23/12/2009

Esperança Despida

Palhaço não era… nem se sentia, muito embora se rissem dele e com ele. Uma figura caricata que poderia parecer um palhaço, com aquela indumentária que vestia, fazendo gosto em ostentar as medalhas que as feirantes lhe colocavam ao peito à segunda-feira no mercado. Elas achavam-lhe graça e, dançando à roda dele, faziam-lhe uma festa. O David, na sua simplicidade, ficava envaidecido e vinha contar tudo, com a sua tão conhecida gaguez que fazia com que todos puxassem por ele. Que elas tinham dançado com ele e que: “fofoforam aquelas maaaluuuca…ca…cas é é daaaaququeeelas é é é pepeeeixeiras esgueeeeirooouas é é é qqque me deeeram a as medaaaalhas”. Um simples, que trabalhava de carregador no mercado a troco de gorjetas. Palhaço não. Nunca pela pequena cabeça lhe passou que se divertiam à sua custa, muito embora alguns o fizessem, pagando-lhe copos de vinho quando sabiam que isso o faria descarrilar. Palhaços são os que, sem alma, se aproveitam da pequenez dos outros para se divertirem à sua custa. Quando o picavam ou chateavam, ele encarava-os com aqueles olhos, entortadamente, e gaguejante ameaçava que chamava a Guarda.
E o tempo ia passando satisfatoriamente, feito de primavera e verão, até lhe chegar o outono e lhe assomar o inverno. Então um Inverno mais forte, estando ele mais fraco, despiu-lhe a esperança do Natal. Desabou-lhe o telhado do casebre sobrevivente da aldeia semi-fantasma de habitantes. E a chuva e a geada dormiram com ele.
O Natal despido de esperança é um gelado inverno: um inverno que gela os ossos e a alma o ano inteiro, com artes de transformar qualquer um em pobre palhaço.

(M. Fa. R. – 22.12.2009)


A todos um Bom Natal, vestido de Esperança e calor humano,
para que se sinta menos gelado o frio que soprar em 2010.

Um Ano Novo de Paz e Amor!

15/12/2009

Passagem

A tarde de Outono começou a fazer-se lua – redonda, grossa – que uma multidão de nuvens prenhas, de ancas largas e de peitos túrgidos, começaram a empurrar para o fundo do céu, fechando-a numa noite temporã. Ela ainda experimentou espreitar por entre umas cortinas que o vento ajudou a arredar, mas não teve forças para fazer frente àqueles bustos inchados que impunham respeito.
Depois de assim vendarem os olhos à lua, estas monstras começaram a guerrear umas com as outras com um leve rosnar intensificado até à discussão séria, empurrando-se e acotovelando-se, discutindo assanhadamente e deitando fogo pelas ventas como toiros, numa ânsia desenfreada de encontrarem lugar para parir. E o céu explodiu em raiva sobre o bosque de eucaliptos que não tinha culpa de nada.

Carregado de medalhas ao peito e de cigarro na boca, foi apanhado naquela confusão pelo caminho enlameado de regresso ao casebre, que ficava para lá daqueles arvoredos, e resmungaguejava contra aquela bátega que o molhou dos pés à cabeça. Se ele soubesse tinha ficado em casa da irmã. “Eeela beeem qqquuue m’aaaaviiiisô!”
Na noite de raios e coriscos, as árvores tomaram formas humanas de cabeçudos gigantes com narizes pontiagudos e dentes arreganhados, que gargalhavam amedrontando o incauto que atravessava naquela hora.
Quem era esta personagem quase descartável, que ali dançava como uma folha de papel soprada pelo vento? Será que deixaria para sempre as suas pegadas naquela lama do caminho? Porque há pessoas que marcam bem a sua passagem pelo tempo.

