31/12/2024

Presépio na Montra e a revisita


Volto ao presépio do tio Zé. O fascínio das suas figuras impeliu-me a revisitá-lo e a observá-lo mais demoradamente.

São figuras pequeninas, de barro pintadinho de cores bonitas, que na sua simplicidade tornam este presépio num lugar mágico, cativante, onde se misturam a criatividade com o belo; e como que a pureza sobressai e vem ao nosso encontro e nos quer falar.

Detive novamente o olhar na figurinha mais intrigante para mim: o Ano Velho com o Ano Novo às costas. Como cheguei a pensar que seria o Pai Natal carregando o Menino Jesus, tenho de o apreciar melhor. Que nos quererá mesmo dizer esta figura no presépio?!...

Que o tempo não termina com o fim do ano, mas continua em tempo Novo, ou renovado?...
Que o tempo de Natal tem o fim do ano e o início de outro pelo meio?...
Que um ano passa o testemunho de Natal ao outro ano?
Que Jesus Menino não é só no Natal, mas se transporta de um ano ao outro?

Sim, para esta figura estar no presépio, terá algo a ver com Jesus...

Ano velho e Ano Novo: dois tempos… figurando num homem velho carregando um Homem Novo! O Tempo que passa e que vem Menino ao nosso mundo… na “plenitude dos tempos”.

Ah, será que quererá significar que no Natal há um ano velho que acaba e um ano Novo que começa?... um antes e um depois? que ali há um marco histórico e sobrenatural? Um tempo velho e um tempo Novo?

Se o nascimento de Jesus é uma boa notícia, uma Boa Nova, será que nos vem dizer para deixarmos para trás o que é velho e começar o Novo?... ou de novo? que o que em nós é velho tem de dar lugar ao novo, ou renovado?...

Tantas interrogações a que uma simples figura nos pode levar!...

Mas acho que sim, que é isso... – uma coisa é certa: não podemos ficar indiferentes ao Natal, que é tempo de nascimento, de nascer sempre a cada ano, outra e outra vez, nascer de Novo, nascer O Novo. O Homem Velho dá lugar ao Homem Novo. Homem Novo que é Jesus, e que tem de ser também cada um de nós que O ama e segue.

O velho tem de dar lugar sempre ao Novo, à novidade – o velho tem de carregar sempre o Novo, como a criança de colo que fomos tem de ser carregada e mantida sempre em nós, pura, perfeita, inocente, humilde e linda.

Pois que se vá o ano velho que em nós se instalou e um Ano Novo connosco viva, em revisita constante de Jesus ao nosso mundo, ao nosso eu.


28/12/2024

Presépio na Montra e A Fuga para o Egipto


Este meu presépio aqui na montra da loja é bem mais pequeno do que o do tio Zé. O dele é enorme! Estende-se pela adega além, em cima de um palanque de tábuas para dar uma altura, que foi revestido até ao chão de papel pardo, retirado de sacos grandes de farinha, enfeitado depois com fitas e bolas coloridas e brilhantes. E o mais importante: tem imensas figurinhas. Perco-me a observá-lo sem nunca me cansar. A cada Natal há sempre mais coisas que o tio vai acrescentando: luzes, água, um ou outro movimento, campainhas que tocam ao ser puxado um cordel que vem pela parede até à porta…
Para além das figuras iguais às que o meu presépio também tem, há outras que me causam alguma estranheza e admiração. Gosto tanto de apreciá-lo e de fazer perguntas! Ó tio, o que é este? Ó tio, e este? Ó tio, e ali aquele?... E o tio com a sua paciência pachorrenta vai-me explicando, como quem está a ensinar catequese – o tio é catequista.
 
Por exemplo, tem um velhinho de barbas brancas com um menino pequenino às costas: diz o tio, que é o Ano Velho que traz o Ano Novo. Tão giro! Nunca tal me passaria pela cabeça: o Ano Velho e o Ano Novo em figura de gente... (e enquadrado no presépio... humm... um homem velho carregando um Homem Novo! Algo a ver com Jesus terá... ainda cheguei a pensar que seria o Pai Natal e o Menino Jesus, que tola, sei lá!...)

Intrigou-me também uma figura de uma senhora que puxa pela mão, como que arrastando, uma criancita que parece ir a chorar. Lá mais atrás uma figura de um militar empunhando uma espada. O tio diz-me que a senhora e a criança vão a fugir dos soldados do Rei Herodes, aquele malvado, que mandou matar todos os inocentes meninos pequenos até aos dois anos de idade, para ver se entre eles apanhava o menino Jesus para o matar. Pois se Jesus é o Rei dos Judeus, pensava ele que vinha usurpar-lhe o seu lugar no trono, não percebendo que o Reino de Jesus é um reino de paz, de amor e de graça de Deus, de vida, de verdade e de justiça; um reino bem diferente dos deste mundo. 

Também detive o olhar, mais além, num burrito que carrega Nossa Senhora com o Menino ao colo, com S. José adiante a pé, segurando o burrinho pela arreata. Conta que vão em fuga a caminho do Egipto, para que Herodes não apanhe e mate o Menino. São José tinha sido avisado num sonho, por um anjo, para que fugissem para o Egipto e por lá permanecessem até que passasse o perigo e lhe fosse transmitido que poderiam regressar.


27/12/2024

Presépio na Montra – Os Reis Magos


Aqui estão, no presépio, Gaspar, Baltasar e Melchior: três Reis Magos, montados nos seus camelos, vindos de longe, dos lados de Oriente. Vêm há vários dias guiados por uma grande luz brilhante de uma nova Estrela, para ver e adorar o Messias Prometido, o Rei de Israel.
 
Para trás já deixaram o castelo do Rei Herodes, a quem foram perguntar se ele sabia onde tinha nascido o Rei que eles vinham visitar, pois que a estrela que os guiava tinha-se encoberto ali perto de Jerusalém e não sabiam para que lado caminhar. Sentindo-se abandonados à sua sorte, não sabendo onde procurar, pensaram que talvez pudesse ser naquele castelo.
 
Mas Herodes não sabia de nada, tendo ficado curioso; então disse-lhes que também queria saber e que lhe viessem dizer quando o encontrassem, pois também gostaria de O visitar. (Mais tarde veio a saber-se que essa sua visita, a acontecer, seria tudo menos amigável). E ali ficou ele, à porta do seu castelo, com cara de poucos amigos!
 
Então os Magos viram de novo a estrela e seguiram-na até à gruta de Belém onde estava Jesus. E ali O adoraram e ofereceram-lhe os seus presentes: ouro, incenso e mirra. 

Depois, sendo avisados em sonhos para não voltarem ao castelo de Herodes, pois as intenções dele não eram boas, escolheram um caminho diferente para voltarem às suas terras.


