29/12/2010

Espírito de Natal II

(Espírito de Natal I)

Em casa onde falta o pão, a todos pode falhar a razão.

Chegou Dezembro. E com ele o Natal. Mas este entrou em casa dos Baptista de espírito arredio. Por onde andava o espírito de Natal? Porque se esquecia ele deles?
Em família onde o Amor e a Paz se fazem escassos, o Natal é retratado de um corpo sem espírito. Os rostos fecham-se, a frieza enregela e corrói. Quando o espírito de Natal se ausenta fica-se só, triste e infeliz. Não se sente o amor, tolerância, paz, compaixão, sentido de dádiva.

A época de Natal é propícia à reunião familiar. Estar em família com amor é a base do espírito de Natal. Amor é a palavra-chave, a senha de acesso à paz e à felicidade.
Mas o Natal e o verbo amar não se conseguiam ali conjugar.
É claro que a vida não é sempre fácil. Somos surpreendidos, no escorrer dos dias, por contrariedades e revezes; sofremos desgostos; estamos tão sujeitos a desgraças. Mas se não se é capaz de estender a mão, quer como quem dá, quer como quem pede ajuda para se erguer do chão, corre-se o risco de se ficar sem ter a quem amar. E sem amar, sem abertura para amar, para dar amor – a todos e a qualquer um, e não só àqueles que nos interessam – não absorvemos o verdadeiro espírito de Natal.
Um Natal até pode ter presépio e árvore de Natal e luzes a piscar… ter neve artificial nas janelas a brilhar… mas o espírito andar longe. Pode até haver prendas, mas o espírito de Natal vai muito para além das prendas materiais que se dão: para muitos pode ser só preciso um sorriso, uma palavra simpática, um carinho, um telefonema…

O espírito de Natal assoma à alma nesta altura do ano para a abrir em calor humano. Numa família unida. No perdão que apaga desavenças. No tempo que se dá a quem dele precisa. Na paciência para ouvir e reconfortar. No ombro que se oferece para alguém chorar. Na generosidade e bondade que extravasa dos rostos para fazer a felicidade dos outros. E sentir-se feliz assim.
Mas muitas vezes assim não é. Que não se apague, ao menos, a esperança de o vir a ser. A Esperança é o berço do espírito de Natal. Mas esse berço – Esperança – não pode ficar vazio, despido. Tem de ser preparado, revestido de lençóis quentinhos. E, se possível for, todo o quarto tem de se ir decorando ao seu redor, para tornar todo o ambiente mais fofo e acolhedor. E, mais tarde ou mais cedo, o milagre acaba por acontecer assim que a decoração estiver pronta.

Mas se se instalar um vazio que não se consegue preencher, o Natal pode trazer um sofrimento maior do que qualquer outra altura do ano. E se a Esperança também se ausentar pode ser o descalabro total. Mas se ela comparecer, uma réstia acenderá um rastilho. A tristeza, a solidão, a doença, a dor, o desamor podem andar constantemente a espreitar, mas é preciso que a Esperança não lhes ceda o lugar.

Pois bem. Na família Baptista, houve alguém que não se deixou desesperar...

(Espírito de Natal III)

21/12/2010

Espírito de Natal I


Tudo começou quando a dona Maria Aurora ficou viúva. Faltando-lhe o seu companheiro de toda a vida, decidiu ir viver com a filha, a sua única filha - filha única -, com o seu rico genro - genro rico -, e seus amados netos José Maria e Matilde, de 20 e 18 anos respectivamente. Ela sabia que a sua filha, muito bem casada com Alcides Batista, um empresário de sucesso, não deixaria que nada lhe faltasse. E, de facto, por um bom tempo assim foi. Tudo corria bem. Alcides, proprietário de uma cadeia de lojas de pronto a vestir, não tinha mãos a medir. A sua esposa, Maria, ajudava-o quando podia para pôr a escrita em dia, ocupando-se da escrituração e, se preciso fosse, também ao balcão, enquanto a sua mãe tomando as rédeas da casa na sua ausência, se sentia nas suas sete-quintas a ditar as suas ordens à família. José Maria e Matilde, que sempre foram alunos exemplares, andavam na universidade.
Era uma família normal aos olhos de toda a vizinhança, até ao dia em que a esposa descobre que o marido a apostou ao jogo no casino.
Maria, ao fazer a escrita da empresa, tinha dado com uma grande diferença nas contas e, vendo o dinheiro a faltar em casa e para pagar às empregadas, ‘encostou o marido à parede’, e ele confessou o seu vício ao jogo, de que tinha dificuldade em se livrar e, no qual, num dia em que não tinha mais dinheiro para jogar, foi pressionado pelos colegas a apostá-la a ela, tendo sido por um triz que não a perdera. Tinha consciência de que andava mal, mas precisava de recuperar, ao menos, algum do dinheiro que tinha perdido e que levara a empresa quase à insolvência e fizera surgir todos os problemas à família. Contudo, referia que a sogra é que fora a causa primeira de toda esta situação, pelo facto de ir viver com eles, pois ela controlava tudo e todos, e ele, para não ter de a aturar, começara a sair à noite com amigos e a viciar-se no jogo.
José Maria, o filho do casal, sempre foi sociável e com boas notas nas disciplinas escolares. Ao dar conta do mau ambiente familiar acontecido tão repentinamente, começou a fazer noitadas com amigos pouco recomendáveis e a chegar a casa de madrugada alcoolizado, como forma de fugir aos problemas, passando as tardes a dormir e faltando às aulas. De aluno exemplar tornou-se num aluno fraco, fechando-se cada vez mais em si, sem falar com a família.
Matilde, mal saída da adolescência, sempre tinha sido uma menina muito mimada e protegida e nada sabia da vida. Ao ver-se mergulhada em tamanha confusão na família começou a buscar refúgio nos amigos e a passar semanas sem aparecer em casa. Ao fim de um certo tempo aconteceu: engravidou.
Só desgraças!
A dona Maria Aurora, mãe da Maria, começa então a ser pressionada a gastar o dinheiro da sua reforma nas despesas da família, e não anda nada contente com isso. Diz que não sabem governar vida, que se não fosse ela morriam todos à fome naquela casa. Que o genro lhe saiu melhor do que a encomenda, e que não sabe educar os filhos, por isso é que tudo deu no que deu: a neta está grávida e não sabe quem é o pai; e o rapaz ou se fecha que ninguém o vê, ou anda com umas companhias que até metem medo…
O caso está mal parado.

10/12/2010

Pontos nos iiii

Os tempos modificam-se como da noite para o dia. E outra vez como do dia para a noite.
Fingem-se páginas bem alinhadas, arrancadas à intempérie que não dá tréguas. Num corrupio, abastecem-se memórias de histórias esquecidas, tontas, torcidas, tremidas, aladas, caladas. Coladas. Vividas.
A ti pertence o meu sabor das manhãs de neblina. Em ti abandono as dores das noites sem luar. De ti retiro calor e frio, paz e tormento. Fogo. Relento.
E debato-me numa indecisão: refresco-me na chuva que me salpica a janela ou retiro-me no sono que me espreita as pálpebras?
Posso, precariamente, colar as mãos ao volante e soltar-me livre no asfalto negro que me fascina. Posso, indefinidamente, resumir-me ao espelho da janela e fechar o mundo do lado de dentro. Posso.
Posso cerrar a cortina e suprimir, de vez, este engano em banho lento. Posso trocar as voltas às voltas à volta de mim. Posso. Talvez um dia mergulhe nessa coragem. E posso ter a certeza de que, quando isso acontecer, essa volta será uma volta dada bem por cima.

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