31/12/2024

Presépio na Montra e a revisita


Volto ao presépio do tio Zé. O fascínio das suas figuras impeliu-me a revisitá-lo e a observá-lo mais demoradamente.

São figuras pequeninas, de barro pintadinho de cores bonitas, que na sua simplicidade tornam este presépio num lugar mágico, cativante, onde se misturam a criatividade com o belo; e como que a pureza sobressai e vem ao nosso encontro e nos quer falar.

Detive novamente o olhar na figurinha mais intrigante para mim: o Ano Velho com o Ano Novo às costas. Como cheguei a pensar que seria o Pai Natal carregando o Menino Jesus, tenho de o apreciar melhor. Que nos quererá mesmo dizer esta figura no presépio?!...

Que o tempo não termina com o fim do ano, mas continua em tempo Novo, ou renovado?...
Que o tempo de Natal tem o fim do ano e o início de outro pelo meio?...
Que um ano passa o testemunho de Natal ao outro ano?
Que Jesus Menino não é só no Natal, mas se transporta de um ano ao outro?

Sim, para esta figura estar no presépio, terá algo a ver com Jesus...

Ano velho e Ano Novo: dois tempos… figurando num homem velho carregando um Homem Novo! O Tempo que passa e que vem Menino ao nosso mundo… na “plenitude dos tempos”.

Ah, será que quererá significar que no Natal há um ano velho que acaba e um ano Novo que começa?... um antes e um depois? que ali há um marco histórico e sobrenatural? Um tempo velho e um tempo Novo?

Se o nascimento de Jesus é uma boa notícia, uma Boa Nova, será que nos vem dizer para deixarmos para trás o que é velho e começar o Novo?... ou de novo? que o que em nós é velho tem de dar lugar ao novo, ou renovado?...

Tantas interrogações a que uma simples figura nos pode levar!...

Mas acho que sim, que é isso... – uma coisa é certa: não podemos ficar indiferentes ao Natal, que é tempo de nascimento, de nascer sempre a cada ano, outra e outra vez, nascer de Novo, nascer O Novo. O Homem Velho dá lugar ao Homem Novo. Homem Novo que é Jesus, e que tem de ser também cada um de nós que O ama e segue.

O velho tem de dar lugar sempre ao Novo, à novidade – o velho tem de carregar sempre o Novo, como a criança de colo que fomos tem de ser carregada e mantida sempre em nós, pura, perfeita, inocente, humilde e linda.

Pois que se vá o ano velho que em nós se instalou e um Ano Novo connosco viva, em revisita constante de Jesus ao nosso mundo, ao nosso eu.


28/12/2024

Presépio na Montra e A Fuga para o Egipto


Este meu presépio aqui na montra da loja é bem mais pequeno do que o do tio Zé. O dele é enorme! Estende-se pela adega além, em cima de um palanque de tábuas para dar uma altura, que foi revestido até ao chão de papel pardo, retirado de sacos grandes de farinha, enfeitado depois com fitas e bolas coloridas e brilhantes. E o mais importante: tem imensas figurinhas. Perco-me a observá-lo sem nunca me cansar. A cada Natal há sempre mais coisas que o tio vai acrescentando: luzes, água, um ou outro movimento, campainhas que tocam ao ser puxado um cordel que vem pela parede até à porta…
Para além das figuras iguais às que o meu presépio também tem, há outras que me causam alguma estranheza e admiração. Gosto tanto de apreciá-lo e de fazer perguntas! Ó tio, o que é este? Ó tio, e este? Ó tio, e ali aquele?... E o tio com a sua paciência pachorrenta vai-me explicando, como quem está a ensinar catequese – o tio é catequista.
 
Por exemplo, tem um velhinho de barbas brancas com um menino pequenino às costas: diz o tio, que é o Ano Velho que traz o Ano Novo. Tão giro! Nunca tal me passaria pela cabeça: o Ano Velho e o Ano Novo em figura de gente... (e enquadrado no presépio... humm... um homem velho carregando um Homem Novo! Algo a ver com Jesus terá... ainda cheguei a pensar que seria o Pai Natal e o Menino Jesus, que tola, sei lá!...)