Há quem diga que haveria ainda outro Rei Mago que ficou para trás no caminho, perdendo-se entre a procura do Menino e a ajudar necessitados, que lhe surgiam ao longo da jornada, com as prendas preciosas que levava consigo como presentes para oferecer ao Rei recém nascido. Sem que conseguisse encontrar os outros Magos e nem o seu olhar alcançasse mais a Estrela de Belém, passaram-se muitos anos até encontrar Jesus, só aquando da Sua crucifixão e morte; aí vindo a saber que O tinha encontrado durante toda a sua vida, nas pessoas a quem tinha amorosa e generosamente ajudado. 

Não sei o seu nome. Mas, quem sabe, esse Mago viesse a inspirar um velhinho de barbas brancas a quem chamam agora Pai-Natal?...
 

25/12/2024

Presépio na Montra – Que Alegria!

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Ora bem: naquela região, perto da gruta que deu guarida a Maria e a José, e onde o Menino Jesus viria a nascer, andavam uns pastores que guardavam os seus rebanhos e por lá pernoitavam, coitados! Se calhar tinham de dormir nalguma gruta que por lá houvesse, ou nalguma cabana improvisada, senão teriam de dormir ao relento e ao frio junto com as ovelhinhas. 

Não sei quantos seriam, mas ainda me restam aqui dois. Vou fazer umas elevações com pedras e cobri-las de musgo para dar o ar de serra, e colocar as duas figuras dos pastores, mais dois cãezinhos que ajudam a guardar os rebanhos, e as ovelhas que me restam e que já só dão quatro a cada pastor: pobres pastores, até no número de ovelhas são quase miseráveis!  Pobres entre os poucos animais, que mal davam para se aquecerem uns aos outros nas noites geladas de invernia!

Então era de noite, mas uma luz bem forte, que eles viram brilhar, fez-lhes ver tudo como se fosse de dia: era um Anjo que lhes vinha anunciar o nascimento de Jesus: 

“Anuncio-vos uma grande alegria: 

… Nasceu-vos um Salvador. 

… Encontrareis o menino envolvido em panos e deitado numa manjedoura.” 

 Depois juntaram-se, àquele Anjo, outros Anjos que cantavam em coro: 

“Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados!” (cf. Lc. 2, 10 – 14) 

Agora é que vai!… só tenho uma figurinha de Anjo, com uma faixa escrita: “Glória a Deus nas Alturas”! Vou pôr o Anjo junto aos pastores e, para já, fica assim. Depois hei-de fazer outros anjos em cartolina e pendurá-los na árvore de Natal, para dar a ideia de que andam a voar e a cantar por ali. Sim, porque era o Filho de Deus que acabava de nascer, e até os Anjos do Céu vieram cantar. Uma alegria contagiante, pois o Messias esperado pelas pessoas, o Salvador, já estava no nosso mundo para trazer a paz tão ansiada! 

Por isso, todas as pessoas do mundo e de todos os tempos foram depois contagiadas por essa alegria. E, daí, podem aparecer muitas figurinhas no presépio: de muitas profissões, regiões e de tempos mais antigos e mais actuais. 

Assim, o presépio é uma maneira muito linda de recordarmos o nascimento de Jesus e do quanto Ele é importante para nós, nos trazendo Esperança num mundo melhor.

(continua)

24/12/2024

Presépio na Montra – continuando

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Mas como são cada vez menos, as figurinhas!... 

Ah, pois... lembro-me de que no ano passado, o meu amigo Zeca me pediu para trocar algumas comigo, das que eu tinha repetidas… mas conseguiu levar-me à certa, deixando-me bem menos das suas do que eu lhe dei das minhas. Das ovelhas levou-me metade do rebanho e, dos músicos, fardados a rigor, ficaram poucos, já nem parece uma banda filarmónica completa… que tonta que eu fui! Bem, é certo que me deu este moinho, parecido com o moinho das sapatilhas, que o meu moleiro não tinha casa; e este poço para a minha lavadeira tirar água e lavar as suas roupas, e mais umas bolas para a árvore de Natal que encontrei agora aqui misturadas com as fitinhas prateadas; por falar nisso, ainda me falta apanhar o pinheiro. É sempre um problema isso, pois, num ano destes que passou, apanhei uma ralhadela do pai por ter cortado um onde não devia, disse que estraguei um pinheirinho novo que estava a crescer e que fazia lá falta. Agora não sei o que faça… se vá procurar algum para cortar – mas eu sei lá onde é que não fará falta?! – ou se não faço árvore de Natal… na verdade, acho que mais importante é o presépio, que representa o nascimento do menino Jesus, e é o que comemoramos no Natal: o nascimento de Jesus. Mas a árvore de Natal, costumava erguê-la por cima da gruta do menino, como que para proteger das investidas da invernia e dar algum aconchego e abrigo àquele local tão inóspito onde teve de nascer o rei dos reis, por não haver lugar para eles nas hospedarias de Belém. É que estavam todas cheias de pessoas vindas de outras regiões, tal como José e Maria que tiveram de vir de Nazaré para darem os seus nomes no recenseamento na cidade onde pertenciam. Tão longe a caminhada a pé, apenas Maria sentada no burrito, pois estava de gravidez avançada e ser-lhe-ia muito penoso vir a pé todo o caminho. Coitadinho do burrito, um bom serviço que prestou a Maria e a Jesus! E, depois, juntamente com a vaquinha que dormia na gruta, ainda aqueceu com o seu bafo o menino depois de ele nascer.


23/12/2024

Presépio na Montra I – Nem que chovesse


O dia tem estado chuvoso. Uma chuva miudinha molha-parvos, que deixa o tempo baço, tipo nevoeiro denso.

Depois do almoço, observei, pela janela, que o fusco do dia estava a querer aliviar, a raiar uma pequena luminosidade. Sim, parecia uma *aberta. Saí à rua para confirmar se não chovia. Era, de facto, uma aberta e tinha de aproveitá-la. Calcei as botas e vesti uma capa impermeável para o caso de a chuva voltar. Peguei numa caixa de papelão e fiz-me ao caminho.

Sabia onde o encontrar. Lá em baixo, para lá da curva da estrada, a seguir à ladeira. E lá estava ele, em manchas verdes, na barreira inclinada. Pousei a caixa de cartão e toquei com as mãos aquele tapete luzidio de musgo fofo e húmido; mas não estava muito encharcado quando arranquei um pedaço grande, com muito cuidado para não se despedaçar. Queria-o o mais inteiro possível, mas sem ser maior que o tamanho da caixa.

Depositei-o no fundo do caixote e arranquei mais até o encher de alto coruto. Não me demorei muito nesta tarefa. O musgo era abundante ali, eu já o sabia.

