23/02/2011

Tempo de Acácias em Flor II


O sol embate-lhe com força na janela do quarto e espalha-se pelo aposento. Por momentos não consegue abrir os olhos sufocados de luz. Que era aquilo?
- Então, meu menino, toca a levantar que o sol vai alto.
 Era a mãe que tinha levantado o estore e afastado a cortina.
- Mãe, deixa-me estar... não tenho nada de interessante para fazer - diz ele cobrindo a cabeça com a roupa da cama.
Todos os dias se deixava dormir até à tarde, porque a noite era de vigília. Os dias andavam a ser trocados pelas noites havia tempos. Mas desde que visitava semanalmente o psicólogo algo já tinha começado a mudar. No início dessas visitas começara por não abrir a boca. Ali ficava, amuado o tempo todo, sem nada para dizer. Não precisava daquilo, não era maluco; maluco era, de certeza, quem o encaminhara para lá. Não era ele que precisava daquilo. A sua família é que andava doida, todos andavam doidos lá em casa. Ele não. Ele reservava-se ainda na lucidez de bem saber como os outros não andavam bem e que só o faziam sofrer. Eram eles que tinham de resolver os problemas em que se tinham metido e que, por via disso, o faziam fazer figuras tristes diante de um psicólogo, que o espreitava por cima dos óculos à espera que desemburrasse. Mas quem era ele para lhe arrancar alguma palavra? Pois bem podia esperar ali sentado enquanto ele permanecia mudo, de olhos fechados a olhar para dentro, recostado no divã.
E era como um jogo do sisudo, a ver quem primeiro perdia o ar grave. Um braço de ferro para ver quem cedia primeiro. A verdade é que não lhe apetecia falar e o terapeuta parecia não lhe facilitar nada. Tinha-lhe dito que falasse quando se sentisse capaz disso.
- Chegou o fim do nosso tempo.
Ouviu isso umas três vezes seguidas em outras tantas semanas, depois de uma longa hora em que não tinham havido trocas de outras palavras para além das iniciais. E saía cabisbaixo do gabinete, sem sequer tocá-lo com o olhar. Estranha maneira de fazer terapia, pensava.
Na quarta semana continuava sem vontade de falar, mas não fechou os olhos. Deitado, olhou o gabinete à volta e suspirou. Sentia-se culpado. Culpado por se sentir desmedidamente dependente dos outros e se ver traído. De repente faltara-lhe a protecção que tivera desde sempre e sucumbira. Mas escondera-o refugiando-se na noite, nos amigos, na bebida. Pronto, dissera-lho enfim, era isso que queria ouvir?
- Para início de conversa não está mal - respondera-lhe o terapeuta com um sorriso afectuoso.
A sua família era culpada do que ele estava a passar. Eles eram os culpados de tudo.
Mas ao fim de um tempo começou a sentir que, se calhar, deveria deixar de pôr as culpas todas nos outros. Os outros podem não ser totalmente culpados das nossas quedas, dos nossos fracassos.
Queria pensar que os fantasmas que nos assombram nas noites escuras podem sumir-se no ar se os fulminarmos com uma luz que os envolva completamente. Não uma chamazita, que essa ainda adensaria mais as suas sombras, mas uma luz forte, potente, que os confunda e mate. Uma luz grande como esta que lhe chegava da janela.
- Se não te levantas para vir almoçar vou abrir a janela de par em par.
- Mãe, não!... não é preciso. Sabes bem como sou alérgico ao pó amarelo das acácias.

20 comentários:

ONG ALERTA disse...

Ninguém pode ser culpado por tudo nesta vida...
Beijo Lisette.

Maria Soledade disse...

É fácil, cómodo, culpar os outros muitas vezes pelos nossos próprios erros. Enfiar a cabeça nos lenções, tal como a avestruz o faz na areia não resolve os problemas apenas adia o inadiável. Será que ele era mesmo alérgico ao pólen das acácias ou a sua alergia resumia-se a enfrentar a vida de frente?

Beijinhos

Vanuza Pantaleão disse...

