26/11/2012

A Casa dos Ratos — O Gato Tonecas


Esta casa tem um gato, ai ai ai que feio gato:



Nome: Gato Tonecas

Sexo: Masculino

Idade: 3 anos

Aspecto físico: Grande, gordo e feio, de grandes malhas pretas e algumas brancas, com pêlos sensores brancos nas costas, espetados por entre as malhas pretas; céu-da-boca preto; olhos amarelos; bigodes grandes e fartos. Faz lembrar o Gato Malhado da Andorinha Sinhá.

Qualidades: Caçador de sonhos; educado: não sobe à mesa nem aos armários, dá uma volta pela cozinha e pelo resto da casa se alguma porta interior estiver aberta e, se não vir ninguém, volta a sair; atento e observador.

Defeitos: Também caçador de pássaros; mandrião: estende-se ao sol no alpendre, ou enrosca-se na sua cama improvisada lá num canto; é curioso e guloso.

Medos: Tem medo da dona.

Passatempos: Gosta de saltar de telhado em telhado, deambular pelos quintais e, quando lá lhe parece, às vezes passados dias, é que regressa para casa trepando o muro alto do pátio.

Aqui há gato!


05/11/2012

Minha Laranja Amarga e Doce


Enterrou a unha do polegar na casca da laranja e puxou. Não resistiu a enfiar o pedacinho amarelo-alaranjado na boca e cortar com os dentes aquela parte branca, de dentro da casca, que gostava de saborear. Era leve e adocicada, em contraste com os salpicos amarelos, oleosos e acres, que saltaram da parte de fora e se lhe entranharam nos dedos, e lhe chegaram ao nariz num aroma esborratado de acidez e remédio. Lembrava-lhe aqueles xaropes que a mãe lhe dava em criança quando estava constipado e com tosse. 
Outra unhada na laranja e outra pequena casca prontinha a abocanhar. Num instante, a laranja ficou descascada e toda a parte branca da casca comida. Parecia que tinha passado por ali um bichinho guloso que devorara aquilo tudo, mas não… ou sim. Sim, um bichinho de mãos amarelas e gordurosas e com uma espécie de massa esbranquiçada debaixo das suas unhas: o rasto do que ali acontecera, não podia negar. Tinha-lhe apetecido lavar logo as mãos ao tirar a primeira casca, mas veio-lhe a recordação dos seus tempos inocentes da infância e contivera-se. Passando a língua nos dentes, notou que lhe soubera mesmo bem voltar a ser criança a fazer travessuras. 
A laranja era agora uma bola madurinha e doce a pingar sumo pegajoso para as mãos. Como lhe crescia água na boca! Separou-a em duas metades. Depois, abriu gomo a gomo, que dispôs à roda num pratinho. E ficou a sorrir sozinho: estava já a imaginar o filhito a começar a fazer as caretas azedas àquela iguaria, mas depois a pedir sempre mais, como de costume.

11/08/2012

Carvão Incandescente


Um ferro de passar roupa na mão. Pesado. Parece que pesa mais do que eu. Quente. Tão quente que me afogueia o rosto. É um ferro em brasa: com brasas vivas lá dentro: um coração de brasas fulgentes a rechear um corpo oco. Um coração de fogo, mas que vai esmorecendo aos poucos e que é preciso avivar: soprar com força de um lado, até saíram fagulhas do outro.

Assento o ferro no descanso de ripas de latão; senão, se o pousar no lençol branco que forra a mesa de passar, corro o risco de ele fazer uma marca crestada triangular. É que a base é macia para poder deslizar na roupa, mas não é para lá se demorar. Tiro a mão da pega de madeira e observo-o: o corpo, escuro e todo rugoso, forma um bico na frente como a quilha de um barco e, por cima, tem uma chaminé na tampa (quase parece um pato com o seu bico aberto); na parte traseira, que é quadrada, tem uma pequena abertura, com uma peça redonda espetada do lado de cima, como se fosse uma porta, que se desliza um pouco para um lado ou para o outro, fechando ou abrindo, mais ou menos, para o ar circular e manter as brasas acesas. E, no cimo da tampa, que se prende ao corpo com uma pequena tranca parecida com uma manivela, está a pega em madeira, para agarrar o ferro sem queimar a mão. Pego-lhe outra vez e sinto-lhe o bafo quente. Por dentro arde esse coração em brasa, em cima de uma grelha de ferro um pouco levantada atrás, junto à abertura, para coar a cinza que se vai formando ao desmaiar do brasido.