Intrigou-me também uma figura de uma senhora que puxa pela mão, como que arrastando, uma criancita que parece ir a chorar. Lá mais atrás uma figura de um militar empunhando uma espada. O tio diz-me que a senhora e a criança vão a fugir dos soldados do Rei Herodes, aquele malvado, que mandou matar todos os inocentes meninos pequenos até aos dois anos de idade, para ver se entre eles apanhava o menino Jesus para o matar. Pois se Jesus é o Rei dos Judeus, pensava ele que vinha usurpar-lhe o seu lugar no trono, não percebendo que o Reino de Jesus é um reino de paz, de amor e de graça de Deus, de vida, de verdade e de justiça; um reino bem diferente dos deste mundo. 

Também detive o olhar, mais além, num burrito que carrega Nossa Senhora com o Menino ao colo, com S. José adiante a pé, segurando o burrinho pela arreata. Conta que vão em fuga a caminho do Egipto, para que Herodes não apanhe e mate o Menino. São José tinha sido avisado num sonho, por um anjo, para que fugissem para o Egipto e por lá permanecessem até que passasse o perigo e lhe fosse transmitido que poderiam regressar.


27/12/2024

Presépio na Montra – Os Reis Magos


Aqui estão, no presépio, Gaspar, Baltasar e Melchior: três Reis Magos, montados nos seus camelos, vindos de longe, dos lados de Oriente. Vêm há vários dias guiados por uma grande luz brilhante de uma nova Estrela, para ver e adorar o Messias Prometido, o Rei de Israel.
 
Para trás já deixaram o castelo do Rei Herodes, a quem foram perguntar se ele sabia onde tinha nascido o Rei que eles vinham visitar, pois que a estrela que os guiava tinha-se encoberto ali perto de Jerusalém e não sabiam para que lado caminhar. Sentindo-se abandonados à sua sorte, não sabendo onde procurar, pensaram que talvez pudesse ser naquele castelo.
 
Mas Herodes não sabia de nada, tendo ficado curioso; então disse-lhes que também queria saber e que lhe viessem dizer quando o encontrassem, pois também gostaria de O visitar. (Mais tarde veio a saber-se que essa sua visita, a acontecer, seria tudo menos amigável). E ali ficou ele, à porta do seu castelo, com cara de poucos amigos!
 
Então os Magos viram de novo a estrela e seguiram-na até à gruta de Belém onde estava Jesus. E ali O adoraram e ofereceram-lhe os seus presentes: ouro, incenso e mirra. 

Depois, sendo avisados em sonhos para não voltarem ao castelo de Herodes, pois as intenções dele não eram boas, escolheram um caminho diferente para voltarem às suas terras.


Há quem diga que haveria ainda outro Rei Mago que ficou para trás no caminho, perdendo-se entre a procura do Menino e a ajudar necessitados, que lhe surgiam ao longo da jornada, com as prendas preciosas que levava consigo como presentes para oferecer ao Rei recém nascido. Sem que conseguisse encontrar os outros Magos e nem o seu olhar alcançasse mais a Estrela de Belém, passaram-se muitos anos até encontrar Jesus, só aquando da Sua crucifixão e morte; aí vindo a saber que O tinha encontrado durante toda a sua vida, nas pessoas a quem tinha amorosa e generosamente ajudado. 

Não sei o seu nome. Mas, quem sabe, esse Mago viesse a inspirar um velhinho de barbas brancas a quem chamam agora Pai-Natal?...
 

25/12/2024

Presépio na Montra – Que Alegria!

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Ora bem: naquela região, perto da gruta que deu guarida a Maria e a José, e onde o Menino Jesus viria a nascer, andavam uns pastores que guardavam os seus rebanhos e por lá pernoitavam, coitados! Se calhar tinham de dormir nalguma gruta que por lá houvesse, ou nalguma cabana improvisada, senão teriam de dormir ao relento e ao frio junto com as ovelhinhas. 