(M. Fa. R. - 09.12.2009)

12/11/2009

Coração Descalço

Há histórias nascidas da bruma e do sol poente. Há poemas que se soltam de terramotos e de tornados. De vendavais. De névoas; ou de brisas mansas. Há laços feitos de marés e de encantamento. Poeiras de nebulosas que são gritos de esplendor. Ventanias – canções de amor.
Hesitantes, embalados por um sentimento oceânico, movidos por um sopro do olhar, experimentam tocar-se. E acontece o abraço… quente. E nele dois corações que pulsam em uníssono…
Foi uma carência de alma e de corpo que o fez afogar-se bem no meio daquele mar.
Seria tão inesperado assim? Será que mesmo nada o faria prever?
No fundo, lá bem no fundo de Taiki, uma secreta e escondida esperança de que pudesse acontecer. Ele sabia, tinha lido de Jorge Amado, que «A felicidade não se pode alimentar apenas de recordações do passado, necessita também dos sonhos do futuro.»
E o futuro se calhar estava ali, agora, naquilo que lhe parecia um sonho. Algo como música dançava, rodopiava em volta. Os olhos de Taiki abriram-se e as lágrimas retidas escorregaram-lhe em gotas pelo rosto insaciado. E as palavras não ditas a quererem-se adivinhar nos olhares…
Uma necessidade contida de ter alguém, nascida da aurora perdida, fazia com que se sentisse cada vez mais carente…
É quando o perpassa uma vertigem de medo: porque é que as mulheres não trazem manual de instruções? E atrapalha-se como um menino perdido, ali, de coração descalço.
– Oh! Eu não sei o que sinto…

[Continua em Longos Percursos, não deixem de Ler.]
Este foi só mais um meu pequeno contributo na história de Taiki, a pedido do Fontez.

05/11/2009

O Silêncio e a Dor

Não nos faz muito bem namorar silêncios.
Mas quando desenhamos a dor fogem-nos sempre as cores mais primaveris para outros pincéis, e os riscos que nos voam da mão e que nos sobrevoam a tela são em formas de raios saídos de trovoadas.
Nos silêncios apagam-se verbos que engoliriam certezas, dúvidas, afrontas, quedas, humilhações, entronizações, ódios, paixões, uma infinidade de credos ou razões.
A dor, essa, quase sempre se pinta em tons de negro. E muitas vezes de sangue.
Quando o silêncio e a dor se misturam só há lugar para tintas descoloradas que escorrem por entre as vértebras de uma cadeia, onde a noite e o dia, fundidos e amordaçados, se vêem aprisionados sem frestas para respirar.
O silêncio é morte: violência verbal.
O silêncio também é vida: saber calar.
E a dor é um fantasma que o silêncio não consegue ocultar.

20/10/2009

Tatuagens Escondidas [3]

- "À meia noite se levanta o francês; sabe das horas mas não sabe do mês."
- Quem é o francês, avô?
- Vá, adivinha!
Assim me arreliava o avô, com as adivinhas que me propunha e que eu nunca adivinhava à primeira. E também:
- Escreve: onsamimedia.
- Como é que isso se escreve?
E ele dizia letra por letra "o-n-s-a-m-i-m-e-d-i-a".
O avô tinha sido professor quando ainda não havia escolas, e os rapazes daquele tempo vinham lá a casa para aprender a ler e a escrever e a fazer contas, disse-me ele.
- Mas só os rapazes? Então e as meninas aprendiam com quem?
- Só uma ou outra é que vinha cá de vez em quando só para aprender a fazer o nome, porque, a elas, os pais não as mandavam aprender.
- Oh, coitadinhas! Mas porquê?
- Então, aprendiam outras coisas que as mães lhes ensinavam: lavar a roupa, remendar, cozinhar, cozer a broa... para serem boas donas de casa. Vá, já escreveste? Mostra cá! Agora lê ao contrário.
- Ao contrário como, avô?
- Começas da última letra para a primeira.
Custava-me a fazer o exercício, mas lá ia eu:
- Ai-de-mi-mas-no... mas o que é que quer dizer?
- Não leste bem! É: ai-de-mim-as-no!
Mas eu não lia assim porque estava escrito tudo pegado, quando eu achava que para se ler como o avô dizia tinha que estar escrito, pelo menos, em duas palavras: onsa-mimedia. E teimava com o avô que como eu lia é que era. E ele:
- Estás a ver? Não sejas teimosa! É isso que não deves ser: asno; ai de mim asno!
E eu ficava aborrecida, meio amuada.
Era assim que ele brincava comigo de me arreliar. Se calhar, para ver se eu não ficava mais mimada do que já era... (agora já tenho consciência de que era mimada e que ainda sou, mas não o consigo evitar).