Carreguei esse volume pela estrada acima, mas tive de parar algumas vezes pelo caminho, pousando-o na berma da estrada molhada, para descansar um pouco. Estava a querer começar a chover de novo, tinha de me despachar. Ainda por cima o fundo da caixa começou a ceder com a humidade e o peso e… caramba!, rompeu-se quando o tentei levantar do chão depois de mais uma paragem. Baixei-o logo, não dando tempo a que o musgo se esgueirasse pelo fundo abaixo. Tinha-lhe pegado pelas bordas do fundo, mas não era capaz de o abraçar todo com as mãos por baixo – ai, esta minha falta de habilidade… O que valeu é que já estava perto de casa. Deixei-o ali e fui a casa, direitinha à oficina do pai, à procura de algo que me desenrascasse. Encontrei uma pequena tábua fina e estreita – minha tábua de salvação – que seria pouco mais comprida que o caixote. Levei-a e enfiei-a por debaixo da caixa. Levantei o peso com algum esforço, agora parecia mais pesada ainda, ou seria do meu cansaço de andar para cima e para baixo, apressada com medo da chuva, que ameaçava. Mas nem que chovesse! Ele não ficaria lá.

Trouxe-o para casa, ainda antes que os pinguinhos miudinhos caíssem outra vez. Agora aqui está ele a postos para poder montar o presépio.
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*aberta = pausa na chuva até voltar a chover

22/12/2024

Presépio na Montra – introdução


Fui buscar as figurinhas do presépio ao sótão, onde estavam guardadas, desde que o presépio foi desmanchado depois do Natal passado. 
Vou-as tirando do caixote, uma a uma, para cima de uma pequena mesa que está a um canto na loja. São muitas, algumas partidas que tenho de colar. Um fascínio admirá-las, uma alegria voltar a fazer o presépio neste Natal. Contemplo-as à medida que as vou segurando nas mãos e pousando na mesa. Ovelhas e pastores. O pescador; o cavador; a vendedeira de bolos; a lavadeira; o moleiro e o seu burrico carregado de taleigos; uma banda filarmónica, de músicos todos fardados de azul, a tocar os seus instrumentos: de sopro e tambores; o fogueteiro; um padre; um galo; o anjo que anuncia o nascimento do Menino. São José e Maria – Nossa Senhora. Jesus. Jesus – o Menino Jesus tão pequenino – a figura central do Presépio. Mais outra figura do Menino Jesus um pouco maiorzinha, com um bracinho partido (quero ver se o encontro misturado com as restantes ou no fundo da caixa). A vaquinha e o burrinho, que aquecem o Menino. Um moinho; uma casa; um poço; uma ponte; o sapateiro; o ferreiro; a senhora que assa castanhas. Vários bocadinhos partidos, entre eles o bracinho do Menino. O Rei Herodes. Um peixinho encarnado com uma ponta do rabo partida já há muito tempo – sempre o conheci assim; um pato todo branquinho e outro com um chapéu azul na cabeça e laçarote amarelo ao pescoço. Os três Reis Magos: Gaspar, Baltazar e Melchior.

São muitas, embora este ano já sejam menos...

O Gigante do Moinho das Sapatilhas (conto de Natal)

O velho moinho de vento, no cimo do outeiro, com aquelas sapatilhas enormes a girar, desde sempre alimentou as minhas fantasias de criança, como uma lenda…

O Gigante, que lá mora, fora em tempos uma criança feliz, como qualquer criança. Mas quando começara a crescer demasiado, deixara de ter amigos por o julgarem diferente. Os colegas troçavam dele, fazendo piadas acerca do seu corpo grande e esquisito. E ele, ao sentir a rejeição, começou a ver-se com outros olhos, a notar que não era igual às outras crianças, às outras pessoas, e isolou-se do mundo, desenhando para si um outro mundo à sua medida. Os pais passaram a ser o seu único consolo. Estes, com todo o seu amor, protegiam-no, mimavam-no e faziam-no esquecer os colegas da escola que o haviam maltratado.
Começara a trabalhar no moinho, ajudando o pai a moer o trigo e o milho das freguesas e, depois que o pai falecera, assumira esse trabalho por inteiro. Restara-lhe a mãe ainda por algum tempo, mas depois esta partira também deixando-o ainda muito jovem. Desde aí não mais soubera o que era um carinho. A solidão era a sua constante companhia.
Continuava a transformar em farinha os pequenos grãos das mesmas freguesas de sempre, mas ninguém lhe dispensava mais do que as palavras estritamente necessárias. E ele fechava-se num mutismo azedo e carrancudo que assustava ainda mais. Não fosse a necessidade daquela bela farinha, produzida naquele luminoso moinho, e ninguém se daria ao trabalho de subir a colina.

Mas o Gigante não era só aquele monte enorme de ossos e músculos, de cara fechada e empoeirada de farinha, que às vezes até parecia um fantasma. Ele era sensível e sofria. A solidão doía-lhe no íntimo do seu coração cada vez mais apertado.
Os anos iam passando por ele monotonamente, numa sucessão de dias sempre iguais, tornando-o num jovem adulto a quem tinham sido roubados os sonhos. Não sabia o que eram festas, romarias, comemorar a Páscoa ou o Natal. Sabia que existiam, mas não tinha direito a isso.

Nesta altura do ano, ele apercebe-se, pelo frio que faz e pelas encomendas maiores de farinha, que o Natal se aproxima. E fica ainda mais triste e solitário, mais infeliz e revoltado, mais amargo e mal-humorado. Tão gigante e tão frio que a todos afugenta cada vez mais.
Mas aquele gelo andava prestes a ser quebrado.

E quebrou. Derreteu completamente, começando a pingar-lhe daqueles olhos da cor do mel, quando Maria, de sorriso a bailar nos lábios carnudos, lhe colocou nas mãos duas broinhas de Natal.
Todo o seu semblante se transformou, parecendo reviver nele a magia da sua infância. Aquela coleguinha, agora uma linda mulher, lembrara-se dele e viera para lhe colorir o seu mundo tão sombrio. Até parecia que os tristes raios de sol de Inverno, que entravam pelas frinchas do moinho, brilhavam com todo o ouro quente do Verão.

É por isso que agora ouço o Moinho das Sapatilhas entoar uma nova melodia ao vento.
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Conto que escrevi e enviei para responder a um desafio denominado Projecto CrioNatal 2008, para um livro de Contos de Natal.