Não sei quantos seriam, mas ainda me restam aqui dois. Vou fazer umas elevações com pedras e cobri-las de musgo para dar o ar de serra, e colocar as duas figuras dos pastores, mais dois cãezinhos que ajudam a guardar os rebanhos, e as ovelhas que me restam e que já só dão quatro a cada pastor: pobres pastores, até no número de ovelhas são quase miseráveis!  Pobres entre os poucos animais, que mal davam para se aquecerem uns aos outros nas noites geladas de invernia!

Então era de noite, mas uma luz bem forte, que eles viram brilhar, fez-lhes ver tudo como se fosse de dia: era um Anjo que lhes vinha anunciar o nascimento de Jesus: 

“Anuncio-vos uma grande alegria: 

… Nasceu-vos um Salvador. 

… Encontrareis o menino envolvido em panos e deitado numa manjedoura.” 

 Depois juntaram-se, àquele Anjo, outros Anjos que cantavam em coro: 

“Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados!” (cf. Lc. 2, 10 – 14) 

Agora é que vai!… só tenho uma figurinha de Anjo, com uma faixa escrita: “Glória a Deus nas Alturas”! Vou pôr o Anjo junto aos pastores e, para já, fica assim. Depois hei-de fazer outros anjos em cartolina e pendurá-los na árvore de Natal, para dar a ideia de que andam a voar e a cantar por ali. Sim, porque era o Filho de Deus que acabava de nascer, e até os Anjos do Céu vieram cantar. Uma alegria contagiante, pois o Messias esperado pelas pessoas, o Salvador, já estava no nosso mundo para trazer a paz tão ansiada! 

Por isso, todas as pessoas do mundo e de todos os tempos foram depois contagiadas por essa alegria. E, daí, podem aparecer muitas figurinhas no presépio: de muitas profissões, regiões e de tempos mais antigos e mais actuais. 

Assim, o presépio é uma maneira muito linda de recordarmos o nascimento de Jesus e do quanto Ele é importante para nós, nos trazendo Esperança num mundo melhor.

(continua)

24/12/2024

Presépio na Montra – continuando

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Mas como são cada vez menos, as figurinhas!... 

Ah, pois... lembro-me de que no ano passado, o meu amigo Zeca me pediu para trocar algumas comigo, das que eu tinha repetidas… mas conseguiu levar-me à certa, deixando-me bem menos das suas do que eu lhe dei das minhas. Das ovelhas levou-me metade do rebanho e, dos músicos, fardados a rigor, ficaram poucos, já nem parece uma banda filarmónica completa… que tonta que eu fui! Bem, é certo que me deu este moinho, parecido com o moinho das sapatilhas, que o meu moleiro não tinha casa; e este poço para a minha lavadeira tirar água e lavar as suas roupas, e mais umas bolas para a árvore de Natal que encontrei agora aqui misturadas com as fitinhas prateadas; por falar nisso, ainda me falta apanhar o pinheiro. É sempre um problema isso, pois, num ano destes que passou, apanhei uma ralhadela do pai por ter cortado um onde não devia, disse que estraguei um pinheirinho novo que estava a crescer e que fazia lá falta. Agora não sei o que faça… se vá procurar algum para cortar – mas eu sei lá onde é que não fará falta?! – ou se não faço árvore de Natal… na verdade, acho que mais importante é o presépio, que representa o nascimento do menino Jesus, e é o que comemoramos no Natal: o nascimento de Jesus. Mas a árvore de Natal, costumava erguê-la por cima da gruta do menino, como que para proteger das investidas da invernia e dar algum aconchego e abrigo àquele local tão inóspito onde teve de nascer o rei dos reis, por não haver lugar para eles nas hospedarias de Belém. É que estavam todas cheias de pessoas vindas de outras regiões, tal como José e Maria que tiveram de vir de Nazaré para darem os seus nomes no recenseamento na cidade onde pertenciam. Tão longe a caminhada a pé, apenas Maria sentada no burrito, pois estava de gravidez avançada e ser-lhe-ia muito penoso vir a pé todo o caminho. Coitadinho do burrito, um bom serviço que prestou a Maria e a Jesus! E, depois, juntamente com a vaquinha que dormia na gruta, ainda aqueceu com o seu bafo o menino depois de ele nascer.


