18/06/2023

Regresso ao mundo I

A janela semicerrada deixava entrar uma claridade suave, que transmitia uma aura pacificadora e tranquila. O silêncio era entrecortado, aqui e ali, por um misto de vozes sussurradas e passos no corredor.

Deu a volta à cama, aproximando-se da janela e ficou por momentos a espreitar pelas frestas, sem nada ver.
O coração queria saltar-lhe do peito, tal era a sua ânsia de a abraçar, de a beijar. Mas tinham-lhe recomendado que não a acordasse. Estava sob o efeito de sedativos pois os traumatismos eram muito grandes.
Olhou-a. O seu rosto tinha o mesmo encanto que o prendera, apesar daquela marca roxa do lado esquerdo.
Será que se lembraria dele?
- Quem está aí?... – perguntou Luísa num leve murmúrio.
Entreabriu os olhos e tentou fixar aquela silhueta luminosa que se encaminhava para si.
Ele não resistiu a pegar-lhe na mão, sem dizer nada.
Ela baixou novamente as pálpebras, deixando a sua mão naquela que a prendia, sentindo como se fossem duas gotinhas de água juntas num lago azul. Sonhava. O mundo parecia cantar.
Continua

30/05/2023

Sombras III

De cara envolta como que numa nuvem de pó de talco e sentindo-se a flutuar em denso nevoeiro, parecia-lhe ouvir umas vozes perto de si. 
Alguém, uma vida, um fim. Uma noite de luar negro. Era jovem e um espectro se acercara. E não havia resistido. Tudo se resumia, assim, a um ponto final. 
Pela maneira como ouvia a descrição parecia-lhe ver aquele seu ex-aluno da faculdade, aquele que via sempre como se fosse numa miragem. Um delírio, uma ilusão, um oásis inalcançável no seu deserto. Por vezes um sonho, outras, um pesadelo no seu sono agitado do meio da tarde. Via-o: o corpo esbelto, a cara miúda, o cabelo meio comprido… Era ele… ou delirava? Sentiu uma dor aguda. 
Num relance, algumas cenas passadas desfilaram pelos seus olhos. Viu-se a andar pelos corredores de mãos ocupadas pelo material de trabalho. Deslumbrou-se com aquele olhar que se cruzou com o seu pela primeira vez. Sentiu o coração bater apressado ao verificar que o tinha perto de si, na mesma sala. Experimentou uma sensação de frio na espinha, que a percorria, e pressentiu que a sua alma o amava. Reviu hipnotizada o seu sorriso que lhe falava mais do que muitas palavras. Viajou para além do impossível quando ele a amou. Reviveu momentos a que julgava não ter mais direito desde que perdera o único homem que até então tinha amado. Assistiu serena à confirmação pelo médico daquilo que já sabia. Olhou-o longamente enquanto dormia, retendo bem a sua imagem para não mais a perder. Mudou de cidade e deambulou por corredores diferentes, porque não podia cortar as asas a um anjo. Foi de novo mãe e pai ao mesmo tempo. Reviu-se a viver cada dia tendo como único objectivo a felicidade dos seus frágeis rebentos. Reconheceu-se a caminhar à pressa pela rua, acorrendo ao chamado de uma amiga. Avistou-o ao longe e fugiu de um encontro, sentindo o coração partir-se outra vez em mil pedaços. Lembrou-se dos meninos sozinhos em casa. Sentiu a vida irremediavelmente perdida quando viu o automóvel na sua direcção a grande velocidade. Nuvens e sombras a toldavam agora. Estava de novo no presente. Pensava. Não… Havia uma confusão qualquer. Onde estou? Sentiu frio. O coração acelerava… Alguém se aproximou rapidamente. Encarou-a. 
- Está viva! … 
Afinal, de quem falavam? 

Tinha acabado de acordar de um sono do qual não era para acordar. Do qual ninguém acorda assim... facilmente!

14/04/2023

Sombras II

Tinha reparado com atenção em toda aquela inusitada cena na piscina e seguiu-os. Sabia como lidar com crianças, sentia aptidão natural para isso. Por isso foi-lhe fácil aproximar-se e falar com cuidado e meigamente. Procurando ganhar a confiança deles, começou por perguntar com se chamavam. Manuel e José, respondeu o maiorzinho, apontando para si e para o irmão, respectivamente. Que faziam ali sozinhos? Que não sabia da mãe. Esta, ao sair, tinha-lhe pedido que tomasse conta do irmão. Seria por pouco tempo. Não demorava. Uma colega tinha necessidade da sua ajuda e era preciso que lá fosse.
Primeiro pensou que ela tinha precisado demorar um pouco mais, e adormeceram no sofá da sala enquanto viam televisão. Do dia seguinte acordaram e ela não estava no quarto. Se calhar tinha saído para fazer alguma coisa e não tinha querido acordá-los. Comeram bolachas com leite, e mais tarde os iogurtes que estavam no frigorífico. E à noite a mãe ainda não regressara.
Hoje resolvera procurá-la nos lugares onde ela os costumava levar. Não tinham mais ninguém em casa. Sentia muito a falta da sua mamã. Tinha medo que lhe pudesse ter acontecido alguma coisa de mal.
O pequenino pedia a mãe. Pegou-lhe ao colo e acarinhou-o como se fosse filho seu. Adormeceu-lhe no regaço enquanto o acariciava. O outro encostou-se-lhe também e sentiu-se invadir de uma ternura imensa. Estes pequeninos precisavam de alguém que olhasse por eles, que lhes encontrasse a mãe, que os protegesse, tão indefesos e carentes estavam, e tão à mão de predadores, alheios ao perigo que corriam. Tinha que fazer alguma coisa.
Entrou com eles na igreja enquanto o mais pequenino dormia e ficaram um pouco em silêncio naquela penumbra refrescante. Pediu ajuda à Virgem. Era preciso fé e esperança.
Mais tarde, levou-os a lanchar e acompanhou-os a casa, talvez a mãe já lá estivesse. Não estava. Viu fotos... e o seu sangue gelou e ferveu... procurou nomes, telefonou. Fez-lhes o jantar e comeu com eles. Tranquilizou-os, encontraria a mãe! E adormeceu-os contando-lhes uma história.
Fez mais telefonemas. Sim, estava ali… meu Deus, deveria ser ela! Sentiu-se invadir por uma convulsão incontrolável, um sentimento de perda irreparável, um vazio sem esperança. Agora estes meninos não tinham ninguém, não tinham mais ninguém senão a si... e tomou a decisão: seria o seu pai. O pai que eles pareciam não ter.