Posteriormente publicado em livro: Memória Alada, 2011
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21/12/2024

Subir o Caminho VI

Sento-me por momentos numa pedra na encosta a meio da ladeira íngreme, ofegante de cansaço; à minha volta, fragrâncias húmidas de terra e de musgos. As pedras, castanhas de terra, gemem pequenos fios frescos prateados. Por baixo de uma pedra espreita um pequeno lagarto, ou lagartixa – nem sempre sei bem distingui-los; e por entre outras, pequeninas flores. Até no meio das pedras, Deus faz brotar as mais belas flores. Para que se aprenda a sorrir e se esqueçam, ainda que por momentos, as dores. Para além da meta que se pretenda alcançar, é preciso saborear os bons momentos do caminho.

Ergo-me, depois de inspirar o pequeno descanso. No meio do caminho a pedra ficou.
A pedra. E as outras pedras.

As pedras, que são tão essenciais aos alicerces! – sem alicerces somos construção frágil, que em qualquer altura está sujeita a ser levada pela menor ventania.

Pedras que tanto fazem parte do caminho! Continuam no meu trilho a querer morder-me os pés na subida.
Temos que saber aproveitar as pedras em nosso favor, e contornar as que são obstáculos... é o que faço, é o que tento sempre fazer!
A vida está longe de ser planície, embora também as tenha. Mas de montanhas e planícies se conjuga o verbo viver.
A vida, como os ramos de uma árvore, entrelaça-se nela própria e vai seguindo rumo à claridade. Uns ramos vão chegando ao fim do seu percurso, enquanto outros brotam e vicejam.
Por vezes os troncos de algumas árvores são castigados com pedras – pedregulhos – lá colocadas ao seu redor rente ao chão. Para quê? Talvez para que aprofundem as raízes à procura do melhor sustento e venham depois a produzir muitos e saborosos frutos – ouvi dizer.

E vou subindo. De vez em quando resvala-me, por baixo dos pés, uma ou outra pedrita que depois rola por ali abaixo, atrás de mim. Não faz mal. Eu prossigo a marcha. Subo. Por vezes como quem trepa. Tenho de subir. Nem que as mãos tenham que ir ao chão aqui ou ali, quando preciso for, para segurar, amparar, para que não me surpreenda alguma queda, mais ou menos aparatosa, e esfole os joelhos, ou a alma.
É dura a subida; mas sei que depois de subir, ainda terei de descer para voltar para casa. Eu sempre pensei que descer era mais fácil – “para baixo todos os santos ajudam”, não é? – Não, não é, afinal. Disseram-me que descer custa mais. Algumas vezes terei de descer de costas, escorregar sentada, com todo o cuidado, não vá cair ao desamparo, e o vazio venha a ser o ganho da jornada.

E andamos toda uma vida com algum vazio por preencher, a esfarrapar-nos contra esquinas de pedras agrestes que nos cerceiam. Quando, por fim, nos libertamos, tantas vezes ficamos mudos e quedos sem conseguir absorver a realidade.


«Quando as pedras frias
caem brancas e torcidas
sobre as palavras imperiais,
mordendo-lhes as raízes
como se fossem o contrário do que são,
fecham-nos a alma e ficamos sem saber
se as asas se quebram ou
se ficamos de pé à espera das próximas pedras.»
(José Maria Brito Sj)

20/12/2024

Regresso ao mundo I

A janela semicerrada deixava entrar uma claridade suave, que transmitia uma aura pacificadora e tranquila. O silêncio era entrecortado, aqui e ali, por um misto de vozes sussurradas e passos no corredor.

Deu a volta à cama, aproximando-se da janela e ficou por momentos a espreitar pelas frestas, sem nada ver.
O coração queria saltar-lhe do peito, tal era a sua ânsia de a abraçar, de a beijar. Mas tinham-lhe recomendado que não a acordasse. Estava sob o efeito de sedativos pois os traumatismos eram muito grandes.
Olhou-a. O seu rosto tinha o mesmo encanto que o prendera, apesar daquela marca roxa do lado esquerdo.
Será que se lembraria dele?
- Quem está aí?... – perguntou Luísa num leve murmúrio.
Entreabriu os olhos e tentou fixar aquela silhueta luminosa que se encaminhava para si.
Ele não resistiu a pegar-lhe na mão, sem dizer nada.
Ela baixou novamente as pálpebras, deixando a sua mão naquela que a prendia, sentindo como se fossem duas gotinhas de água juntas num lago azul. Sonhava. O mundo parecia cantar.

18/10/2024

José Miguel


José Miguel de Andrade Cardoso nascera no Porto numa tarde de Junho de 1984. Um parto difícil, por fórceps, que traumatizou a jovem mãe e a levou a pensar não lhe dar irmãos, não fora a ironia do destino a surpreendê-la novamente poucos meses volvidos.

Manuela de Andrade, que descendia de uma família de brasão, quase obrigara o seu namorado Jorge Cardoso a casar com ela às pressas.
Jorge provinha de uma família simples, e fora seduzido pela menina de família, de modos finos, que o deslumbrara com um mundo tão diferente do seu.
Depois, ela fizera-lhe sentir a sua vergonha ao saber-se grávida e ele cumprira o que lhe prometera, mais cedo do que contava. A juventude e a inexperiência fizeram pouco deles, por duas vezes.

Entre José Miguel e Ana Maria havia apenas a diferença de um ano e alguns dias, e a cumplicidade, talvez mais do que o sangue, a uni-los. Os sorrisos de um eram a alegria do outro, tal como as lágrimas de um eram a dor do outro. Desde cedo (mais entregues aos avós maternos do que aos pais, que achando a sua liberdade tolhida pelos nascimentos dos filhos, não se permitiram dedicar-se-lhes em grande parte, delegando muitos dos seus cuidados naqueles, com quem moravam) os dois irmãos refugiavam-se mais um no outro do que no colo dos avós ou dos pais. Frequentaram a escola juntos, até que o percurso académico divergiu. José Miguel estudou sempre no Porto e sentiu demasiado a falta de Ana Maria quando chegou a altura em que ela foi para Lisboa. Sentiu-se desamparado ao faltar-lhe a confidente sempre pronta a ouvi-lo, só a tendo nos poucos fins-de-semana que esta vinha passar com a família. Passou uns maus bocados, com os seus amores frustrados e com a falta da irmã, sem conseguir buscar o apoio no resto da família, mas sobreviveu.

Quando acabou a faculdade, a nova vida profissional de médico dentista levou-o para Coimbra. E é em Coimbra que volta a encontrar Luísa e que lhe sangra o coração outra vez.

