brotasse. Mas não seria nada fácil… não seria nada fácil…
A carta fora escrita, entregue em mãos e respondida. Mesmo que não estivesse à espera de resposta, e não estava, a resposta viera. Viera num leve bater de asas de um anjo que o rodeou num voo perfumado de maresia. Sentiu novo roçar pelo rosto, nova aragem, novo beijo. Estremeceu, abrindo os olhos na procura dessas finíssimas asas transparentes, mas o que encontrou foram os lábios de Stella tão perto dos seus:
- Olha como tremes. Que ideia a tua vires para aqui, assim, sem um casaco… e o susto me pregaste!
Olhou para ela, incapaz de articular palavra, mas aconchegando-se mais naqueles braços, verdadeiros e seguros, que o puxavam para fora do areal.


(Um trecho meu para Mar da Alma do Fontez na sequência de colaborações anteriores na história de Taiki.) 

23/04/2011

Em Tempos de Morte e Ressurreição


Quem não tem dinheiro não tem vícios.
Num rasgo de lucidez, Alcides decidiu parar.

As contas continuavam a amontoar-se. Jogar, que começara por ser um hobby, passou a ser um meio de tentar arranjar dinheiro pra pagar as dívidas, mas acabou por ser um vício que as amontoou ainda mais. Um beco sem saída, um precipício, um abismo.

Há caminhos que, quando percorridos desenfreadamente, levam ao abismo. À noite. À escuridão. À morte. Quem gasta mais do que aquilo que pode pagar cairá, com certeza, nas mãos daqueles a quem fica a dever. Depois não se pode queixar de que a vida lhe foi madrasta. Não. Ele é que não soube fazer da vida sua mãe, porque fechou os olhos e os ouvidos quando ela o procurou ensinar. Pensou ser maior do que ela e que já nada tinha que aprender. Era maior e vacinado. Já sabia tudo. Ela era antiquada, não era do mundo de hoje.

São assim muitos filhos em relação aos pais quando pensam que já sabem mais do que eles e dispensam a sua sabedoria de experiência feita. São assim os homens em relação à História quando a olham como passado velho e gasto que passou e nada mais. Que os tempos de hoje são diferentes, muito diferentes… E quem não avança recua. E é verdade. Até é verdade. Mas tem que se ver muito bem por onde se vai avançar. Porque nem todos os caminhos são de fiar. É claro que qualquer um se engana (até o GPS pode falhar). Quem nunca se enganou que atire a primeira pedra. Mas há que ter a coragem de ver e admitir o erro, parar e voltar atrás.

Alcides parou. Fez-se-lhe stop. Parou. O sinal de STOP avermelhou-se-lhe na cabeça e espalhou-se-lhe pelo corpo retesando-lhe os músculos, paralisando-lhe o sangue nas veias e deixando-o branco de morte. E pensou. Que vida era aquela sua que em nada se parecia com vida? Como que uma quase dormência que o trazia sedado, amarrado a um mundo de alucinação. Uma mentira. Uma mentira real, ou uma real mentira era o que era.

Parar, só quando se dá de caras com um sinal de stop numa barragem intransponível, é chegar ao limite sem se ter dado tempo para apreciar qualquer paisagem pelo caminho. E a travagem tinha sido tão brusca que o deixara descalço e esfrangalhado. Ainda atordoado viu que não dava para continuar, mas o caminho para trás podia ser longo e pedregoso; bastante penoso para se fazer sem calçado. E mais branco ainda ficou.  Deixou-se, assim, ficar no chão, a pensar que sozinho não era capaz de sair daquela situação. Melhor sorte teria ao cair no abismo agora, atirar-se já. Se vida não era, morte seria.

Mas alto lá! Stop! Morte, sim, mas não a dele. Mate-se o vício que esse é que tem que morrer. Pois ele, Alcides Baptista, ressuscitaria para a vida. Não seria, se calhar, de um dia para o outro… nem ao terceiro dia, mas a vontade firme de vencer, que lhe ressurgia como aurora, não era um viciozeco que lhe a havia de tirar!