23/12/2024

Presépio na Montra I – Nem que chovesse


O dia tem estado chuvoso. Uma chuva miudinha molha-parvos, que deixa o tempo baço, tipo nevoeiro denso.

Depois do almoço, observei, pela janela, que o fusco do dia estava a querer aliviar, a raiar uma pequena luminosidade. Sim, parecia uma *aberta. Saí à rua para confirmar se não chovia. Era, de facto, uma aberta e tinha de aproveitá-la. Calcei as botas e vesti uma capa impermeável para o caso de a chuva voltar. Peguei numa caixa de papelão e fiz-me ao caminho.

Sabia onde o encontrar. Lá em baixo, para lá da curva da estrada, a seguir à ladeira. E lá estava ele, em manchas verdes, na barreira inclinada. Pousei a caixa de cartão e toquei com as mãos aquele tapete luzidio de musgo fofo e húmido; mas não estava muito encharcado quando arranquei um pedaço grande, com muito cuidado para não se despedaçar. Queria-o o mais inteiro possível, mas sem ser maior que o tamanho da caixa.

Depositei-o no fundo do caixote e arranquei mais até o encher de alto coruto. Não me demorei muito nesta tarefa. O musgo era abundante ali, eu já o sabia.

Carreguei esse volume pela estrada acima, mas tive de parar algumas vezes pelo caminho, pousando-o na berma da estrada molhada, para descansar um pouco. Estava a querer começar a chover de novo, tinha de me despachar. Ainda por cima o fundo da caixa começou a ceder com a humidade e o peso e… caramba!, rompeu-se quando o tentei levantar do chão depois de mais uma paragem. Baixei-o logo, não dando tempo a que o musgo se esgueirasse pelo fundo abaixo. Tinha-lhe pegado pelas bordas do fundo, mas não era capaz de o abraçar todo com as mãos por baixo – ai, esta minha falta de habilidade… O que valeu é que já estava perto de casa. Deixei-o ali e fui a casa, direitinha à oficina do pai, à procura de algo que me desenrascasse. Encontrei uma pequena tábua fina e estreita – minha tábua de salvação – que seria pouco mais comprida que o caixote. Levei-a e enfiei-a por debaixo da caixa. Levantei o peso com algum esforço, agora parecia mais pesada ainda, ou seria do meu cansaço de andar para cima e para baixo, apressada com medo da chuva, que ameaçava. Mas nem que chovesse! Ele não ficaria lá.

Trouxe-o para casa, ainda antes que os pinguinhos miudinhos caíssem outra vez. Agora aqui está ele a postos para poder montar o presépio.
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*aberta = pausa na chuva até voltar a chover

22/12/2024

Presépio na Montra – introdução


Fui buscar as figurinhas do presépio ao sótão, onde estavam guardadas, desde que o presépio foi desmanchado depois do Natal passado. 
Vou-as tirando do caixote, uma a uma, para cima de uma pequena mesa que está a um canto na loja. São muitas, algumas partidas que tenho de colar. Um fascínio admirá-las, uma alegria voltar a fazer o presépio neste Natal. Contemplo-as à medida que as vou segurando nas mãos e pousando na mesa. Ovelhas e pastores. O pescador; o cavador; a vendedeira de bolos; a lavadeira; o moleiro e o seu burrico carregado de taleigos; uma banda filarmónica, de músicos todos fardados de azul, a tocar os seus instrumentos: de sopro e tambores; o fogueteiro; um padre; um galo; o anjo que anuncia o nascimento do Menino. São José e Maria – Nossa Senhora. Jesus. Jesus – o Menino Jesus tão pequenino – a figura central do Presépio. Mais outra figura do Menino Jesus um pouco maiorzinha, com um bracinho partido (quero ver se o encontro misturado com as restantes ou no fundo da caixa). A vaquinha e o burrinho, que aquecem o Menino. Um moinho; uma casa; um poço; uma ponte; o sapateiro; o ferreiro; a senhora que assa castanhas. Vários bocadinhos partidos, entre eles o bracinho do Menino. O Rei Herodes. Um peixinho encarnado com uma ponta do rabo partida já há muito tempo – sempre o conheci assim; um pato todo branquinho e outro com um chapéu azul na cabeça e laçarote amarelo ao pescoço. Os três Reis Magos: Gaspar, Baltazar e Melchior.