(continua)

10/10/2024

Fogo


Naquela tarde, o sol fervia-lhe antipaticamente nas têmporas, ao adentrar-se inconsequente no automóvel, estrategicamente estacionado, e feria-lhe de luz intensa os olhos: nem os óculos escuros lhe escondiam os raios vibrantes. Ainda no dia anterior lhe chovera de improviso e, poucas horas volvidas, um sol sem tréguas o despia de nuvens e se apostava a vesti-lo de fogo. E pensou que precisava de uma cortina de sombra, uma corrente de ar, uns pingos de chuva que o viessem refrescar: ardia.
Dali podia percorrê-la com o olhar quando saísse ou entrasse em casa. E enfim vira-a: bebera-a toda com o olhar. Tinha pensado que era quanto lhe bastava, mas encontrava-se pegado àquele assento, à espera de nova visão. Ela saíra, havia de regressar.
Quanto da vida se suspende de um contacto, ainda que só visual, à distância, mesmo que só um dos lados o saiba, o sinta, o aprecie!

Parecia tomado de febre quando levantou a cabeça para o espelho retrovisor e viu reflectido o seu rosto brilhante de suor, marcado pelo cansaço e pela indecisão. Viu-se o jovem que era, mas sentiu-se velho, ao notar as rugas a marcarem-lhe a testa. Sabia que era preciso construir o futuro, mas então, porque se detinha ante um passado que o prendia numa espécie de limbo, do qual não ousava sair? Queria olhá-la de longe, nem que só uma vez mais, e uma pequena felicidade lhe sorriria. Mas essa felicidade ser-lhe-ia suficiente? Se não podia ser de outra forma, sim, tinha de ser suficiente. Vê-la secretamente, saber que estava bem, encher-lhe-ia os olhos e acalmar-lhe-ia a alma.
Ainda desse modo se agitava quando a avistou de volta: magra, mas belíssima como a conhecera. Escorriam-lhe de cobre os cabelos levemente volteados sobre os ombros, enquanto que os olhos de luar se ocultavam por detrás dos óculos escuros – mas adivinhava-os – e eram fascínio e dor: promessa e recusa. Ali, ao alcance de uns passos: todo o seu tormento, a sua agonia – a sua vida.

(M. Fa. R. )

04/10/2024

A única escolha


Só tinha uma hipótese: ir. Já perdera muito tempo calando o que havia para dizer. Só agora começava a ter noção de que nunca se deveria ter calado.
São as palavras que se calam as que, por vezes, mais doem. Doem como fazem doer as fracturas expostas. E muitas vezes são nódoas negras que aparecem depois de uma pancada. As que ela calara eram tudo isso e muito mais: eram ferida aberta que, por mais curativos que quisesse inventar, não cicatrizava.
Naquela altura não pensou que seria assim. Achou que ficaria tudo bem, que ficaria tudo melhor se se calasse, e que o tempo seria seu aliado. Mas agora, depois dos traumatismos que sofrera em consequência do acidente, olhando para as nódoas negras do seu corpo, que ainda mal se queriam disfarçar, pensava nas outras que tinha por dentro e que lhe doíam na alma. Estivera do lado de lá da vida. E regressara. Agitava-se agora numa convulsão, ao pensar que aquelas palavras não ditas poderiam ter morrido com ela. Palavras em carne viva, que lhe eram sangue escorrendo dolorosamente da ferida recentemente acesa. Sim, tinham sido nódoa negra de sangue pisado. Agora eram chaga com sangue vivo que se lhe vertia para dentro em catadupa e lhe revolvia as entranhas até a sufocar num vómito aflitivo. Chorar, por vezes resolve; mas outras, nem por isso. E chorar não resolvia a sua dor. Tinha que falar. Tinha que o procurar e falar.
Depois de ter despertado de todo um emaranhado de alucinações, tomara consciência de que o tivera outra vez e que, outra vez, o perdera. Se ele tivesse voltado, talvez que não lhe tivesse sido difícil dizer-lhe tudo. Mas ele não voltara. Não voltava. A espera era inútil. E só ela e Deus sabiam o quanto lhe doía tudo. Tudo.
As palavras que se calam agigantam-se dentro do peito e chega uma altura em que têm de eclodir. Mesmo que façam doer ainda mais do que doem. Mas, se para sarar uma ferida tiver que doer ainda mais, que doa! Assim é que já não podia continuar. Falaria. Falaria tudo o que havia para falar. Tudo. Até à última lágrima. Até à última gota de sangue.
Engoliu a enchente de lágrimas misturadas com essa decisão e foi em frente. A vida tinha-lhe dado outra oportunidade que não podia desperdiçar. Só tinha uma hipótese: ir.

(M. Fa. R.)

02/10/2024

Asa ferida


Fugia do que não podia controlar. Fugia magoado com a dor de se sentir inseguro, perdendo-se na fronteira entre a verdade e o medo dela.
Tivera uma efémera felicidade que ainda lhe corria nas veias, lhe percorria as artérias, lhe inundava o cérebro, ao mesmo tempo que se transformava num regato de solidão. “Os lugares dos outros atingem-nos na nossa insegurança!” – Era o pensamento que o levava a um lago parado: um lugar que não estava vago, que era habitado por cisnes brancos, onde não cabia um patinho feio.
Contudo, não conseguia evitar de a imaginar no voo das gaivotas. As gaivotas e os sonhos possuem a liberdade de voar por entre as nuvens, indiferentes à agrura da viagem, apenas sentindo o odor a maresia no arco-íris que perseguem. O voo das gaivotas é sustentado pelas asas; são elas a segurança do voo no sopro do vento.
Mas nem ele era uma gaivota nem as suas asas lhe permitiam voar. Era um patinho feio de asa ferida, que tinha sido atingida na sua ainda débil segurança. Não, não podia aventurar-se no voo - as suas asas mal lhe amparavam a fuga.

09/09/2024

Fuga


Disse para si próprio que era loucura.
Quando tinha 23 anos deixara-se envolver, perdidamente, num romance dourado com a sua professora preferida daquele segundo semestre, a mais bela das mulheres, que agora, passados quase três anos, estava ali deitada naquela cama do hospital, com os filhos a cobri-la de beijos, depois de ter estado entre a vida e a morte.
Como era possível que não soubesse nada da sua vida, que tinha filhos, marido?...
Este pensamento atormentou-o. Se tinha filhos, devia haver um homem que a amava... porque não estava ele aqui? Não conseguiu acalmar a agitação provocada pela ideia de que outro homem, apesar de ausente, preenchia um lugar a que ele não tinha direito. "Eu não posso passar sem ela, não agora que a reencontrei."
Mas a verdade é que ela o tinha deixado... sim, claro, havia outro homem... o menino mais pequeno não teria 2 anos e o mais velho uns 7. Como pudera ser tão inocente? Que fazia ele ali, então? Só conseguiu, de momento, imaginar uma solução: iria embora.
Talvez que ela tivesse gostado realmente dele, mas as circunstâncias tinham-nos levado por caminhos diferentes, apesar de agora se terem voltado a cruzar... não, não sabia porque o destino os pusera de novo frente a frente... não sabia como a encarar de novo.
Isto estava a produzir-lhe um turbilhão de sensações confusas, contraditórias, que lhe tornavam dolorosa a sua permanência ali. Afastar-se-ia... rapidamente, antes que se arrependesse.
Deitou um último olhar àquele quadro, enquanto se dirigia à porta, sentindo-se estilhaçar todo por dentro.
Talvez voltasse... ou então não.