Quando o avô morreu, eu nunca tinha tido contacto com a morte de uma pessoa. Nem sequer nunca tinha pensado que o avô pudesse morrer um dia, apesar de ele ser velhinho e ter bronquite - aquela falta de ar que parecia que tinha pintainhos no peito a piar.
Mas ele um dia morreu. E obrigaram-me a dar-lhe um beijo no rosto branco e frio, dentro do caixão.
E eu passei a ter medo da morte e repugnância aos mortos.

(Publicado em: Memória Alada, 2011)

02/10/2009

Tatuagens Escondidas [2]

A vida…
Por vezes a vida escapa-se como areia por entre os dedos… e, no vento, levanta um pó fino como neblina que cobre os dias. E não se consegue ver nada para além dessa penumbra.
Os dias tornam-se páginas escritas de horas doridas, em que cada minuto teima em ser uma frase sem sentido, e em que cada segundo voa numa recordação que não se consegue escrever com letras. E o silêncio é uma falha na pontuação.
Sei que ainda sou pequena para compreender muita coisa. O meu entendimento tem o limite das coisas simples. Mas mesmo assim, tento arranjar respostas nas coisas pequenas, como as estrelas que brilham de noite… e, apesar do que não me dizem, mesmo sem perceber, vou pensando que deve ser tão natural morrer como nascer. Se assim não fosse, não nasciam e morriam também as flores… e as folhas das árvores… e a minha gatinha branca. A Princesa nasceu, cresceu, brincou, foi feliz, mas ficou doente quando um carro a atirou para a valeta. Depois ela morreu. Mas eu não queria que ela morresse. Mas também não queria que ela tivesse dores, porque se não tivesse morrido teria muitas dores e já não seria feliz. Se tivesse ficado a sofrer com dores era mais horrível. O melhor mesmo era nunca ter ficado doente. Mas também as flores acabam por adoecer e morrer quando as cortamos para pôr na jarra em cima da mesa. E se não as apanhamos do jardim acabam por secar passado o seu tempo, tal como as folhas das árvores quando acaba o verão.
A vida é assim! No fim, fica a ausência das folhas nos ramos das árvores e a saudade dos dias floridos.

27/09/2009

Tatuagens Escondidas [1]

A morte... ainda não consigo escrever sobre isto com tranquilidade. Mas forço-me a fazê-lo nestas páginas soltas deste quase-diário. Preciso de espantar os meus fantasmas, resolver ou perdoar-me as minhas culpas, desfazer as tatuagens escondidas.
Primeiro foi a Princesa, a gatinha branca que conhecia os meus passos, que miava para mim como se estivesse a falar comigo, que se coçava nas minhas pernas para dar e receber mimo; depois foi o avô, que passava as tardes sentado na cadeira no patim, junto de quem eu brincava de o imitar a abrir a boca, e que me ensinava lengalengas e as primeiras letras; recentemente, a avó, a minha maior amiga, da qual eu ainda não consigo deixar de sentir um peso no peito e um nó na garganta. Pelo meio, um menino vizinho que estava doente, e também a outra avó, mãe da mãe, mas dela não tenho marcas tão fundas porque não passava tanto tempo com ela, só a via mais ao domingo depois da catequese. Quando morreu, há uns anos, eu fiquei a brincar no jardim até ser severamente repreendida; foi quando percebi que se não se podia brincar era porque a morte era um acontecimento muito triste e sisudo, em que se tinha de chorar, estar sempre a chorar, mesmo que naquela hora não se sentisse vontade. Então eu pensava que havia alguma coisa errada comigo, por preferir ficar no jardim, sem conseguir aguentar aquele ambiente de tristeza e choro em que eu, menina sempre tão chorona por tudo e por nada, me sentia triste e muito abalada, mas não conseguia chorar.