São muitas, embora este ano já sejam menos...

O Gigante do Moinho das Sapatilhas (conto de Natal)

O velho moinho de vento, no cimo do outeiro, com aquelas sapatilhas enormes a girar, desde sempre alimentou as minhas fantasias de criança, como uma lenda…

O Gigante, que lá mora, fora em tempos uma criança feliz, como qualquer criança. Mas quando começara a crescer demasiado, deixara de ter amigos por o julgarem diferente. Os colegas troçavam dele, fazendo piadas acerca do seu corpo grande e esquisito. E ele, ao sentir a rejeição, começou a ver-se com outros olhos, a notar que não era igual às outras crianças, às outras pessoas, e isolou-se do mundo, desenhando para si um outro mundo à sua medida. Os pais passaram a ser o seu único consolo. Estes, com todo o seu amor, protegiam-no, mimavam-no e faziam-no esquecer os colegas da escola que o haviam maltratado.
Começara a trabalhar no moinho, ajudando o pai a moer o trigo e o milho das freguesas e, depois que o pai falecera, assumira esse trabalho por inteiro. Restara-lhe a mãe ainda por algum tempo, mas depois esta partira também deixando-o ainda muito jovem. Desde aí não mais soubera o que era um carinho. A solidão era a sua constante companhia.
Continuava a transformar em farinha os pequenos grãos das mesmas freguesas de sempre, mas ninguém lhe dispensava mais do que as palavras estritamente necessárias. E ele fechava-se num mutismo azedo e carrancudo que assustava ainda mais. Não fosse a necessidade daquela bela farinha, produzida naquele luminoso moinho, e ninguém se daria ao trabalho de subir a colina.

Mas o Gigante não era só aquele monte enorme de ossos e músculos, de cara fechada e empoeirada de farinha, que às vezes até parecia um fantasma. Ele era sensível e sofria. A solidão doía-lhe no íntimo do seu coração cada vez mais apertado.
Os anos iam passando por ele monotonamente, numa sucessão de dias sempre iguais, tornando-o num jovem adulto a quem tinham sido roubados os sonhos. Não sabia o que eram festas, romarias, comemorar a Páscoa ou o Natal. Sabia que existiam, mas não tinha direito a isso.

Nesta altura do ano, ele apercebe-se, pelo frio que faz e pelas encomendas maiores de farinha, que o Natal se aproxima. E fica ainda mais triste e solitário, mais infeliz e revoltado, mais amargo e mal-humorado. Tão gigante e tão frio que a todos afugenta cada vez mais.
Mas aquele gelo andava prestes a ser quebrado.

E quebrou. Derreteu completamente, começando a pingar-lhe daqueles olhos da cor do mel, quando Maria, de sorriso a bailar nos lábios carnudos, lhe colocou nas mãos duas broinhas de Natal.
Todo o seu semblante se transformou, parecendo reviver nele a magia da sua infância. Aquela coleguinha, agora uma linda mulher, lembrara-se dele e viera para lhe colorir o seu mundo tão sombrio. Até parecia que os tristes raios de sol de Inverno, que entravam pelas frinchas do moinho, brilhavam com todo o ouro quente do Verão.

É por isso que agora ouço o Moinho das Sapatilhas entoar uma nova melodia ao vento.
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Conto que escrevi e enviei para responder a um desafio denominado Projecto CrioNatal 2008, para um livro de Contos de Natal.

Posteriormente publicado em livro: Memória Alada, 2011
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21/12/2024

Subir o Caminho VI

Sento-me por momentos numa pedra na encosta a meio da ladeira íngreme, ofegante de cansaço; à minha volta, fragrâncias húmidas de terra e de musgos. As pedras, castanhas de terra, gemem pequenos fios frescos prateados. Por baixo de uma pedra espreita um pequeno lagarto, ou lagartixa – nem sempre sei bem distingui-los; e por entre outras, pequeninas flores. Até no meio das pedras, Deus faz brotar as mais belas flores. Para que se aprenda a sorrir e se esqueçam, ainda que por momentos, as dores. Para além da meta que se pretenda alcançar, é preciso saborear os bons momentos do caminho.

