Agora que já não ando na escola sobra-me tempo para dar e inventar.
O rádio toca de manhã à noite e eu vou aprendendo a dançar, sem ninguém ver, e escrevendo, aos poucos, as letras das canções. Assim que estão completas passo-as a limpo para outro caderno. É só estragar papel, ralha o pai. Já tenho uma grande colecção… um dia, quem sabe, ainda hei-de cantar num conjunto, como o mano, e aprender a tocar viola. Oh, sim, encanta-me tanto o som das cordas da viola que hei-de ter uma e aprender a tocar.
Também não perco os folhetins da Emissora. E, principalmente, a “Simplesmente Maria” que dá na Rádio Renascença, e que a minha amiga Manuela vem escutar todos os dias comigo, de ouvido colado ao rádio, porque ele não apanha muito bem este posto, mas mesmo assim é melhor do que o dela que não apanha mesmo nada. À conta disso, volta e meia lá vão pilhas novas, para se ouvir melhor, e o pai a ralhar: eu estou para ver quem é que paga as pilhas!... não sei que raio de encanto é que vocês têm aí, que nunca mais acabam com essas confissões de cabeças encostadas! Assim como são duas raparigas, se uma fosse um rapaz eu já desconfiava!… E nós ficamos vermelhas que nem pimentões, mas no dia seguinte voltamos ao mesmo.
Outra coisa que queria aprender e que já consegui foi a costurar à máquina. Não foi muito fácil, porque eu não dava o balanço ao pedal até ao fim e a máquina andava para trás encravando a linha toda na canela. Teve que vir a mãe desencravá-la e ralhou que só visto, como é seu hábito. Mas enquanto ralhar e não bater, vou escapando e continuando com as experiências e os disparates. Mas a tia costuma dizer que a estragar é que se aprende. E eu acho que quando se quer muito uma coisa, com algum esforço consegue-se.
Pois bem, depois de tanto tentar, mas sem agulha nem linha, só com o tecido por baixo do calcador, lá consegui dar o balanço certo e o tecido já começou a correr sempre para trás. Vitória! Depois foi só colocar a agulha e chatear a mãe mais um bocado para que me viesse ensinar a enfiar a linha na máquina. Agora já sei coser a direito que é uma beleza. O pai até já disse que me vai mandar aprender a costura e a bordar à máquina. E eu acho que, assim como assim, até pode nem ser má ideia, que até saio daqui para a liberdade lá fora…