A vida é uma peça de teatro: umas vezes comédia, outras drama. Só que no teatro do quotidiano não são permitidos ensaios, a peça desenrola-se de improviso, sem estudo prévio, em que cada acto rola na sequência de outros actos, mais ou menos amadores, onde o protagonista é uma existência livre, mas que, mesmo que a cena em palco seja monólogo, não vive sem personagens secundárias, figurantes e público, numa permanente construção.
E quantas vezes a vida é um filme! Umas vezes de amor, outras de terror; umas vezes em formato de telenovela, em ecrã de televisão, outras de curta-metragem e em ecrã de cinema. Alguns episódios podem mesmo parecer saídos de filmes antigos, daqueles que sofreram cortes de tesoura porque alguma cena merecera censura ou porque a película pegara fogo.
José Miguel pensava nisso, sentado na sua cadeira no consultório, cansado de uma tarde de trabalho intenso, um tanto desgastante, em que, entre outras, tivera de acalmar duas crianças para as fazer colaborar no tratamento, e de chamar à razão as mães, que em vez de ajudar só atrapalhavam. E pensava nos teatros da vida e no formato que tinha a sua.
Se lhe fosse permitido voltar atrás, ao passado… refazer o seu filme, o teatro que era a sua vida…
Mas não era assim tão simples. O passado não se podia cortar à tesoura, e voltar a colar, como a fita de um filme antigo, nem sequer era como um dente do siso incluso, que se extirpa, sem dificuldade, com uma pequena cirurgia, e que depois de se suturar o vazio, o sítio acaba por ficar perfeito como se o dente nunca tivesse lá existido. Não: no palco da vida real, o passado não pode ser extirpado. Quando muito, pode ser remendado, suturado, a cada dia, com o presente, como jeito de tecer o futuro. Além disso, José Miguel tinha uma confusa percepção de que, no seu passado, poucas teriam sido as vezes em que tivera o papel principal. Se calhar, desde que nascera, em muitas situações tinha sido personagem secundária ou, até, mero figurante...
Se não se sentisse sempre tão carente, talvez não se tivesse apaixonado pela pessoa errada: uma jovem mulher um pouco mais velha do que ele, que lhe dera todo o amor que então precisava, mas que depois o abandonara.
Mas o passado era passado, o que estava feito, feito estava; poucas seriam, pois, as hipóteses de emendar o que, provavelmente, não teria emenda, de endireitar o que nascera torto. Assim, voltar atrás estava fora de questão. A vida tinha que seguir o seu rumo. E amanhã seria outro dia. Quem sabe, igual. Quem sabe, diferente.