23/09/2008

Pétalas murchas


Chama-se Rosa. No seu nome, uma ténue semelhança com a sua vida – nos espinhos que uma e outra possuem. Ela bem que se rodeia de flores que lhe ornamentam o jardim e toda a casa, e que em cada manhã, ainda mal desponta o sol, ela cuida com carinho, colocando água nas suas raízes, e falando com elas como se fossem suas filhas. Mas toda a sua vida foi um movimento constante à procura de um método eficaz de alcançar um farol, ou mesmo um luar que lhe alumiasse a escuridão.

Bem cedo, quase criança ainda, a custo obteve licença dos pais para fazer uma viagem a outro país, à procura da felicidade que tardava em chegar. Mas regressou, passados poucos anos, com o corpo amortecido e pena no olhar. A felicidade não estava lá!

Num Verão cheio de azul experimenta um desconhecido sobressalto no peito ao conhecer um nefelibata que virá a ser o seu marido – um copinho de leite que nunca deixará as saias da mãe. Sentindo-se inundar por um sentimento avassalador, Rosa foi-se deixando levar na conversa deste menino da cidade e, passado algum tempo, uma sombra a vem trespassar ao perceber que se encontra grávida. Essa vulnerabilidade arrasta-a para um casamento a todo o vapor que a vai afastar da família e, lentamente, mergulhar num ostracismo do qual só com algum esforço se libertará.

Comungar difícil este, entre uma rapariga do campo e um moço da cidade. Lisboa é um degrau que a faz mergulhar de cabeça num imenso mar desconhecido.

É num apartamento, porta com porta com o dos pais dele, que se sente como que encerrada dentro duma caixa, de manhã à noite, enquanto ele sai para trazer, ao fim do mês, algum dinheiro para as despesas dos dois e do bebé que vem a caminho. Mas o maldito dinheiro mais parece ter-se erodido. Acaba por descobrir, mais tarde, que afinal os ordenados que ele diz ter em atraso já foram gastos a pagar as compras da mamã. Começa aqui a tempestade que vai provocando o distanciamento, rumo à morte de um amor que se foi tornando a fusão de um céu com um inferno. Luís nunca se libertará da mãe e Rosa nunca conseguirá penetrar esse casulo e, por mais que se esforce, não se consegue adaptar a essa vida. Assim, aos poucos, isso vai-se tornando numa enorme obstrução àquela vida a dois.

José nasce com estas linhas a delimitar o seu meio envolvente, e é ele o exponente que permite a Rosa emergir da loucura que já começava a apoderar-se dela. É por ele que, uns meses depois, decide regressar à terra, àquela tapeçaria de luz e cor, de cujo orvalho tanta falta sente. Luís, se os amar, acompanhá-los-á, pensa.

Com a promessa de que se mudaria definitivamente para a aldeia, Luís começa a passar com a esposa e o filho todos os fins-de-semana. Tudo parece bem encaminhado. De cada vez que estão juntos a paixão parece embriagá-los, o amor que os une parece derretê-los como se fossem chocolate.

Mas chega uma altura em que o que era certo começou a ser variável, e o que parecia ser, deixou de parecer. Luís alega afazeres que o retém na cidade e Rosa sabe que a silhueta da mamã nunca o largará. Mas ainda não sabe tudo. Um pressentimento avisador e conselheiro leva-a a procurar vasculhar o que porventura se passará.

E descobre. Mas descobre tarde demais. É como se um raio a fulminasse na vertical. O marido tem um amante. Um homem que vive com ele na sua casa, que partilha com ele a cama que era a sua. E sente-se conspurcada com esse lodo que lhe penetra a pele, a carne, as entranhas. E sente-se de repente atravessar por uma náusea que lhe arranca o coração, quando o marido, de rosto lívido como a cal, lhe confessa ainda mais.

E agora, é de cotovelo apoiado no parapeito da janela, e de mão sustentando a cara, que pensa no que há-de ser a sua vida, a partir do momento em que se tornou numa rosácea de pétalas murchas. Aquele momento em que recebeu a confirmação do já esperado. A confirmação de que contraiu HIV.