A mesa de passar é improvisada numa ponta do balcão da loja, forrada com um cobertor e um lençol branco por cima. Tenho um cesto de verga cheio de roupa apanhada do estendal, para ser passada a ferro. E é atrás do balcão que inicio, com esforço, a tarefa de que a mãe me incumbiu. É a primeira vez que o faço sozinha, sem a mãe por perto. Das outras vezes, a mãe espetava-me o dedo, mais do que me ensinava: “isso não tem nada que saber, não tens visto como eu faço?”. É claro que a tenho observado, mas daí a aprender…
E, com pouca ou nenhuma habilidade, lá estico cada peça de roupa com a mão esquerda, enquanto a mão direita maneja o ferro por ela além, tilintando, à vez, ao pousar na roupa e no descanso. Mas isto de passar, vincar e dobrar a roupa tem a sua ciência. Quando chega a altura de passar umas calças, começo por olhar para elas sem saber como fazer. Dobro-as pelos vincos que já têm, estendo-as, levanto o ferro e tento…

O Henrique chega à loja, para vir aviar o que a mãe lhe mandou, e vê a minha dificuldade.
– Não sabes passar umas calças a ferro? Olha que não é assim que se faz!
Acho que não coro mais do que já estava. Ainda tento emendar, mas sem resultado.
– Deixa cá ver.
É ele que me ensina. Sim, é bem verdade, um rapaz é que me ensina a passar calças a ferro. A mãe dele ensinou-lhe aquilo que a minha não foi capaz de me ensinar. Ele mostra-me e explica-me como se faz: vincar uma perna da calça de cada vez, passar de um lado e depois do outro, dobrando com um certo jeito a outra perna em cima para não estorvar; depois repetir o mesmo na outra; assim não se corre o risco de fazer dois vincos porque não se passam as duas ao mesmo tempo.

É tão bom quando alguém nos acende uma luz, mesmo que seja com carvão incandescente.

02/06/2012

Procurando Entender a Mãe


A vida para a mãe é tão simples: resume-se ao trabalho na terra: “É da terra que vem tudo”.

Ela diz que a sua vida foi sempre essa enquanto era rapariga: “andar acarvada no campo a mondar arroz… e comer umas batatitas azedas!...”
– “Ninguém passa o que eu passei!”
Trabalhar de sol a sol; sair de casa ainda de noite e, no regresso, dormir a andar pelo caminho e passar à porta de casa sem dar conta, até as colegas a despertarem: “Ó Maria, aonde é que tu vais? Olha que a tua casa já ficou lá para trás!...”
– “Ninguém passa o que eu passei…”
É verdade que ninguém passa o que os outros passam. Cada pessoa tem que viver a sua própria vida. Não há duas vidas iguais. Mas o que a mãe quer dizer é que teve uma vida dura, passou tormentos.
– “Quem é que hoje passava o que eu passei?!”
Ela diz que, naquele tempo, não havia dinheiro; e que a mãe dela a mandava ir vender figos para “arranjar algum dinheirito”. E lá ia ela, com uma cesta à cabeça, até à praia – “Ó minha senhora, quer figos?” – “e p’ra quê?... p’ra arranjar cinco escuditos… e vinha todo o caminho a contar a moeditas”.
– “Tu sabes lá o que é a vida!... hoje em dia nem sabem que vivem no mundo!”
Por isso, a mãe vive intensamente a sua vida ao ar livre da natureza; porque não sabe viver de outra maneira; e porque não quer viver de outra maneira.
Eu sei que a vida dela, em solteira, não foi sempre assim como diz. A tia disse-me que a mãe até foi uma privilegiada, porque foi aprender a costura, coisa a que as irmãs, as duas mais novas do que ela, não tiveram acesso; e, depois, ficava em casa a costurar enquanto elas iam para a lavoura.
Mas foi aquilo que ela conta o que mais a marcou. Penso que a mãe agora quer vingar-se disso. Hoje, se persiste nesse tipo de trabalho, o faz mais por uma necessidade de liberdade, e também por uma certa necessidade de independência económica. Ela não quer precisar do pai para as suas coisas. Gosta de ir ao mercado e vender fruta, hortaliças, criação, ovos… e poder, no fim, contar o dinheiro, mas agora já não para dar à sua mãe, mas para a sua carteira.