08/09/2024

Finalmente


Os braços estendidos com as mãos abertas são asas que planam ancoradas à ânsia de um encontro perdido de afecto; planar é uma forma de suster a respiração, para absorver uma explosão de sentidos inebriante.
 Há uma tela a tingir-se de um colorido novo: a entrada de dois passarinhos com a insegurança de um primeiro voo. Dois olhitos ansiosos, seguidos de outros dois assustados, exploram o espaço desconhecido. Ao fundo, a luz: a figura central, única. Agora, nada mais importa. As pernitas saltitam sem sentir o chão e os bracitos abrem-se e esticam-se para abarcar toda a emoção e deixar esvair toda a saudade, numa configuração de amor e terapia. Dói. Oprime. Sufoca. Mas é vida que flui. Chovem beijos salgados, prisioneiros de um mar de abraços, em sucessivas ondas, que acabam por se espraiar até ao relaxamento; uma dança de mãos que acariciam rostos, de olhares e sons que traduzem a grandiosidade do colo de mãe.
 Agora, nada mais importa: só mãe e filhos juntos, de novo!

07/09/2024

O reencontro


Entre a insónia e o despertar há um mundo de palavras respiráveis, à espera para se soltar.
Do passado à insónia, marcas foram sulcadas, rasgadas, aprisionadas. Marcos de pedra e cal, espetados, amarrados.
A insónia do passado traz consigo uma urgência de se reabilitar.
Entre a insónia e o despertar, um sono mal dormido, numa ânsia mordida, calada, dorida… parada, sofrida.

Abriu, por fim, os olhos. Viu-o. Era ele. Afinal… era ele. Era tudo tão estranho.

Olhou-a, como quem não sabe o que quer; como quem não sabe o que faz; como quem não sabe nada de nada. Era tudo tão estranho!

Ele estava ali. Ela estava ali. Frente a frente. Como num sonho, ou num feitiço, em que os dois são outros e não eles. Meses e meses de dor concentrados num momento. Meses e meses de amor prisioneiros de um olhar.
Ambos sentiram, de repente, falta de um mimo. Falta de o receber e de o dar.
José Miguel aproximou-se e tomou-lhe a mão… De olhos nos olhos e de mão na mão, todas as palavras são demais. Todos os gestos revelam as palavras não ditas.
As lágrimas acabaram por se soltar, os soluços por irromper. Ambos deram vazão à emoção que os sufocava. Nenhum dos dois conseguia falar; só o facto de estarem juntos já preenchia todo o vazio que se houvera instalado durante a longa ausência. José Miguel foi impelido a afogar o rosto no pescoço de Luísa e esta a afagar-lhe a cabeça, a apertá-lo de encontro a si. E assim permaneceram por largos minutos, até serem interrompidos. Então olharam-se ainda ébrios do que sentiam.
Como faz falta um mimo!


02/09/2024

Regresso ao mundo III

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“Não éramos iguais. Nunca foi uma relação de iguais… tinha de me afastar.”
Sempre a mesma desculpa. E sempre o mesmo peso na consciência. E sempre o mesmo amor teimoso a não dar tréguas nem sossego. Tanto tempo já passado e tantas lutas para que a tranquilidade visitasse o seu coração, e até parecia que, à medida que o tempo passava, a inquietação se instalava mais.

Tinha ficado de tal modo atrapalhada ao avistá-lo ao longe, que não reparara no automóvel a grande velocidade e se deixara atropelar, quase mortalmente. Fora um milagre ter acordado daquele coma profundo, depois de ter sido dada como morta.
A sua primeira preocupação tinha sido com os seus meninos e pedira socorro para eles, mas acordara com José Miguel na memória, talvez devido ao facto de ele nunca de lá ter saído. Ele era o seu constante pesadelo.

Quando sentiu uma respiração quente a acariciar-lhe o rosto, o pesadelo suavizou, mas nada daquilo podia ser real. Não podia ser… já sonhara aquele sonho tantas vezes... Era somente um produto da sua mente perturbada que insistia em atormentá-la.
No entanto, aquele beijo parecia tão verdadeiro que não queria acordar. Perfeita alucinação em que mergulhara e que lhe transmitia um bem-estar interior tão intenso que queria que perdurasse, para não ter que dar ouvidos aos remorsos de o ter deixado, sem lhe contar a verdade, e que não a largavam nunca.

Poderia ele perdoar-lhe?

22/08/2024

Regresso ao mundo II

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Uma sonata de sons alucinantes parecia ecoar aos ouvidos de José Miguel, como convite a loucuras inconfessáveis. Aquela mão, retida na sua, irradiava centelhas de calor que o trespassavam até à medula.
O mundo tinha parado e José Miguel, de olhos fechados, saboreava com sofreguidão aquela embriaguez dos sentidos que se apoderara dele, enquanto o seu peito arfava de comoção.
Não conseguindo aguentar, foi deslizando a sua mão pelo braço nu da sua amada, num bailado de arrebatadora paixão.
Sentia-se um pecador, mas o desejo foi mais forte. Pousou os seus lábios naqueles que o chamavam com um misto de veludo e seda, primeiro com toda a suavidade, depois, sentindo-os entreabrirem-se, fundiram-se neles numa entrega inevitável e plena de êxtase.
O beijo quente e apaixonado fez-lhe reviver alvoroços perdidos no fundo de um baú. Mas aquilo parecia-lhe uma violação. “Perdão, meu amor…”, foram as palavras que lhe afloraram à mente. E afastou-se. Afastou-se sem se poder saciar naquela boca, que tantas vezes tinha povoado os delírios das suas noites. Afastou-se sentindo um arrepio profundo a inundá-lo, até lhe deixar as mãos trémulas e a cabeça à roda. E, de repente nauseado, antes de ter tempo de procurar onde se sentar, notou que o chão lhe fugia…
As emoções tinham sido muitas e demasiado fortes nos últimos dias, e aquela vertigem, que lhe tirou momentaneamente os sentidos e o atirou ao chão, era o resultado disso.
“Luísa… oh, Luísa… tanto te esperei!...”