(baseado em casos reais)

26 comentários:

  1. O teu mundo é denso, falta-lhe uns quantos espinhos aparados e mais rosas.

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  2. Pois... mas há mundos assim! Sei-o.

    Neste conto, quaisquer semelhanças com realidades não são meras coincidências.

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  3. Parece mesmo que coincidências há muitas, infelizmente. O erro permanece no tempo, as consequências é que são cada vez mais graves. Mas nem assim se vislumbra uma mudança na forma de agir.

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  4. Mais um texto que me deixou presa até à última letra. Muitos parabéns, Fá, pela inspiração, pela transpiração, pelos temas abordados, pela sensibilidade.
    Beijinhos

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  5. Cris,
    é verdade. Se olharmos à nossa volta encontramos Retalhos que dariam filmes!

    Obrigada por gostares de me ler :)
    Beijinhos

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  6. Anónimo19:13

    ROSA

    "Rosa em verso, rosa em prosa:
    rosa rosa.
    Verdadeira, recortada,
    sempre votiva é a rosa.
    Quem a dá, quem a ostenta,
    quem a colhe, quem a inventa,
    quem dela - a rosa - se lembra
    faz o voto de quebrar
    a pessoal solidão.
    Se não troco o pão por rosas,
    não troco a rosa por pão.
    Rosa.
    Rosa em verso, rosa em prosa:
    rosa rosa.
    Rosa nome, rosa coisa,
    rosa flor, rosa rosa,
    rosa traço de união.
    Rosa fugaz, recolhida
    noutra rosa já nascida.
    De rosa em rosa é a vida.
    Ó rosa breve fulgor,
    lampejo na escuridão.
    Se não troco o pão por rosas,
    não troco a rosa por pão."

    Alexandre O'Neill

    Obrigado pela visita.
    Não iremos estar de acordo naquela questão... Estaremos noutras certamente.
    Cumprimentos.

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  7. André,
    Acredito que estaremos de acordo noutras coisas, sim.
    Mas quando eu estiver em total desacordo com algo que mexa comigo, podes ter a certeza de que não ficarei calada.
    Obrigada pela visita também. Será sempre um prazer saber-te por cá.
    Cumprimentos

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  8. Anónimo19:39

    viva :) estes rabiscos inspiradores já estão nos meus links ;)

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  9. Usaste de forma magistral as 60 palavras e contaste uma história que, hoje em dia, faz parte da nossa realidade. Muito bem. **

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  10. Quantas vidas desfeitas como esta, vidas com o aroma das rosas e a dor dos espinhos.
    beijinhos

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  11. Quando a vida descobre a morte bem alí no aconchego do seu lar a dor é ainda maior. Como machuca e magoa a traição, mormente ao trazer desgraças. Belo teu blog. Será um prazer voltar a visitá-lo outras vezes.

    Fraternos abraços neste domingo

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  12. Olá Amiga querida,

    Apesar de saber de toda a tua capacidade e gosto pela escrita, conseguiste-me surpreender pela forma como conseguiste usar as 60 palavras. Sinceramente eu acho que nao teria conseguido... Muitos muitos parabens!

    Nao posso deixar porém de deixar de lamentar a forma como termina, poderá passar uma má mensagem que nem nem é verdadeira... Fico com pena.

    Beijinhos para ti

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  13. Ana,
    Obrigada!



    Vida de Vidro,
    Obrigada:)
    A realidade por vezes toca a ficção!
    Beijinhos



    Multiolhares,
    Vidas que se fazem e desfazem por se querem só rosas e não se suportarem os espinhos.
    beijinhos



    Gilbamar,
    Se a traição dói, a desgraça aumenta a dor...
    Obrigada pela visita e volte, sim!



    Cátia,
    pode-se dizer que, relativamente ao HIV, não existem grupos de risco. O que existem são comportamentos de risco. O que quer dizer que qualquer um está sujeito.

