29/07/2008

Cicatrizes

Ainda meio fechada num casulo, recém-repatriada de um país envolto em vapor, qual nefelibata votada ao ostracismo, sou chamada à realidade pela professora.
A dona Conceição enceta uma conversa que, a mim, me irá fazer enfrentar algum inferno ainda pendente. Esta propõe aos alunos das duas classes, terceira e quarta, que façam uma redacção sobre uma possível futura profissão, igual para todos. Médico(a). Pressupondo que virá a ser esta a nossa profissão, é sobre ela que vamos ter que escrever, como trabalho para casa.

Chegada a casa, tranco-me no quarto e começo a dar largas à fantasia, colocando-me na pele de uma médica e percorrendo mentalmente espaços que se me tornaram familiares, moldando-os a mim com uma nesga de ilusão.

Se eu fosse médica teria um consultório, bem montado, com todos os medicamentos para tratar os meus doentes. Tratá-los-ia, a todos, com deveres de uma boa médica…

Suspendo a escrita. As lágrimas afloram e temo inundar a folha branca ao verter o meu pranto. É que as minhas cicatrizes não são algo subjectivo ou variável. Estão bem visíveis. São marcas indeléveis que me deformam o rosto, depois das feridas fechadas.
Com um breve movimento de cabeça, tento sacudir estas sombras que se projectam sobre mim em queda vertical. Se eu, um dia, viesse a ser médica, quem sabe, conseguiria curar-me a mim própria, removendo estas cicatrizes que me amargam na carne e na alma…
É sobre isso que vou ter que escrever, pois vou sofrendo os meus dias na expectativa de recuperar completamente, de que todas as marcas se desfaçam como a escuridão ao ser trespassada por um luar radioso.

Uma página de Memória Alada

[Texto enviado ao 5.º Jogo das 12 Palavras - Texto IX]



15/07/2008

Neblinas IIII

Estou de volta aos bancos da escola, mas agora a realidade é um pouco diferente. Todos os meus desejos e anseios se resumem a apanhar os colegas na matéria dada e a que eu não assisti. Nada seria mais frustrante para mim do que o não conseguir fazer a quarta classe. Nem os risos de zombaria dos colegas, perante o meu rosto de palhaço, me conseguem tornar numa criança excluída. É verdade que a minha cara ainda não está curada. Ainda está feia, pintada de vermelho, com algumas feridas que ainda exigem curativo. Mas nunca pensei que os colegas pudessem fazer troça de mim por causa disso. Mas fazem. Sou o alvo da chacota deles. Divertem-se assim à minha custa. Mas não faz mal. O meu mundo de fantasias vê apenas crianças sorrindo, quais marionetas manipuladas por homenzinhos, a dançar em torno de versos imaginários. Ultrapasso, assim, todo o contexto da dor causadora de algum desequilíbrio. Fecho os olhos da alma ao frio e à miséria em que me poderia ver envolta e chego, rapidamente, por etapas sucessivas, de um ponto a outro quer na Gramática ou na Escrita, quer na Geografia, na Aritmética ou na História. Bem, na História nem tanto, mas na Aritmética ninguém me supera!
Nesta altura, por muito que me perturbe o meu inglório aspecto físico e o medo da rejeição, mesmo com crises de choro e de algum isolamento, os meus pensamentos procuram outras coisas que me fazem sentir bem: os dentes brancos sem cáries, os cabelos loiros e fartos e a natural inteligência. A minha inteligência, esta sim, é para mim o maior motivo de satisfação. É ela que me permite ultrapassar todos os obstáculos e dar uma volta completa aos contratempos.
Os colegas hão-de acabar por perceber que o meu aspecto exterior não me afectou por dentro. Pois, muito embora me fiquem as cicatrizes, as neblinas, essas, estão agora nos colegas e não em mim!

11/07/2008

Neblinas III

Passou o escuro da noite.
Os raios de sol do meio-dia vêm agora, como presente de Deus, envolver com toda a sua magia este ser triste e vago, e ajudar, já não a camuflar uma dor, mas a despertar a sua consciência em todo o seu esplendor.

Os dias têm dado lugar às semanas, estruturando um viver em que eu, qual flor de pétalas murchas, de sorriso tisnado nos lábios, tenho procurado, com alguma garra, buscar uma realidade escondida.
Melhor do que toda a sabedoria humana, essa realidade se me apresenta agora leve e simples.
Afinal, nada seria mais fácil de me ter sido fatal. O que aconteceu só pode ter sido obra de um descuido. Não. Não fechei a janela. Abri a porta. Esta, porque abre para trás, foi violentamente empurrada pela deslocação do ar, levando-me junto com ela, acabando por me fazer morder o pó da beira do caminho.

Agora poderei voltar a ser a menina de sempre, alegre e mimosa, uma vez que o pesadelo, que me tem aterrado, se evaporou como neblina dissipada pelo sol.


(Publicado em livro: Memória Alada, 2011, pág. 24)

06/07/2008

Neblinas II

Estava calor. Sentada no banco direito da frente, abri o vidro da janela e esperei. O pai demorava a chegar e eu estava ansiosa para sair. Um passeio de carro é muito apetecível para mim, que todos os dias tenho de ir para a escola a pé.

O meu primeiro sobrinho tinha nascido e eu e o pai íamos vê-lo. A mãe já lá tinha ido e disse que o menino era tão lindo e pequenino. O meu interesse não era ver o bebé que, supunha, iria usurpar uma parte das atenções que deveriam ser para mim. Aliás, eu nem iria ser capaz de o agarrar ao colo. Nunca tinha pegado num bebé ao colo, com certeza não iria ser agora. O meu interesse era mesmo pelo passeio de carro. Esse, sim, era o motivo da minha ansiedade. Eram tão poucas as vezes que eu podia viajar no banco da frente que me sentia inquieta.

Finalmente o pai chegou e pôs o carro em andamento. Começava a aventura para mim.
À medida que a velocidade aumentava o vento ia fazendo esvoaçar cada vez mais os meus cabelos compridos. Decidi fechar um pouco a janela e…

Neste momento percebo que a neblina se quer dissipar...


(Publicado em livro: Memória Alada, 2011, pág. 23)

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