14/11/2019

Quase como ouvi contar


Na era do antigamente, em tempos magros, de fome, quando os meninos, mal saídos da parca mama das mães, cedo iam ser criados dos senhores mais abastados, a fim de poderem ter um pouco mais para a boca do que na casa paterna, o pastorinho do rebanho das cabritas todos os dias levava os animais a pastar em roda da capelita de San Sadurninho. Na bolsa do farnelito, umas míseras côdeas de broa seca, que o seu amo lhe mandava para o dia inteiro.

A fome apertava, a broa era dura de roer, e o santo na capelita tinha azeite numa griseta para arder.
O rapazito, faminto, eleva uma côdea em direcção ao santo, como quem espera uma bênção que a transforme em manjar do céu.

 Ó mê xantinho xan Xadurninho vosmixê dá lixenxa que eu molhe aqui nha broa no xeu guijaujinho?

E o santo, como bem de ver, nada de responder!
E torna o moço:

 Ó mê xantinho xan Xadurninho vosmixê dá lixenxa que eu molhe aqui nha broa no xeu guijaujinho?

E o Santo parecia que era mudo ou fazia-se.

 Mas vosmixê não ouve ou quê?... Ó mê xantinho xan Xadurninho, xantinho da nha devoxão, vosmixê dá lixenxa que eu molhe nha broa aí, aí, nexe ajeitinho dexe xeu guijão?

E resposta, nenhuma!

 Ai vosmixê não responde? É porque quem cala conxente! Poix atão eu molho, e hei-de molhar e xopotear!

E assim, todos os dias, o coitadinho condutava a magra broa com o azeite do santinho, até ao lamber do acabar.

11/08/2019

Subir o Caminho VI

Sento-me por momentos numa pedra na encosta a meio da ladeira íngreme, ofegante de cansaço; à minha volta, fragrâncias húmidas de terra e de musgos. As pedras, castanhas de terra, gemem pequenos fios frescos prateados. Por baixo de uma pedra espreita um pequeno lagarto, ou lagartixa – nem sempre sei bem distingui-los; e por entre outras, pequeninas flores. Até no meio das pedras, Deus faz brotar as mais belas flores. Para que se aprenda a sorrir e se esqueçam, ainda que por momentos, as dores. Para além da meta que se pretenda alcançar, é preciso saborear os bons momentos do caminho.

Ergo-me, depois de inspirar o pequeno descanso. No meio do caminho a pedra ficou.
A pedra. E as outras pedras.

As pedras, que são tão essenciais aos alicerces! – sem alicerces somos construção frágil, que em qualquer altura está sujeita a ser levada pela menor ventania.

Pedras que tanto fazem parte do caminho! Continuam no meu trilho a querer morder-me os pés na subida.
Temos que saber aproveitar as pedras em nosso favor, e contornar as que são obstáculos... é o que faço, é o que tento sempre fazer!
A vida está longe de ser planície, embora também as tenha. Mas de montanhas e planícies se conjuga o verbo viver.
A vida, como os ramos de uma árvore, entrelaça-se nela própria e vai seguindo rumo à claridade. Uns ramos vão chegando ao fim do seu percurso, enquanto outros brotam e vicejam.
Por vezes os troncos de algumas árvores são castigados com pedras – pedregulhos – lá colocadas ao seu redor rente ao chão. Para quê? Talvez para que aprofundem as raízes à procura do melhor sustento e venham depois a produzir muitos e saborosos frutos – ouvi dizer.

E vou subindo. De vez em quando resvala-me, por baixo dos pés, uma ou outra pedrita que depois rola por ali abaixo, atrás de mim. Não faz mal. Eu prossigo a marcha. Subo. Por vezes como quem trepa. Tenho de subir. Nem que as mãos tenham que ir ao chão aqui ou ali, quando preciso for, para segurar, amparar, para que não me surpreenda alguma queda, mais ou menos aparatosa, e esfole os joelhos, ou a alma.
É dura a subida; mas sei que depois de subir, ainda terei de descer para voltar para casa. Eu sempre pensei que descer era mais fácil – “para baixo todos os santos ajudam”, não é? – Não, não é, afinal. Disseram-me que descer custa mais. Algumas vezes terei de descer de costas, escorregar sentada, com todo o cuidado, não vá cair ao desamparo, e o vazio venha a ser o ganho da jornada.

E andamos toda uma vida com algum vazio por preencher, a esfarrapar-nos contra esquinas de pedras agrestes que nos cerceiam. Quando, por fim, nos libertamos, tantas vezes ficamos mudos e quedos sem conseguir absorver a realidade.


«Quando as pedras frias
caem brancas e torcidas
sobre as palavras imperiais,
mordendo-lhes as raízes
como se fossem o contrário do que são,
fecham-nos a alma e ficamos sem saber
se as asas se quebram ou
se ficamos de pé à espera das próximas pedras.»
(José Maria Brito Sj)

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