É isso a vida para ela. Então, tenta moldar-me à sua imagem e semelhança.

13/04/2012

A Casa dos Ratos 1


Um dia, pela manhãzinha, o senhor João encontrou uma ninhada de ratinhos, dentro de um saco de trigo.

A adega estava escura e silenciosa quando o senhor João entrou. Em casa ainda todos dormiam. Como o sono o tinha abandonado, pensara então que era melhor levantar-se e ir fazer umas arrumações no celeiro, pela fresca. O celeiro ficava por cima da adega, ao lado da cozinha. Subiu, com cautela, as escadas escuras, de madeira velha a ranger sob os seus passos, sem acender a luz, até ao celeiro, onde o sol começava a querer espreitar por uma janelinha fosca de pó e de teias de aranha. “Isto tem que levar uma grande limpeza”, acenou com a cabeça, em gesto de assentimento aos seus próprios pensamentos.
— Olá!... – desconfiou ele assim que pôs os olhos numa das tampas do comprido cadeirado dos cereais – alguém deixou isto mal fechado... por certo já entrou rataria.
Mal começou a levantar a tampa... e lá estavam eles! Saltou um, depois outro, de dentro do saco de trigo de boca desatada. E, enroladinhos uns nos outros, aninhados no quentinho do ninho em cima do trigo, quatro filhotes pequenininhos que ainda não abriam olho. Puxou instintiva e rapidamente as abas ao saco do trigo, fechando-o com ambas as mãos... E agora?... Que iria fazer, agora, com estes hóspedes cinzentos, horrendos roedores vira-latas?

26/03/2012

O último abraço


De cada vez que relembrava o último abraço, antes de lhe ter fugido, Luísa revivia toda a emoção desse momento. Aliás, a emoção era cada vez maior à medida que o tempo passava e as saudades apertavam. Revia a fofura do corpo de José Miguel colado ao seu; sentia os braços que a envolviam sem nada suspeitarem; o pescoço quentinho onde mergulhara a cara e deixara marcas de baton dos beijos desajeitados, sofridos, mas disfarçados; as costas que afagara de encontro a si num último adeus.
Na altura, sabia que a separação iria doer, no entanto, pensava que o tempo acabaria por curar tudo. Mas não. O tempo trazia a saudade, essa mágoa violenta que a oprimia, sufocava, deprimia. Doía-lhe o peito muitas das noites. Uma opressão constante, mesmo durante o sono, que lhe causava pesadelos. Eram as mãos do José Miguel que vinham para lhe arrancar o coração enquanto ela dormia. E ela debatia-se entre deixar que ele lho tirasse e morrer de amor, ou morrer na mesma de amor sem lho entregar.
Quando acordava, a dor era não só aperto no peito, mas, umas vezes, latejava-lhe no pescoço e corria-lhe ao ouvido esquerdo, outras vezes estendia-se ao braço do mesmo lado, e outras irradiava-lhe para as costas. Era como se tivesse sido erigida uma muralha fortificada ao redor do coração, para o impedir de sair ou alguém de entrar. Então, acendia a luz e suspirava fundo repetidas vezes, para ver se a dor passava. Tentava não pensar nele, mas quanto mais força fazia para o afastar do pensamento, mais ele se lhe intrometia. E voltava o último abraço, com toda a carga emocional e ainda mais alguma. E desejava outro abraço, um próximo abraço que os reconciliasse. Virava-se de bruços como se se deitasse sobre ele, imaginava-se a abraçá-lo de novo. E adormecia nesse abraço. A sussurrar-lhe amor e a pedir-lhe perdão.

27/02/2012

Ovelha Tresmalhada


A manhã, que, como de costume, começara a ferver ainda mal o sol acordara, quase parou quando ele entrou e se dirigiu a uma mesa vaga, bem a meio da pastelaria.

Rogério não tinha pressa. Habitualmente pedia uma bica e uma nata, ao balcão, que engolia apressado, mas hoje não era dia de aulas.