09/08/2009

[5] Gotas recolhidas

A carrinha da Instituição ficou de levar o José no dia seguinte para fazer uma visita ao Centro de Dia e almoçar lá. Este vestiu a roupa de domingo e foi. Gostou do que viu e da refeição, e concordou em fazer uns dias de experiência, após o que fez a inscrição e foi admitido. Passou a ter refeições decentes, higiene pessoal como deve ser, e roupa tratada. A casa e a cama foram desinfestadas e esta levou um colchão e cobertores novos. Passado uns tempos já nem parecia o mesmo, de aspecto asseado e bem alimentado.
O pedreiro foi mandado ver o telhado e fez um orçamento. Chegou-se à conclusão de que o dinheiro do José era mais do que suficiente, não sendo necessário recorrer a qualquer ajuda externa. Afinal, por via do dinheiro, ele não tinha necessidade de ter estado tanto tempo naquela miséria. Mandou-se, assim, fazer um telhado novo, substituir o soalho de madeira, velha e podre, por material facilmente lavável, fazer obras exteriores na entrada da porta principal da habitação e, ainda, substituir uma janela em muito mau estado.

Durante o tempo em que decorreram as obras, o José passou a dormir na Instituição, na Unidade de Apoio Integrado (UAI) – uma resposta social de permanência temporária, de períodos de quinze dias, renováveis no caso de se justificar, destinada a pessoas com necessidades de apoio social e de cuidados de saúde continuados, com os objectivos de lhes criar condições de autonomia, de forma a habilitá-las a regressar ao seu domicílio; ou de convalescença de doentes, após alta hospitalar, e ensino às famílias e outros prestadores de cuidados informais do modo de os cuidar; e receber outros idosos ou doentes para descanso dos familiares. Este caso enquadrou-se perfeitamente nesta resposta, mas o José teve sorte, pois passado algum tempo, a Segurança Social deixou de querer continuar a comparticipar esta resposta social, o que levou depois a deixar cair esse acordo de cooperação e passar essas camas, afectas a essa resposta, para alargamento da resposta social de Lar de Idosos. Caso, na altura, não houvesse UAI, teria sido mais difícil o acolhimento do José durante o período em que decorreram as obras, o que levaria a ter de se procurar outra solução, talvez com recurso à comunidade, apesar de ninguém se ter disponibilizado para ajudar ou mostrado grande interesse pelo facto. Isso era assunto para a Associação resolver, ela é que está vocacionada para isso, é para isso que ela existe – parece ser pensamento consensual generalizado.

Depois das obras concluídas e melhoradas as condições interiores, a higiene habitacional passou a ser assegurada pela Instituição e o José pôde usufruir de uma melhoria na sua qualidade de vida.

Junto com o telhado veio “cama, mesa e roupa lavada”: meio caminho andado para a felicidade.

Fim

03/08/2009

[4] Ainda mais gotas

Sentiu-se bem toda aquela miséria. Era necessário fazê-la também entender ao José que, por estar tão habituado a ela, por não conhecer outra maneira de viver, parecia não se incomodar muito. Era preciso fazer-lhe perceber bem o estado degradante que o envolvia e que se agravaria, na certa, com o próximo Inverno. Se viesse um temporal o telhado estava sujeito a ruir.
Mas como é que pode viver aqui, assim, senhor José? O telhado precisa de ser arranjado, senão qualquer dia cai… e mesmo, quando chegar o Inverno chove aqui com força e molha-lhe a cama toda… depois pode ficar doente. Ele assente: Pois era… pois era… mas como é que há-de ser? Se quiser, manda-se cá um pedreiro ver e fazer um orçamento… e tenta-se que alguém dê uma ajuda, ou algum subsídio… Encolhe os ombros. Pergunta-se-lhe quanto recebe de pensão. Diz que não sabe, que é o que lhe dão no banco.
Tenta-se saber como é que passa o dia. Diz que é por aí. Às vezes pega na enxada e entretém-se a roçar umas ervas atrás de casa. E outras, vem para a rua ver e falar com quem passa. Come umas sardinhas assadas com pão ou umas batatas cozidas e bebe uma pinga. Não bebe leite. Mas, às vezes, acolá a dona do restaurante manda-o lá ir buscar uma sopa.
Perguntam-lhe se não gostaria de experimentar a ir até ao Centro de Dia… almoçava lá… vão lá passar o dia pessoas que conhece… tinha lá companhia para se distrair… Nunca se sabe! – Responde.
A Assistente Social insiste se não tem nenhum papel da pensão. Ele procura na carteira… cheia de notas… pasme-se: muitas notas! Um perigo! O dinheiro acumulado de vários meses. Traz aí o dinheiro todo que tem… Não. Tem mais no banco… uma conta a prazo.

