06/10/2013

Para lá das Estrelas


Encosto-me, na noite, aos vidros da janela do quarto. As estrelas brilham no céu. Colo-lhes o meu olhar e fixo uma em especial. A minha. É uma estrela no meio das outras estrelas, mas mais solitária. Como eu. Sozinha no meio da multidão.

Quem sabe se a uma qualquer outra janela haverá alguém a olhá-la como eu… aquele por quem o meu coração espera? Suspiro. Como será e onde estará essa alma-gémea que me será um dia? Não sei. Mas espero. Espero, demorando-me num gesto obtuso, que risco no vidro embaciado da janela, a arremedar o silêncio…

Estrelinha, brilha para lá do meu querer e ilumina aquele que atrairás com a tua intensidade a olhar-te; para depois o seu olhar seguir o caminho do teu raio de luz, até chegar aqui. A mim.

Sim, imagino que para lá do meu olhar, poderá haver outro olhar cativo da mesma estrela. Quero imaginar que há. Imagino que há. Como a imaginação tem poder!

A imaginação há-de ser sempre o meu limite… para lá das estrelas.

08/08/2013

Dia de Aniversário


Fiz catorze anos. Fiz e pronto. Passei, assim de um dia para o outro, de treze para catorze sem mais. Acho que isto de fazer anos merecia uma comemoração… mas não: é um episódio banal, que quase nem se dá por isso. 
Não me lembro de alguma vez se importarem assim tanto com os meus aniversários, excepto o meu mano padrinho, que me manda sempre um postal ilustrado de onde estiver. Mandou-me um da Guiné, quando esteve lá em militar, com a fotografia de uma rapariga preta muito bonita — uma bajuda futa-fula — onde me dizia alguns nomes das variadas etnias de lá (para além dos futa-fulas, há os fulas, os manjacos, os balantas e ainda outros). Agora nunca se esquece de me mandar sempre um do Luxemburgo. O deste ano é encantador — tem um bonequinho jardineiro que leva um carrinho de mão com flores dentro e, no cimo, uma frase: “J’ai mon charriot remplit”; é tão lindo que me perco a olhar para ele. 
Também o meu mano António chegou a oferecer-me, num aniversário quando eu era ainda pequena, uma boneca grande, quase tão grande como eu era — mas já a dei às minhas duas sobrinhitas, filhas dele; espero que gostem dela tanto como eu e que a estimem. Mais tarde, noutro aniversário, ofereceu-me dois bonecos que retirou da sua colecção, que ia ganhando nas latas de Toddy, e aos quais ele pintava as roupas de várias cores; pareciam dois marinheiros! Estes, com o tempo e as brincadeiras, acabaram por se estragar, começando a partir-se pelos calcanhares, talvez por eu bater com eles no chão como se os pusesse a andar. 
Desta vez, o dia ficou marcado só mesmo pelo postal, que eu guardei religiosamente junto dos demais.

28/01/2013

“Deus queira que cheguem à minha idade…”


Noventa e seis anos bem medidos. Com genica, como só ela.
É a genica que a vai mantendo sempre activa. Semeou favas bem cedo, como de costume todos os anos (diz que cavar faz bem: “é para fazer ginástica aos ossos”), e vai observando as faveiras a crescer de dia para dia, enquanto espera, com alguma ansiedade, que brotem as favas.

Manda. Continua sempre a mandar: em tudo e em todos. “Vocês, hoje em dia, nem sabem que vivem no mundo!... é só lambarices: chicolates e diogurtes… e para quê?... andam sempre doentes e a tomar remédio, quanto mais mimosos são, pior! Eu cá não tomo nada!!!... mas também ninguém passa o que eu passei!…: quem é que andava, hoje, acarvada no campo a mondar arroz… para trazer meia dúzia de tostões?!... e chegava-se ao meio dia, e comer umas batatitas azedas!...; hoje, os novos, é só competadores e não fazem mais nada que é só falar com aquilo nas orelhas… passam a vida nisto. Sabem lá o que é a vida?!”
Se a contrariam, ou lhe tentam dizer que a vida de hoje também tem sacrifícios… “Vocês podem dizer o que quiserem que eu não oiço nada… daqui a pouco estou que nem vejo nem oiço!” Mas ainda vê, não muito bem, mas vê (e lê, e escreve com letra bonita, se estiver de feição: “E eu cá nunca usei óculos!”) e ouve… o que lhe convém. “Olhem, Deus queira que vocês cheguem à minha idade e estejam como eu estou!”

Tem Apoio Domiciliário por parte da IPSS local, mas quando chega o dia da limpeza da habitação tem já os tapetes e passadeiras todos fora e o balde prontinho com água e detergente para as “alimpadeiras” lavarem o chão.
– Ó senhora Maria, então não quer ir para o Centro de Dia?
– Para lá fazer o quê? Não tenho paciência para estar lá sentada sem fazer nada, como elas lá estão, bem mais novas do que eu, e que ainda podiam tão bem trabalhar, mas o corpo não lhe apetece!
Em tempos, quando o marido vivia, ia com ele para lá todos os dias, para lhe fazer companhia, e porque no Verão iam alguns dias à praia, e a praia era do melhor que lhe podiam oferecer. Mas eram mais os dias em que se aborrecia e, depois do almoço, deixava lá o marido e desatava a pé para casa. “Aquilo não é vida para mim”.
– E depois, quem é que tratava das galinhas da minha filha? Se não fosse eu, deixavam-nas morrer todas com fome!

 No ano passado, as primeiras favas foram dela.
– Já cozi e comi uma pratada de favas que me regalei!
– Então, e comeu as favas com quê?
– Com quê?!... olha, com quê!!... com azeite!!!


(Envelhecimento activo - história da vida real)

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