09/09/2024

Fuga


Disse para si próprio que era loucura.
Quando tinha 23 anos deixara-se envolver, perdidamente, num romance dourado com a sua professora preferida daquele segundo semestre, a mais bela das mulheres, que agora, passados quase três anos, estava ali deitada naquela cama do hospital, com os filhos a cobri-la de beijos, depois de ter estado entre a vida e a morte.
Como era possível que não soubesse nada da sua vida, que tinha filhos, marido?...
Este pensamento atormentou-o. Se tinha filhos, devia haver um homem que a amava... porque não estava ele aqui? Não conseguiu acalmar a agitação provocada pela ideia de que outro homem, apesar de ausente, preenchia um lugar a que ele não tinha direito. "Eu não posso passar sem ela, não agora que a reencontrei."
Mas a verdade é que ela o tinha deixado... sim, claro, havia outro homem... o menino mais pequeno não teria 2 anos e o mais velho uns 7. Como pudera ser tão inocente? Que fazia ele ali, então? Só conseguiu, de momento, imaginar uma solução: iria embora.
Talvez que ela tivesse gostado realmente dele, mas as circunstâncias tinham-nos levado por caminhos diferentes, apesar de agora se terem voltado a cruzar... não, não sabia porque o destino os pusera de novo frente a frente... não sabia como a encarar de novo.
Isto estava a produzir-lhe um turbilhão de sensações confusas, contraditórias, que lhe tornavam dolorosa a sua permanência ali. Afastar-se-ia... rapidamente, antes que se arrependesse.
Deitou um último olhar àquele quadro, enquanto se dirigia à porta, sentindo-se estilhaçar todo por dentro.
Talvez voltasse... ou então não.

08/09/2024

Finalmente


Os braços estendidos com as mãos abertas são asas que planam ancoradas à ânsia de um encontro perdido de afecto; planar é uma forma de suster a respiração, para absorver uma explosão de sentidos inebriante.
 Há uma tela a tingir-se de um colorido novo: a entrada de dois passarinhos com a insegurança de um primeiro voo. Dois olhitos ansiosos, seguidos de outros dois assustados, exploram o espaço desconhecido. Ao fundo, a luz: a figura central, única. Agora, nada mais importa. As pernitas saltitam sem sentir o chão e os bracitos abrem-se e esticam-se para abarcar toda a emoção e deixar esvair toda a saudade, numa configuração de amor e terapia. Dói. Oprime. Sufoca. Mas é vida que flui. Chovem beijos salgados, prisioneiros de um mar de abraços, em sucessivas ondas, que acabam por se espraiar até ao relaxamento; uma dança de mãos que acariciam rostos, de olhares e sons que traduzem a grandiosidade do colo de mãe.
 Agora, nada mais importa: só mãe e filhos juntos, de novo!

07/09/2024

O reencontro


Entre a insónia e o despertar há um mundo de palavras respiráveis, à espera para se soltar.
Do passado à insónia, marcas foram sulcadas, rasgadas, aprisionadas. Marcos de pedra e cal, espetados, amarrados.
A insónia do passado traz consigo uma urgência de se reabilitar.
Entre a insónia e o despertar, um sono mal dormido, numa ânsia mordida, calada, dorida… parada, sofrida.

Abriu, por fim, os olhos. Viu-o. Era ele. Afinal… era ele. Era tudo tão estranho.

Olhou-a, como quem não sabe o que quer; como quem não sabe o que faz; como quem não sabe nada de nada. Era tudo tão estranho!

Ele estava ali. Ela estava ali. Frente a frente. Como num sonho, ou num feitiço, em que os dois são outros e não eles. Meses e meses de dor concentrados num momento. Meses e meses de amor prisioneiros de um olhar.
Ambos sentiram, de repente, falta de um mimo. Falta de o receber e de o dar.
José Miguel aproximou-se e tomou-lhe a mão… De olhos nos olhos e de mão na mão, todas as palavras são demais. Todos os gestos revelam as palavras não ditas.
As lágrimas acabaram por se soltar, os soluços por irromper. Ambos deram vazão à emoção que os sufocava. Nenhum dos dois conseguia falar; só o facto de estarem juntos já preenchia todo o vazio que se houvera instalado durante a longa ausência. José Miguel foi impelido a afogar o rosto no pescoço de Luísa e esta a afagar-lhe a cabeça, a apertá-lo de encontro a si. E assim permaneceram por largos minutos, até serem interrompidos. Então olharam-se ainda ébrios do que sentiam.
Como faz falta um mimo!


02/09/2024

Regresso ao mundo III

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“Não éramos iguais. Nunca foi uma relação de iguais… tinha de me afastar.”
Sempre a mesma desculpa. E sempre o mesmo peso na consciência. E sempre o mesmo amor teimoso a não dar tréguas nem sossego. Tanto tempo já passado e tantas lutas para que a tranquilidade visitasse o seu coração, e até parecia que, à medida que o tempo passava, a inquietação se instalava mais.

Tinha ficado de tal modo atrapalhada ao avistá-lo ao longe, que não reparara no automóvel a grande velocidade e se deixara atropelar, quase mortalmente. Fora um milagre ter acordado daquele coma profundo, depois de ter sido dada como morta.
A sua primeira preocupação tinha sido com os seus meninos e pedira socorro para eles, mas acordara com José Miguel na memória, talvez devido ao facto de ele nunca de lá ter saído. Ele era o seu constante pesadelo.

Quando sentiu uma respiração quente a acariciar-lhe o rosto, o pesadelo suavizou, mas nada daquilo podia ser real. Não podia ser… já sonhara aquele sonho tantas vezes... Era somente um produto da sua mente perturbada que insistia em atormentá-la.
No entanto, aquele beijo parecia tão verdadeiro que não queria acordar. Perfeita alucinação em que mergulhara e que lhe transmitia um bem-estar interior tão intenso que queria que perdurasse, para não ter que dar ouvidos aos remorsos de o ter deixado, sem lhe contar a verdade, e que não a largavam nunca.

Poderia ele perdoar-lhe?

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