14/04/2011

Em Tempo de Andorinhas


Tinham chegado as andorinhas. E enquanto umas depressa começaram a recolar os ninhos antigos outras construíam os seus próprios, de raiz. Migalha a migalha. Gota a gota. Pedaço a pedaço. Logo pela manhãzinha a laborar e sempre de alegres gorjeados.
Dentro de pouco tempo as famílias aumentariam e formar-se-iam novas famílias. Novas asas. Novos voos. Novos ninhos. Os beirais estavam a ficar florescentes de vida. É certo que também deixavam um lastro de porcaria pelo chão além, mas nem só de belezas se compõe a vida…

O menino saltou-lhe. Isso fez Matilde voltar a atenção, do que se passava lá fora, para o que se passava dentro. Dentro de casa. E dentro de si. Dava para estabelecer alguma analogia. Há vidas tão cheias de beleza e que dão em porcaria; e há porcarias de vida que dão em coisas boas. Assim se passava consigo: um misto de feio e belo; de conspurcado e puro.
Se houvera horas em que se sentira uma desgraçada, deixava que esses sentimentos ficassem agora em plano secundário, queria colocar isso fora das suas preocupações. A sua preocupação, de momento, era uma só: o filho no seu ventre. Não queria que ele absorvesse as suas tristezas, as suas mágoas, os seus fantasmas, por isso essas coisas tinham de ser atiradas para longe.
Engravidara numa fase negra da sua vida, que mais negra ainda ficara quando o seu pseudo-namorado a fizera escolher: ou ele ou a gravidez. Ele não devia ter feito isso: perdera. Arrancara-lhe um bocado da vida, mas perdera. Quase ganhara, pois não tinha sido fácil, também, enfrentar as feras em casa. Se não tivesse tido ninguém a jogar consigo na sua equipa, ele teria acabado por ganhar, porque era o mais forte, o mais bem treinado, e a ela tinham-lhe fugido todas as forças.

Tinham passado quase três meses desde então – por alturas do Natal, quando a mãe andava aflita à espera do espírito do Natal, que não havia meios de se manifestar, mas em que ele viera subtilmente, sem se fazer abertamente notado, aonde era mais necessário. E o seu filho, com sentença de morte chantageada, tinha escapado à matança dos inocentes.
Ainda não arrecadara muitas vitórias, ainda fraquejava algumas vezes quando a vida lhe doía na alma. No entanto, aquele jogador de futebol, que lhe pontapeava lá dentro, era quem mais certeza lhe dava de que uma vida humana deve ser preservada acima de qualquer outro valor; acima de qualquer vergonha, carreira, futuro, família ou amor; e ainda mais quando é carne da nossa carne, sangue do nosso sangue.