06/07/2024

Cor matinal


Um som estridente ressoou pelo casarão adentro, fazendo rodopiar, num gesto de bailarina, o coração assustado de José Miguel. Ainda de forças quebradas pela noite mal dormida, teve de inventar um grande esforço para se erguer. Transpiravam-lhe as mãos quando rodou a chave na fechadura. Do lado de lá, dois rostos femininos encaram-no com surpresa. Identificam-se. 
– Quem é o senhor? – Pergunta uma das jovens. 
José Miguel fica sem saber que responder, mas consegue dominar a situação e ilude a pergunta. 
– Que desejam? 
– Vimos buscar os meninos. – Percebe uma resposta seca, talvez numa tentativa de cortar pela raiz uma eventual resistência. Então, propõe-se travar aquele propósito sem qualquer capitulação. Estava ali para proteger os seus pequeninos. – A mãe deixou-os sozinhos em casa… 
– Não! – Cortou José Miguel – deixou-os comigo! 
Assim. Com total liberdade. Ninguém lhe arrancaria aquelas pérolas que acabara de encontrar. Por isso ensaia o acto falaz. – São meus filhos. Nunca permitirei que os levem! 
– Mas a mãe… 
– Já não têm mãe – gemeu. – Não os podem deixar também sem pai… 

Quase desfalecia de dor. José Miguel começava, agora, a entregar-se a um sentimento de inquietação que o rondava, pela ideia de que poderiam querer interná-los num lar de acolhimento de crianças em risco, afinal eram órfãos, e ele um intruso. Mas não existem verdades absolutas. Os sustos e as surpresas surgem sempre repentinamente, revelando o quão ilusória é uma certeza e abstracta uma harmonia. Do mesmo modo, na escuridão pode esplender inesperadamente uma luz, qual galanteio que converte uma amálgama de mágoas em sintonia perfeita de cores e tons. Deste confronto com as Técnicas de Serviço Social vem a nascer nova alma em José Miguel. Luísa vive. Acordou quando todos a julgavam morta. Era ela que as tinha ali mandado.

[Texto enviado
ao 7.º Jogo das 12 Palavras]

21/06/2024

Sombras IV


Desde aquela manhã em que acordara com o bilhete ao seu lado, aquele bilhete manuscrito por aquelas mãos que tinha tido entre as suas, aquele bilhete que ficara como despedida de um amor que parecia não ter fim, desde aquela manhã, que a sua vida tomara um rumo sempre pendente de um acalentado reencontro.

Mergulhou o rosto entre as mãos e abafou os soluços que lhe saltavam do peito. Olhou a foto uma vez mais e percebeu o seu coração a bater pesadamente.

Ai, o coração... como batia forte quando, tímidos, os seus passos o levaram até ela!
Fora ficando fascinado com o seu sorriso, que exalava o perfume das flores abertas ao sol da manhã. Os seus olhos transbordavam lagos verdes de uma perene sedução; os cabelos ondeavam reflexos quentes do sol e todo o seu corpo se movia nessa luz.
Inflamado de paixão e sedento de amor, o seu olhar traiu o que o seu peito encobria. E nesse lume aceso arderam os dois, quando os seus lábios se roçaram...
“Amo-te..." - Ainda ecoava aos seus ouvidos.

- Porque me abandonaste depois da mais bonita noite de amor que me deste? - Soluçava - Senti tanto a tua falta!... Perdi-te... e agora perdi-te para sempre! Fazes-me tanta falta…
Sentia-se inundado por um sentimento de perda irreparável. A esperança que lhe permitira caminhar, toda se esfumara agora como um feitiço quebrado.

O castelo de sonhos que tinha construído desmoronara-se nesse dia em que lhe perdera o rasto. Luísa deixara-o, abandonara-o. Só constatara isso, a muito custo, depois de algumas infrutíferas buscas. Depois acomodara-se. Se era isso que ela queria, tinha que respeitar. Se bem que a esperança, essa, nunca o deixara. Afinal o mundo até nem era assim tão grande.
Seguira com a sua vida. Concluíra o curso e tivera as suas aventuras, mas não se ligara a ninguém. Os seus sonhos residiam na reconstrução daquele castelo desmoronado. Castelo esse que agora se diluía em pó.

Mas, no meio da nuvem de poeira negra, brilhavam duas pedras preciosas que não sabia que existiam. Agora arrancaria força dos escombros do seu peito para, com elas, alicerçar um novo e dourado castelo.


18/06/2024

Sombras III

De cara envolta como que numa nuvem de pó de talco e sentindo-se a flutuar em denso nevoeiro, parecia-lhe ouvir umas vozes perto de si. 
Alguém, uma vida, um fim. Uma noite de luar negro. Era jovem e um espectro se acercara. E não havia resistido. Tudo se resumia, assim, a um ponto final. 
Pela maneira como ouvia a descrição parecia-lhe ver aquele seu ex-aluno da faculdade, aquele que via sempre como se fosse numa miragem. Um delírio, uma ilusão, um oásis inalcançável no seu deserto. Por vezes um sonho, outras, um pesadelo no seu sono agitado do meio da tarde. Via-o: o corpo esbelto, a cara miúda, o cabelo meio comprido… Era ele… ou delirava? Sentiu uma dor aguda. 
Num relance, algumas cenas passadas desfilaram pelos seus olhos. Viu-se a andar pelos corredores de mãos ocupadas pelo material de trabalho. Deslumbrou-se com aquele olhar que se cruzou com o seu pela primeira vez. Sentiu o coração bater apressado ao verificar que o tinha perto de si, na mesma sala. Experimentou uma sensação de frio na espinha, que a percorria, e pressentiu que a sua alma o amava. Reviu hipnotizada o seu sorriso que lhe falava mais do que muitas palavras. Viajou para além do impossível quando ele a amou. Reviveu momentos a que julgava não ter mais direito desde que perdera o único homem que até então tinha amado. Assistiu serena à confirmação pelo médico daquilo que já sabia. Olhou-o longamente enquanto dormia, retendo bem a sua imagem para não mais a perder. Mudou de cidade e deambulou por corredores diferentes, porque não podia cortar as asas a um anjo. Foi de novo mãe e pai ao mesmo tempo. Reviu-se a viver cada dia tendo como único objectivo a felicidade dos seus frágeis rebentos. Reconheceu-se a caminhar à pressa pela rua, acorrendo ao chamado de uma amiga. Avistou-o ao longe e fugiu de um encontro, sentindo o coração partir-se outra vez em mil pedaços. Lembrou-se dos meninos sozinhos em casa. Sentiu a vida irremediavelmente perdida quando viu o automóvel na sua direcção a grande velocidade. Nuvens e sombras a toldavam agora. Estava de novo no presente. Pensava. Não… Havia uma confusão qualquer. Onde estou? Sentiu frio. O coração acelerava… Alguém se aproximou rapidamente. Encarou-a. 
- Está viva! … 
Afinal, de quem falavam? 

