28/02/2025

Inocência

A felicidade é da cor de um céu sem nuvens e tem retido o odor das flores silvestres que se inspira, em tardes soalheiras, ao longo dos pinhais por desbravar; o canto das cigarras e dos grilos imprime-lhe o tom da melodia que sai da boca da criança, que apenas tacteia ao começar a desfolhar o livro da vida.
Oh, como sou feliz ao perscrutar os anelos do coração, os anseios de uma alma que ainda não ousa abrir os olhos!
Voo em meu redor, como uma borboleta mal saída da crisálida. Tudo à minha volta foi feito para mim. É meu.
As primeiras lembranças são marcantes. Permitem a um ser abrir-se ou fechar-se, dar-se ou retrair-se.
A idade da inocência é como o carneirinho da tia a quem ensinei a dar marradinhas.

O carneirinho estava sempre fechado naquele curral ali em baixo, na parte de trás do terraço.
Era de pêlo branquinho, tão pequeno, tão lindo!...
Quando a tia ia levar o almoço ao tio mandava-me para a minha mãe. Mas eu batia o pé e não queria ir. Sentia-me melhor em casa da tia.
- Não podes ficar aqui... tenho que fechar as portas. Olha, só se ficares no curral do carneirito. - Dizia-me a tia, para que eu fosse para minha casa.
- Eu fico com o carneirito. - Respondia decidida.
E a tia fechava-me lá no curral ao pé dele, avisando depois a minha mãe.
O carneirinho aproximava-se de mim e eu, com algum receio, colocava as mãos à frente para me proteger e mandá-lo parar.
- Ai não, não, não, não...
Mas ele batia levemente com a cabeça nas minhas mãos, aprendendo assim a dar as primeiras marradinhas, claro que pelo seu instinto, mas também pela força do meu gesto repetitivo.
E era assim que a minha mãe nos surpreendia.
A beleza destas brincadeiras faz-me acreditar que a inocência anda sempre de mãos dadas com a felicidade.
[4] 
(Publicado em livro: Memória Alada, 2011, pág. 14)

13/02/2025

Espelho meu...

Hoje o pai levou-me ao cabeleireiro. E comprou-me uma calça comprida e uma camisola com comboios na frente.
A mãe barafustou. Isso eram ares que se dessem à garota? "Olhem para esse cabelo! Não era muito mais lindo como estava? Era preciso ir gastar dinheiro à cabeleireira para lhe fazerem uma coisa destas? Eu não lho tenho arredondado sempre? E as calças!? Onde é que já se viu uma cachopa de calças? Tu não tens juízo nenhum... é por essas e por outras que..."
Fechei-me no meu quarto à espera que se calassem.
O pai é mais novo do que a mãe. Não em idade, mas em ideias, na maneira de ser e de viver. Se calhar por conhecer e falar com tantas pessoas. Quando sai gosta de ir bem vestido e engravatado e de corrente do relógio à cintura. E tem orgulho em me apresentar aos seus conhecidos.
A mãe é antiquada. Não tem gostos. Mais parece minha avó. Só me quer vestir com os vestidos de chita que ela própria costura.
Mas quando eu era mais pequenina era uma princesa. Ouço contar que, quando ainda mal falava, o tio do Brasil, quando cá veio, me trouxe um casaco de crochê branquinho, que fez a inveja da minha vizinha:
- Eh cachopa, pareces um Bispo!!!
Quando alguém me perguntava o que ela me tinha chamado, eu respondia "O Bico! O Bico!"
Dizem-me que eu era uma menina "nas mãos das bruxas"...
Eu não sei muito bem o que isto quer dizer, mas penso que é por eu ser a única criança pequena da família toda. As bruxas devem ser as minhas três primas, que são raparigas crescidas que já vão para a "Borda d'Água", e que gostavam muito de andar sempre comigo ao colo.

Já não estou a ouvir vozes. É altura de ir ao quarto dos pais ver se estou bonita!
Neste quarto há dois espelhos grandes, um no guarda vestidos, de um lado da cama e outro no peciché, do outro lado, um em frente do outro. É aqui que gosto de me mirar!
"Espelho meu, espelho meu, haverá alguém com um sorriso tão lindo como o meu?!"

É o pai que me tem ensinado a ser vaidosa. Para desespero da mãe.
[7]
(Publicado em: Memória Alada, 2011)

11/02/2025

Quase como ouvi contar

Na era do antigamente - em tempos magros, de fome, quando os meninos, mal saídos da parca mama das mães, cedo iam ser criados dos senhores mais abastados, a fim de poderem ter um pouco mais para a boca do que na casa paterna -, o pastorinho do rebanho das cabritas todos os dias levava os animais a pastar em roda da capelita de San Sadurninho. Na bolsa do farnelito, umas míseras côdeas de broa seca, que o seu amo lhe mandava para o dia inteiro.