23/02/2011

Tempo de Acácias em Flor II


O sol embate-lhe com força na janela do quarto e espalha-se pelo aposento. Por momentos não consegue abrir os olhos sufocados de luz. Que era aquilo?
- Então, meu menino, toca a levantar que o sol vai alto.
 Era a mãe que tinha levantado o estore e afastado a cortina.
- Mãe, deixa-me estar... não tenho nada de interessante para fazer - diz ele cobrindo a cabeça com a roupa da cama.
Todos os dias se deixava dormir até à tarde, porque a noite era de vigília. Os dias andavam a ser trocados pelas noites havia tempos. Mas desde que visitava semanalmente o psicólogo algo já tinha começado a mudar. No início dessas visitas começara por não abrir a boca. Ali ficava, amuado o tempo todo, sem nada para dizer. Não precisava daquilo, não era maluco; maluco era, de certeza, quem o encaminhara para lá. Não era ele que precisava daquilo. A sua família é que andava doida, todos andavam doidos lá em casa. Ele não. Ele reservava-se ainda na lucidez de bem saber como os outros não andavam bem e que só o faziam sofrer. Eram eles que tinham de resolver os problemas em que se tinham metido e que, por via disso, o faziam fazer figuras tristes diante de um psicólogo, que o espreitava por cima dos óculos à espera que desemburrasse. Mas quem era ele para lhe arrancar alguma palavra? Pois bem podia esperar ali sentado enquanto ele permanecia mudo, de olhos fechados a olhar para dentro, recostado no divã.
E era como um jogo do sisudo, a ver quem primeiro perdia o ar grave. Um braço de ferro para ver quem cedia primeiro. A verdade é que não lhe apetecia falar e o terapeuta parecia não lhe facilitar nada. Tinha-lhe dito que falasse quando se sentisse capaz disso.
- Chegou o fim do nosso tempo.
Ouviu isso umas três vezes seguidas em outras tantas semanas, depois de uma longa hora em que não tinham havido trocas de outras palavras para além das iniciais. E saía cabisbaixo do gabinete, sem sequer tocá-lo com o olhar. Estranha maneira de fazer terapia, pensava.
Na quarta semana continuava sem vontade de falar, mas não fechou os olhos. Deitado, olhou o gabinete à volta e suspirou. Sentia-se culpado. Culpado por se sentir desmedidamente dependente dos outros e se ver traído. De repente faltara-lhe a protecção que tivera desde sempre e sucumbira. Mas escondera-o refugiando-se na noite, nos amigos, na bebida. Pronto, dissera-lho enfim, era isso que queria ouvir?
- Para início de conversa não está mal - respondera-lhe o terapeuta com um sorriso afectuoso.
A sua família era culpada do que ele estava a passar. Eles eram os culpados de tudo.
Mas ao fim de um tempo começou a sentir que, se calhar, deveria deixar de pôr as culpas todas nos outros. Os outros podem não ser totalmente culpados das nossas quedas, dos nossos fracassos.
Queria pensar que os fantasmas que nos assombram nas noites escuras podem sumir-se no ar se os fulminarmos com uma luz que os envolva completamente. Não uma chamazita, que essa ainda adensaria mais as suas sombras, mas uma luz forte, potente, que os confunda e mate. Uma luz grande como esta que lhe chegava da janela.
- Se não te levantas para vir almoçar vou abrir a janela de par em par.
- Mãe, não!... não é preciso. Sabes bem como sou alérgico ao pó amarelo das acácias.

26/01/2011

Tempo de Acácias em Flor I

(continuação de Espírito de Natal)

Era chegada a hora de abrir portas e janelas para renovar o ar e para a luz vencer as sombras. Respirar. Dilatar os pulmões com o perfume fresco do sol; encher os olhos com as cores do vento. Colar o ouvido ao voo manso das aves e escutar a canção das estrelas. Respirar. Todos ansiavam respirar.
Não se pense que alguém está mal porque gosta. Umas vezes não sabe estar ou ser de outra maneira; outras vezes não sabe que há outras maneiras de estar e de ser; e outras, não tem oportunidades de chegar lá.
Desde que se mudara para a casa da filha, a vida de Maria Aurora quase se confinara àquelas quatro paredes. A sua rede relacional diminuíra drasticamente. Não conhecia vida social, tirando a ida diária à padaria para comprar pão – tarefa que se incumbira a si própria, ao menos apanhava ar fresco. Não tinha amigos; dos que tivera, uns tinham ficado lá onde morara e outros tinham sido levados pela idade ou pela doença. Quanto à família, esta era o que se tinha tornado: um desencontro de moucos, e de mudos, e de cegos. Maria Aurora azedara.
Quando a assistente social a convidou para uma experiência no Centro de Convívio ela pensou que ainda havia muitos mundos desconhecidos para si.
– Centro de Convívio?... – imaginou uma sala cheia de mesas e cadeiras, como num café, com pessoas a jogar às cartas e ao dominó – o dia todo?...
A assistente social soltou um leve sorriso ante a cara insegura da senhora.
– Nem tem de ser o dia todo, nem todos os dias.
O Centro de Convívio é uma resposta social vocacionada para a animação e lazer, que proporciona, como o seu nome indica, convívio às pessoas que dele fazem parte, com o principal objectivo de prevenir a solidão e o isolamento. É direccionado, sobretudo, a pessoas reformadas do mundo do trabalho, desocupadas, que, por isso, apresentam carências ao nível relacional. O convívio pode ser proporcionado, com base no que necessitam e no que realmente gostam, através de variadas actividades planeadas e dinâmicas artísticas, recreativas e culturais tais como: passeios e excursões; actividades de teatro, música, ginástica; desportos e competições desportivas adequados àquelas idades como, por exemplo, o remo adaptado sénior mais; entre outras.
Maria Aurora, ao começar a perceber, sentiu crescer água na boca… se calhar, era isso mesmo que precisava.