24/03/2023

Pontos nos iiiiiiii


Arrefeceu. De repente. Num dia estávamos sob calor escaldante, no outro dia já debaixo de uma tempestade glacial. Foi um pulo de gato. Um salto de pardal. 
De Verão para Outono, uma negaça do sol, uma pirraça da lua. Um gesto que me sonega a estrada ao fim da rua e o norte, a leste de ser tua. 
Lá longe, onde moram os poemas, o tempo veste a roupagem do mar; e vem mostrar-se numa luz de olor e arrepio, num misto de sono e despertar, de calor e de frio. Do longe se faz perto. Mas por mais que se tente prolongar o calendário, ele não estica como se desejaria. E cai o vermelho levemente esborratado em sombras; e o azul projecta-se em choro de metáforas no vento. 

Vem. Dança à chuva de melodias de partida; numa chegada breve, mais fugaz que de fugida; num sopro só de vinho e de alento. 
Vem. Não partas, ainda, triste. Saboreia o sal: a dádiva que banha os rostos quentes em sobressalto. Ainda que abstractamente, mente-me sem dor. Deixa-me com uma nesga de calor. Diz-me que há sol, e luar, e que, apesar das nuvens, há gente nobre e quente, que sabe aquecer um coração dormente. 
Porque arrefeceu. De repente.

08/01/2023

Presépio na Montra e A Fuga para o Egipto


Este meu presépio aqui na montra da loja é bem mais pequeno do que o do tio Zé. O dele é enorme! Estende-se pela adega além, em cima de um palanque de tábuas para dar uma altura, que foi revestido até ao chão de papel pardo, retirado de sacos grandes de farinha, enfeitado depois com fitas e bolas coloridas e brilhantes. E o mais importante: tem imensas figurinhas. Perco-me a observá-lo sem nunca me cansar. A cada Natal há sempre mais coisas que o tio vai acrescentando: luzes, água, um ou outro movimento, campainhas que tocam ao ser puxado um cordel que vem pela parede até à porta…
Para além das figuras iguais às que o meu presépio também tem, há outras que me causam alguma estranheza e admiração. Gosto tanto de apreciá-lo e de fazer perguntas! Ó tio, o que é este? Ó tio, e este? Ó tio, e ali aquele?... E o tio com a sua paciência pachorrenta vai-me explicando, como quem está a ensinar catequese – o tio é catequista.
 
Por exemplo, tem um velhinho de barbas brancas com um menino pequenino às costas: diz o tio, que é o Ano Velho que traz o Ano Novo. Tão giro! Nunca tal me passaria pela cabeça: o Ano Velho e o Ano Novo em figura de gente... (e enquadrado no presépio... humm... um homem velho carregando um Homem Novo! Algo a ver com Jesus terá... ainda cheguei a pensar que seria o Pai Natal e o Menino Jesus, que tola, sei lá!...)

Intrigou-me também uma figura de uma senhora que puxa pela mão, como que arrastando, uma criancita que parece ir a chorar. Lá mais atrás uma figura de um militar empunhando uma espada. O tio diz-me que a senhora e a criança vão a fugir dos soldados do Rei Herodes, aquele malvado, que mandou matar todos os inocentes meninos pequenos até aos dois anos de idade, para ver se entre eles apanhava o menino Jesus para o matar. Pois se Jesus é o Rei dos Judeus, pensava ele que vinha usurpar-lhe o seu lugar no trono, não percebendo que o Reino de Jesus é um reino de paz, de amor e de graça de Deus, de vida, de verdade e de justiça; um reino bem diferente dos deste mundo. 

Também detive o olhar, mais além, num burrito que carrega Nossa Senhora com o Menino ao colo, com S. José adiante a pé, segurando o burrinho pela arreata. Conta que vão em fuga a caminho do Egipto, para que Herodes não apanhe e mate o Menino. São José tinha sido avisado num sonho, por um anjo, para que fugissem para o Egipto e por lá permanecessem até que passasse o perigo e lhe fosse transmitido que poderiam regressar.

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