A fome apertava, a broa era dura de roer, e o santo na capelita tinha azeite numa griseta para arder.
O rapazito, faminto, eleva uma côdea em direcção ao santo, como quem espera uma bênção que a transforme em manjar do céu.

 Ó mê xantinho xan Xadurninho vosmixê dá lixenxa que eu molhe aqui nha broa no xeu guijaujinho?

E o santo, como bem de ver, nada de responder!
E torna o moço:

 Ó mê xantinho xan Xadurninho vosmixê dá lixenxa que eu molhe aqui nha broa no xeu guijaujinho?

E o Santo parecia que era mudo... ou fazia-se.

 Mas vosmixê não ouve ou quê?... Ó mê xantinho xan Xadurninho, xantinho da nha devoxão, vosmixê dá lixenxa que eu molhe nha broa aí, aí, nexe ajeitinho dexe xeu guijão?

E resposta, nenhuma!

 Ai vosmixê não responde? É porque quem cala conxente! Poix atão eu molho, e hei-de molhar e xopotear!

E assim, todos os dias, o coitadinho condutava a magra e seca broa com o azeite do santinho, que foi até ao lamber do acabar.

10/02/2025

Arte(lharia)

- Isto mais parece um SALSIFRÉ, saído de uma qualquer FÁBULA ESCAGANIFOBÉTICA! Assim disparou dona Prazeres, toda finesse, de braço dado ao seu NOVO namorado, enquanto percorriam a galeria. 
- Não gostas, minha querida? – Pergunta-lhe o namorado, com o sorriso a esmorecer-lhe nos lábios. 
- Não! E não vais QUERER que eu diga que gosto, só para te fazer o jeito! 
Luizinho sentiu-se à DERIVA, a ficar sem pinga de sangue. Tinha preparado a exposição com tanta PAIXÃO, com tanto amor e dedicação… e agora… agora o resultado era esta insatisfação! 
- Estás a mangar… não vês que isto é arte, minha querida?! – Refere ainda com alguma exaltação. – Um estilo de arte muito SINGULAR! 
- Arte? Chamas arte a estas esborratadelas, a estas bacias cheias de mazelas, a estes cacos espalhados pelo chão? 
O namorado, coitado, a sentir-se mal-amado, não queria acreditar neste AUTÊNTICO descalabro. Ele que pensara fazer-lhe uma surpresa, daquilo que, para si, constituía uma proeza, e ficava agora mudo e quedo, debatendo-se entre o argumentar e o encolher-se num canto a chorar. Ele bem sabia como a dona Prazeres era difícil de contentar… mas ainda pensara em fazê-la RENASCER com a sua arte… talvez que nisso ela pusesse um LÍMPIDO olhar. Mas, qual quê? O seu SUPREMO mau feitio tinha que dar o seu sinal! E foi isso que fez com que a coisa azedasse e tivesse corrido mal. Mas então, o Luizinho, longe de estar resignado à sua sorte, replica-lhe num rasgo audaz: 
- Pois olhe, minha querida, não é assim que se conquista o coração cá do rapaz!
(Mais um texto das 12 Palavras - 10.º jogo )

09/02/2025

À descoberta


A luz que se escapa pelas frinchas da porta do quarto não chega ao quarto dos pais, que fica no outro extremo da casa. Por isso não corro o risco de ser surpreendida acordada.
Desse modo, devoro o livro, à luz do candeeiro, e nem dou pela noite passar.
Uma das vantagens de se ter irmãos, rapazes, mais velhos, é a de ter acesso a livros que, uma menina da minha idade, de outro modo não teria.
Durante o dia, com eles fora, dou por mim a vasculhar-lhes as prateleiras. Estas são uma tentação para a minha curiosidade. Paulo e Paládia, Amor de Perdição - arregalo os olhos - e tantos e tantos outros...
Vou levando um a um, que não descanso enquanto não leio o mais rapidamente que consigo.
A par da leitura, a imaginação vai voando para a terra dos sonhos e é como se flutuasse num balão colorido à procura do Arco-íris.
Já começa a clarear quando me proponho, finalmente, começar a dormir.
O chilrear dos passaritos é a música que me embala o sono...
[6]
(Publicado em: Memória Alada, 2011, pág. 18)

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