Quando Maria Aurora foi pela primeira vez, reparou que as acácias, ao longe, começavam a florir.

20/01/2011

Pontos nos iiiii

Não sou pássaro de gaiola. Gosto de me soltar livre de amarras ao encontro da linha do horizonte.
Mas quando nas veias me corre apenas o cansaço, vêm lembranças mudar-me o rumo. São grades que tenho de esgrimir para que as penas me sejam leves. Uma aspirina às vezes ajuda: distende um pouco as grades e eu, pássaro dorido, posso escapar por entre elas.
Do lado de fora é tudo muito mais alegre. E o sol aquece mais.
Sabes, é o sol que mais me propicia evadir; com o sol eu posso viver a valer. Por isso, peço-te, não me tapes o sol, nem sequer com uma singela névoa, porque me matas mais do que com trancas na porta.

05/01/2011

Espírito de Natal III

(continuação de Espírito de Natal II)

Maria esperou. Mas, apesar da esperança que se lhe aninhou no coração, o Natal passou e o espírito de Natal não veio.
Maria Aurora barafustava a toda a hora: com a filha; com o genro; com os netos. Alcides, já sem nenhuma paciência para a aguentar, parava cada vez menos em casa. José Maria e Matilde passaram a fechar-se cada qual no seu quarto, isolando-se do resto da família e do mundo. E Maria dizia mal da sua vida, ao mesmo tempo que elevava o seu pensamento ao Deus Menino que nascera para resgatar os oprimidos, pedindo-lhe uma luz que a iluminasse, a fim de conseguir encontrar uma solução para os problemas da sua família.
Já novo ano. Já Reis. E ela reflectia em como os Magos tinham ido do Oriente ao encontro do Salvador, guiados unicamente por uma estrela. Tinham feito uma caminhada durante meses até o encontrarem. Pois ela também haveria de caminhar. Sabia, tinha fé, de que uma estrelinha a guiaria. O espírito de Natal não tinha vindo, mas a esperança que lhe restava dizia-lhe que ele não se ausentara para sempre. Só precisava de um ninho quente para pernoitar e ali, no seu lar, definitivamente, não o havia nesta altura. Era preciso prepará-lo. Tinha, pois, de passar à acção, não podia ficar parada, de braços cruzados, numa eterna espera de que o espírito de Natal lhe caísse do céu, ali, assim sem mais nem menos, e que num estalar de dedos, num passe de magia, acontecesse o milagre esperado, sem nada fazer por ele.
Talvez que ele viesse só no próximo Natal – há coisas que levam tempo –, mas não é o tempo por si só a dar conta do recado; tem de se trabalhar para conseguir resultados. No entanto, Maria sentia-se impotente para, sem a cooperação de todos os elementos da família, conseguir o que quer que fosse. E eles nada faziam para emergir daquela situação, muito pelo contrário, o seu rumo era em direcção ao fundo.
Tinha chegado, assim, a hora de engolir a vergonha e procurar ajuda externa especializada. E não era tarde nem era cedo – era agora.

(continua em Espírito de Natal IV)

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