    Já referi em cima que as semelhanças deste conto com realidades não são meras coincidências.

    Esta história não é a história de uma rosa, mas partes de várias rosas que deram a história de uma Rosa...

    Um grande beijinho
    e critica sempre, que eu gosto!

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  14. Querida,

    Fiquei com pena pela forma que terminou porque, por muito tempo, a doença foi (só) associada a grupos de risco, nomeadamente a homossexuais. Mas a verdade é que é uma doença que pode tocar-nos a todos, de todas as raças e estratos sociais. Chamei-te a atençao porque, o facto de o falares aqui, associado à homossexualidade, pode trazer esse preconceito. Porque foi falado em que o marido tinha um amante e não necessariamente em comportamentos de risco.

    Mas como disse, o texto está optimo, gostei muito mesmo. Apenas nao podia deixar de dizer o que achei, como faço sempre :)

    Beijinho grande amiga querida

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  15. Mas se reparares, amiga, existe aqui um grande comportamento de risco.
    O facto de haver uma relação extraconjugal com outra pessoa (independentemente de ser homem ou mulher) ao mesmo tempo que com o parceiro legítimo, sem serem tomadas as devidas precauções, faz com que se corra e se façam correr, vários riscos, nomeadamente no campo da saúde, para além da traição, que por si só, já é um grande mal que enferma o quotidiano das nossas sociedades.

    Fizeste bem de levantar essa questão, dando oportunidade a falar de um assunto pertinente.

    Um grande beijinho

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  16. Anónimo11:38

    Muito bom o texto, mas isso não é novidade. O tema é muito interessante também.

    A falta de escrúpulos é o comportamento de risco, na minha opinião. E a necessidade das pessoas se esconderem, de fingirem o que não são, para serem aceites pela família, pelos amigos, pela sociedade, leva a que existam traições como a que descreves.
    Muitas são histórias como esta que se contam no feminino e no masculino. Na minha opinião, resulta essencialmente de dois factores, a falta de caracter e o preconceito!

    Beijinho grande!

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  17. que enorme escrita e perturbante momento, marcou-me...

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  18. Admiro-te! "arrancaste" um belo texto dramático com aquelas impossíveis 60 palavras! Eu desta vez não tive disponibilidade para tal tarefa...:))

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  19. Marta,
    o teu comentário diz muito!
    A falta de carácter e o preconceito são, muitas vezes, as desculpas para muitas situações de negligência e não só. Agora, a falta de escrúpulos começa a ser o dia-a-dia do nosso mundinho, levando inocentes a pagar facturas que não devem!

    Obrigada e
    Beijinho grande



    Tiago,
    Fico contente por teres gostado!
    Obrigada



    Justine,
    pois, mas andei muito tempo a remoê-las! :)
    Mas gostei muito de responder a mais este desafio.
    Para Outubro há mais 12, por isso minha amiga, vá de começar a preparar...
    Beijinho
    E obrigada!

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  20. Porque pensamos que nunca nos acontecerá a nós...

    Gostei!

    Um beijinho*

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  21. Peregrina,
    é verdade. Mas pode acontecer!
    Beijo

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  22. Enfim, como cantava a Ellis: 'São coisas da Vida, coisas do mundo, coisas de qualquer lugar...'
    Esse menino da mamã merecia ir a tribunal!...
    O texto está excelente, Fá. Bem narrado e escrito. Foi um prazer ler-te.
    Dias felizes... Abraços
    ~~~~~

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  23. Genial relato te mando un beso.

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  24. Nossa, nao sabia que era baseado em casos reais.

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  25. Surpreende me ser baseada em factos reais

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Truman Capote diz:
«Quando se trata de escrever,
acredito mais na tesoura do que na caneta.»...
Mas eu escrevo aqui por entre o imaginado e o sentido; e
«Entre meus rabiscos e minhas ideias há um mundo de sentimentos.» (Marcelle Melo)
.
Leia pf: Indicações sobre os Comentários

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