14/04/2011

Em Tempo de Andorinhas


Tinham chegado as andorinhas. E enquanto umas depressa começaram a recolar os ninhos antigos outras construíam os seus próprios, de raiz. Migalha a migalha. Gota a gota. Pedaço a pedaço. Logo pela manhãzinha a laborar e sempre de alegres gorjeados.
Dentro de pouco tempo as famílias aumentariam e formar-se-iam novas famílias. Novas asas. Novos voos. Novos ninhos. Os beirais estavam a ficar florescentes de vida. É certo que também deixavam um lastro de porcaria pelo chão além, mas nem só de belezas se compõe a vida…

O menino saltou-lhe. Isso fez Matilde voltar a atenção, do que se passava lá fora, para o que se passava dentro. Dentro de casa. E dentro de si. Dava para estabelecer alguma analogia. Há vidas tão cheias de beleza e que dão em porcaria; e há porcarias de vida que dão em coisas boas. Assim se passava consigo: um misto de feio e belo; de conspurcado e puro.
Se houvera horas em que se sentira uma desgraçada, deixava que esses sentimentos ficassem agora em plano secundário, queria colocar isso fora das suas preocupações. A sua preocupação, de momento, era uma só: o filho no seu ventre. Não queria que ele absorvesse as suas tristezas, as suas mágoas, os seus fantasmas, por isso essas coisas tinham de ser atiradas para longe.
Engravidara numa fase negra da sua vida, que mais negra ainda ficara quando o seu pseudo-namorado a fizera escolher: ou ele ou a gravidez. Ele não devia ter feito isso: perdera. Arrancara-lhe um bocado da vida, mas perdera. Quase ganhara, pois não tinha sido fácil, também, enfrentar as feras em casa. Se não tivesse tido ninguém a jogar consigo na sua equipa, ele teria acabado por ganhar, porque era o mais forte, o mais bem treinado, e a ela tinham-lhe fugido todas as forças.

Tinham passado quase três meses desde então – por alturas do Natal, quando a mãe andava aflita à espera do espírito do Natal, que não havia meios de se manifestar, mas em que ele viera subtilmente, sem se fazer abertamente notado, aonde era mais necessário. E o seu filho, com sentença de morte chantageada, tinha escapado à matança dos inocentes.
Ainda não arrecadara muitas vitórias, ainda fraquejava algumas vezes quando a vida lhe doía na alma. No entanto, aquele jogador de futebol, que lhe pontapeava lá dentro, era quem mais certeza lhe dava de que uma vida humana deve ser preservada acima de qualquer outro valor; acima de qualquer vergonha, carreira, futuro, família ou amor; e ainda mais quando é carne da nossa carne, sangue do nosso sangue.

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