Ergo-me, depois de inspirar o pequeno descanso. No meio do caminho a pedra ficou.
A pedra. E as outras pedras.

As pedras, que são tão essenciais aos alicerces! – sem alicerces somos construção frágil, que em qualquer altura está sujeita a ser levada pela menor ventania.

Pedras que tanto fazem parte do caminho! Continuam no meu trilho a querer morder-me os pés na subida.
Temos que saber aproveitar as pedras em nosso favor, e contornar as que são obstáculos... é o que faço, é o que tento sempre fazer!
A vida está longe de ser planície, embora também as tenha. Mas de montanhas e planícies se conjuga o verbo viver.
A vida, como os ramos de uma árvore, entrelaça-se nela própria e vai seguindo rumo à claridade. Uns ramos vão chegando ao fim do seu percurso, enquanto outros brotam e vicejam.
Por vezes os troncos de algumas árvores são castigados com pedras – pedregulhos – lá colocadas ao seu redor rente ao chão. Para quê? Talvez para que aprofundem as raízes à procura do melhor sustento e venham depois a produzir muitos e saborosos frutos – ouvi dizer.

E vou subindo. De vez em quando resvala-me, por baixo dos pés, uma ou outra pedrita que depois rola por ali abaixo, atrás de mim. Não faz mal. Eu prossigo a marcha. Subo. Por vezes como quem trepa. Tenho de subir. Nem que as mãos tenham que ir ao chão aqui ou ali, quando preciso for, para segurar, amparar, para que não me surpreenda alguma queda, mais ou menos aparatosa, e esfole os joelhos, ou a alma.
É dura a subida; mas sei que depois de subir, ainda terei de descer para voltar para casa. Eu sempre pensei que descer era mais fácil – “para baixo todos os santos ajudam”, não é? – Não, não é, afinal. Disseram-me que descer custa mais. Algumas vezes terei de descer de costas, escorregar sentada, com todo o cuidado, não vá cair ao desamparo, e o vazio venha a ser o ganho da jornada.

E andamos toda uma vida com algum vazio por preencher, a esfarrapar-nos contra esquinas de pedras agrestes que nos cerceiam. Quando, por fim, nos libertamos, tantas vezes ficamos mudos e quedos sem conseguir absorver a realidade.


«Quando as pedras frias
caem brancas e torcidas
sobre as palavras imperiais,
mordendo-lhes as raízes
como se fossem o contrário do que são,
fecham-nos a alma e ficamos sem saber
se as asas se quebram ou
se ficamos de pé à espera das próximas pedras.»
(José Maria Brito Sj)

20/12/2024

Regresso ao mundo I

A janela semicerrada deixava entrar uma claridade suave, que transmitia uma aura pacificadora e tranquila. O silêncio era entrecortado, aqui e ali, por um misto de vozes sussurradas e passos no corredor.

Deu a volta à cama, aproximando-se da janela e ficou por momentos a espreitar pelas frestas, sem nada ver.
O coração queria saltar-lhe do peito, tal era a sua ânsia de a abraçar, de a beijar. Mas tinham-lhe recomendado que não a acordasse. Estava sob o efeito de sedativos pois os traumatismos eram muito grandes.
Olhou-a. O seu rosto tinha o mesmo encanto que o prendera, apesar daquela marca roxa do lado esquerdo.
Será que se lembraria dele?
- Quem está aí?... – perguntou Luísa num leve murmúrio.
Entreabriu os olhos e tentou fixar aquela silhueta luminosa que se encaminhava para si.
Ele não resistiu a pegar-lhe na mão, sem dizer nada.
Ela baixou novamente as pálpebras, deixando a sua mão naquela que a prendia, sentindo como se fossem duas gotinhas de água juntas num lago azul. Sonhava. O mundo parecia cantar.

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