Enquanto esperava que o viessem atender, pensou que devia ter mais dias assim: tranquilos, depois de noites completas, dormidas como se deve, sem a azáfama dos trabalhos para entregar, que lhe roubavam todas as horas de descanso. Engenharia Informática estava a ser mais difícil do que pensara, mas havia de dar conta daquilo.

Os pais tinham ficado emigrados em França, onde nascera e crescera, e ele procurava-se por cá, sozinho, num país que queria que viesse a ser o seu, depois de ouvir tantas histórias que os pais sempre lhe contaram. Se eles, quando eram da sua idade, não tivessem fugido da aldeia, do país, se não se tivessem aventurado a um mundo largo e desconhecido, talvez ele hoje não passasse de um guardador de rebanhos, igual ao que o pai estava destinado a ser… ou talvez nem tivesse nascido…

Mas lá na freguesia ainda haviam de ouvir falar do filho do Chico da Silva e da Alzira Pereira.

07/02/2012

Os Pés pelas Mãos


Agulhas e linhas; pano branco e bastidor; riscos cheios a cordão…
A cheio vai passar a ser, assim, o meu mundo.
Comecei a aprender a bordar a máquina. Agora vivo para isso. As terças e as quintas são para ir aprender, os restantes dias da semana são para praticar.
O primeiro dia foi muito monótono: um bastidor todo a ponto de cordão até aprender a dar o balanço… que ainda não dou bem. Enquanto não se dá o balanço certo, é um meter os pés pelas mãos, linhas rebentadas, agulhas partidas…
Isto de colorir desenhos com linha, à máquina de costura, tem que se lhe diga. Temos de tirar o calcador à máquina e cobrir-lhe os dentes com uma pequena peça, para que o pano corra livre, esticado no bastidor. São as mãos que lhe dão o jeito para que a agulha leve a linha ao bordado, mas são os pés que tocam o pedal, para fazer a agulha com a linha andar para baixo e para cima, a bordar. Ora isto, no princípio, não se coordena muito bem. As mãos e os pés não se entendem, ou melhor, os pés querem ir atrás das mãos, mas não devem. Os pés não podem ir atrás das mãos, senão a agulha anda ao contrário e a linha parte-se. Os pés têm de ganhar ritmo, embalo para a frente, sabendo quando avançar, abrandar e parar, enquanto as mãos voam livres. Os pés tocam a máquina; as mãos pintam poesia.
É aí que está o meter os pés pelas mãos, enquanto cada qual não souber fazer, coordenadamente, a sua parte. Partem-se linhas e agulhas; borda-se ao lado do risco; sai o desenho todo deformado. Mas eu vou aprendendo.
Aos poucos, hei-de aprender a bordar na perfeição.

05/01/2012

Frio


De súbito sentiu frio.
Um gelo fino começou a apoderar-se-lhe das mãos. Um nevoeiro branco, denso, semelhante a escuridão, a inundar-lhe os pensamentos. E um tornado na alma, uma ânsia no coração, um degredo, um medo, uma solidão… e uma coragem vadia, que ora o tocava, ora lhe fugia.

Uma procelosa história de amor tinha-lhe batido uma vez à porta e ele deixara-a entrar, sem reservas. Mas ela tão depressa como entrara assim saíra, não sem antes fazer a porta em pedaços, como se fora um disparo de canhão. E agora o frio entrava. Entrava tudo, porque não havia porta para o proteger.
Mas não se lamentava de ter amado, de amar ainda, mesmo que um amor sofrido. O que o constrangia era não conseguir sair para fora de si, atravessar os destroços mal arrumados e sempre revolvidos, ao encontro da verdade que tinha medo de desvendar.
E assim se enredava numa malfadada dor, que o não abandonaria enquanto permanecesse cobardemente sentado, à espera nem sabia de quê. Que ela viesse até si? Isso seria brilhar o sol no céu da sua noite. Um milagre improvável. Mas ele podia ir até ela, já descobrira onde morava… e, sem que ela o suspeitasse, já a tocava ao longe com o olhar, já a suspirava em cada beijo imaginado, já a sintonizava dia após dia em cada poro da sua pele. Sim, podia ir até ela. Não se sentia era nesse direito. Mentia: o que tinha era medo. Medo. Medo… Medo!
E sentiu mais frio…

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