É verdade, Fa!
Nunca culpemos os outros sem antes meditarmos sobre nós mesmos. Eu tento.
Beijos, amiga!!!

Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa disse...

Obrigada pela visita e pelo comentário.

Gostei do texto! Gostei mesmo. Faz-nos reflectir. É tão mais fácil achar que a culpa é toda dos outros ou que a maior culpa é dos outros! Só viveremos em harmonia connosco e com os outros, quando conseguirmos interiorizar que a culpa é muitas vezes só nossa, ou, pelo menos, também nossa. Consciencializar isso, é caminhar rumo ao aperfeiçoamento espiritual.
Um beijo.

Gabriela Rocha Martins disse...

aqui .... onde nos perdemos independente mente das alergias...

forte!



.
um beijo

Maria Luiza disse...

Fa, que prazer aceitá-la no Facebook e mais feliz fiquei de poder ver o seu rosto! Ai! Que bom que é ver com quem falamos, com quem estamos desenvolvendo amizades e principalmente com quem está além mar!
Faz tempo que não vejo seu blog, ele mudou? desculpe-me se ainda não falei desse post. É de sua autoria, assim tão bem escrito? Bem, Fa, aceite meu afeto!

Fá menor disse...

Amigas,
grata pelas vossas palavras. :)



(Maria Luiza,
:)
O Partilhas em Fa menor continua lá no mesmo endereço. Por aqui é uma escrita diferente, mas da minha autoria, sim. Beijos.)

antonio ganhão disse...

O silêncio é como uma cortina que afasta de nós toda essa luz...

Sebastiano Landro disse...

felicitaciones por el post y un saludo

Lilá(s) disse...

È mais fácil culpar os outros do que descobrir-mos onde está também a nossa culpa...
Bjs

Ailime disse...

Amiga Fá,
Um tema muito interessante numa escrita fabulosa.
Dá gosto lê-la.
Muito obrigada.
Bjs da
Ailime

O Árabe disse...

Assim é. Quase sempre, atiramos sobre os outros as culpas pelos nossos próprios erros. :) Boa semana, amiga!

Insana disse...

Tao linda e perfeita suas palavras em forma de letras..

bjs
Insana

AFRICA EM POESIA disse...


A vida é assim culpar para não se sentir culpado.
Deixo um beijo e...



POESIA


A poesia
É magia
Magia linda
Sem idade...
Sem rosto...
Sem cor...

E todos os dias...
O poeta pode olhar...
Pode ver à sua volta...
E fazer dum pequeno nada...
Um mundo diferente...

E fá-lo muitas vezes...
Com loucura...
Porque o poeta...
Põe no papel o melhor de si...
Escreve... sonha... e faz magia...

E pobre daquele...
Que não põe poesia
Naquilo que faz...
E que nem sequer...
Consegue sonhar!...


LILI LARANJO

. intemporal . disse...

.

.

. sei da manhã que alvorece rente à tarde que atarda o dia . sei .

.

. das "coisas" do mundo . do.fim . do segundo que é e será sempre e para sempre . sei .

.

. e sei . das palavras que aqui são a vereda da ressurreição . sei .

.

. um bom.domingo .

.

. um beijo meu .

.

.

Nilson Barcelli disse...

Abordaste um tema interessante e cada vez mais actual, dado que o desemprego e a falta de objectivos pode provocar uma letargia nos jivens que vão ficando por casa dos pais...
Gostei imenso, parabéns pela excelente abordagem.
Querida amiga, desejo-te um bom resto de Domingo e boa semana.
Beijos.

helia disse...

Um texto com muito interesse ! É mais fácil e cómodo culpar os outros, mas antes de os culparmos devemos olhar para nós e analizarmos bem se também nós não seremos culpados...

AC disse...

A subtileza do (re)encontro...
Escrita envolvente, comprometida, de dádiva perante a vida. Parabéns!

Beijo :)

O Árabe disse...

Aguardo a continuação. :) Boa semana!

Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa disse...

Passei por aqui.
Deixo-lhe um beijinho.

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