Tinha acabado de acordar de um sono do qual não era para acordar. Do qual ninguém acorda assim... facilmente!

14/06/2024

Sombras II

Tinha reparado com atenção em toda aquela inusitada cena na piscina e seguiu-os. Sabia como lidar com crianças, sentia aptidão natural para isso. Por isso foi-lhe fácil aproximar-se e falar com cuidado e meigamente. Procurando ganhar a confiança deles, começou por perguntar com se chamavam. Manuel e José, respondeu o maiorzinho, apontando para si e para o irmão, respectivamente. Que faziam ali sozinhos? Que não sabia da mãe. Esta, ao sair, tinha-lhe pedido que tomasse conta do irmão. Seria por pouco tempo. Não demorava. Uma colega tinha necessidade da sua ajuda e era preciso que lá fosse.
Primeiro pensou que ela tinha precisado demorar um pouco mais, e adormeceram no sofá da sala enquanto viam televisão. Do dia seguinte acordaram e ela não estava no quarto. Se calhar tinha saído para fazer alguma coisa e não tinha querido acordá-los. Comeram bolachas com leite, e mais tarde os iogurtes que estavam no frigorífico. E à noite a mãe ainda não regressara.
Hoje resolvera procurá-la nos lugares onde ela os costumava levar. Não tinham mais ninguém em casa. Sentia muito a falta da sua mamã. Tinha medo que lhe pudesse ter acontecido alguma coisa de mal.
O pequenino pedia a mãe. Pegou-lhe ao colo e acarinhou-o como se fosse filho seu. Adormeceu-lhe no regaço enquanto o acariciava. O outro encostou-se-lhe também e sentiu-se invadir de uma ternura imensa. Estes pequeninos precisavam de alguém que olhasse por eles, que lhes encontrasse a mãe, que os protegesse, tão indefesos e carentes estavam, e tão à mão de predadores, alheios ao perigo que corriam. Tinha que fazer alguma coisa.
Entrou com eles na igreja enquanto o mais pequenino dormia e ficaram um pouco em silêncio naquela penumbra refrescante. Pediu ajuda à Virgem. Era preciso fé e esperança.
Mais tarde, levou-os a lanchar e acompanhou-os a casa, talvez a mãe já lá estivesse. Não estava. Viu fotos... e o seu sangue gelou e ferveu... procurou nomes, telefonou. Fez-lhes o jantar e comeu com eles. Tranquilizou-os, encontraria a mãe! E adormeceu-os contando-lhes uma história.
Fez mais telefonemas. Sim, estava ali… meu Deus, deveria ser ela! Sentiu-se invadir por uma convulsão incontrolável, um sentimento de perda irreparável, um vazio sem esperança. Agora estes meninos não tinham ninguém, não tinham mais ninguém senão a si... e tomou a decisão: seria o seu pai. O pai que eles pareciam não ter.

10/06/2024

Sombras I

O tempo convidava a um mergulho naquela água reluzente. Mas o calor escaldante que se fazia sentir desenhava-se numa capicua de sofrimento. Caminhando pela beirinha da piscina, puxando pela mão o seu irmãozinho que ainda mal andava, o menino procurava desesperadamente com o olhar. No bolso, a chave de casa - uma mansão antiga, grande demais para dois meninos sozinhos. O pequenino chorava, ora caindo, não conseguindo acompanhar o passo agitado do irmão, ora sendo arrastado e obrigado, pelo mais velho, a levantar-se. A criançada ficou curiosa perante o espectáculo, e alguns adultos pareciam temer que os dois pequenos caíssem à água. Que se passaria com estes meninos que destoavam daquele ambiente? Infrutíferas buscas causavam cada vez mais desânimo neste menino de olhar cansado e fugidio. Havia já duas noites e dois dias em que tudo se resumia a uma espiral de angústia devastadora. Não a encontrava nos locais de lazer, que tão bem conhecia, habituado que estava a que ela os lá levasse. Procurara-a e não a encontrara. Urgia, agora, repensar a estratégia, antes que o desalento e o pânico se instalassem por completo. Sentado na soleira da porta da igreja, esperava. Talvez uma luz divina o iluminasse. Então pareceu-lhe que um anjo lhes falhava. Respondeu às suas perguntas como se o céu os tivesse vindo socorrer. Tinha necessidade de confiar em alguém. Contou tudo. O que acontecera, as suas inquietações, os seus medos e o como já não sabia mais que fazer para calar o irmãozinho. Aquele anjo bondoso tranquilizou-os e até conseguiu que o pequenino adormecesse. Escutava inebriado aquela voz melodiosa que lhe respondia serenidade e esperança. Então pôde acalmar um pouco, recostando-se de encontro ao seu peito, fechando os olhos, sentindo pousar em si a sombra das suas asas delicadas.

29/01/2024

A Casa dos Ratos — intermezzo (8)

 (anterior)

Toda a quadrilha tem um chefe. E eles eram quatro – adiantou-se o vermelhinho: “Eu sou o chefe! Vamos lá, que se faz tarde!” 

E aí vão o Vermelhinho, o Azulinho, o Verdinho e o Amarelinho numa desfilada apressada em fila pelo carreiro, no desfiladeiro do túnel a desembocar numa fresta, alargada pelo Tonecas de tanto por lá remexer. E uma luz lá ao fundo brilhava para eles, que já a estavam a ver. Mas são os olhos do Gato que brilham tanto no escuro na ânsia de os comer. Um sobressalto. Um salto. Um “Alto!... Para trás!... que está ali o rapaz!”
Tiveram de recuar e esperar por melhor oportunidade. 

O Tonecas percebera que tinham tentado fugir. Ficou mais alerta, mas à futrica. Desejava-os há tanto tempo que temia que lhe escapassem sem lhes conseguir tocar. Disfarçou, fechou um olho e abriu outro, espreitou pelo buraco, esperou, esperou, esperou, eles haviam de vir. Fingiu um sono profundo. E adormeceu... e acordou e… 

...é agOora! Deu um salto estendendo as mãos e… 

Quase, quase!... por um triz. Ao lado do seu nariz.

Caramba! (meneou a cabeça), como foi possível?! Estava apardalado... Tinham passado rapidamente debaixo dos seus bigodes, caladinhos como só ratos, que só viu o rabo do último. 

Ainda correu, esbracejou, procurou, fungou, miou, qual quê? Agora?! Muito tarde e a má hora! Já deviam ter-se alojado nalgum canto bem escondido. Ah, como lhe tinham apetecido, como lhe apeteciam ainda, que nóia! Cabisbaixo e atordoado retirou-se, já nada havia a fazer, melhor seria agora esquecer. 

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