(continua)

26/07/2009

[3] Mais Gotas

(anterior)

Dia seguinte. Hora combinada. Ponto de encontro: a casa do José. Esta é na rua principal da localidade – uma fachada baixinha com um telhado aos altos e baixos – e contrasta com a grande maioria das habitações da rua, que são vivendas modernas.
O José já estava à espera na rua quando chegam os três visitadores. Conhece bem dois deles: o homem que falou com ele e uma das mulheres. A outra não sabe quem é. É-lhe apresentada como a senhora doutora da Associação, a Assistente Social. Ele diz que está bem. Entram pelo portão do telheiro e depois na cozinha: um arremedo de cozinha, diga-se. Não tem mesa, nem bancos, só um borralho com uma trempe e uma panela muito farruscada, em cima; ao canto, um montão de pinhas e carolos de milho. Diz que é para ajudar a fazer a fogueira à panela, para cozer as batatas. Junto ao borralho, um alguidar de barro verde, vidrado, com alguma loiça desbeiçada.
Casa de banho? Sim, tem... - responde. O cunhado quando era vivo mandou pôr um chuveiro e um esquentador com uma botija de gás, naquele canto do quartito escuro, ao fundo da casa de fora e mandou cimentar o chão. A água do banho? Escorre lá para fora por um buraco na quina da parede com o chão. Por cima, no tecto sem forro, vê-se o sol pelas frestas das telhas. Não tem medo da botija do gás aqui dentro? Não, nunca aconteceu nada… Mas não tem lavatório… nem sanita, onde é que faz as necessidades? Atão… no pátio, pois. E, lá fora, no alpendre está um espelho… é lá que corta a barba.
A pouca roupa de vestir está empilhada numa tarimba no lado oposto ao chuveiro. E podemos ver onde é a sua cama? Se vocês quiserem… diz com um encolher de ombros. Então vá, mostre-nos lá. Mostrou. Era na casa de fora. O soalho, de madeira carcomida, com uns sacos de linhagem espalhados, a fazer de tapetes, denunciava a chuva que se abatia nele. O telhado, de telhas de canudo velhas e partidas, à vista. Parece que chove cá dentro… Novo encolher de ombros: Hum, quando ela é muita não cabe nas telhas… eu ponho aí no chão uns baldes a aparar.
Na cama de ferro, junto a uma das paredes, um monte de cobertores negros e mantas de retalhos. Lençóis? Não é preciso, assim é mais quentinho. A servir de almofada, um cobertor dobrado, também negro… Um arrepio, seguido de outros dois. Até parece que as pulgas já começam a picar nos corpos…
Encostada à parede do lado oposto, uma arca grande, de madeira, onde estão batatas, milho e feijões. E roupa velha. Nenhuma mesa. Nem cadeiras. A porta da rua não abre. Quando arranjaram a estrada, a casa ficou mais funda, e agora a porta não abre. Quer dizer, abrir abre, mas não se pode passar por lá, porque levou tijolos por fora, para não entrar a água que escorre da estrada…

(continua)

19/07/2009

[2] Outras Gotas

(anterior)

A IPSS local tomou conhecimento das aparentes necessidades do José, através de um dos directores, que atentou na situação e levou o problema à reunião de direcção. A direcção deliberou avaliar a situação e estudar as possibilidades de resolução. Talvez conseguir-lhe um subsídio eventual para as obras do telhado e trazê-lo para o Centro de Dia onde tomaria as refeições e o banho.
Dois dos directores ficaram responsáveis pelo caso e, no dia seguinte, falaram com a Assistente Social da Instituição.
Seria preciso, primeiro, conhecer a fundo a situação e dar apoio perceptivo ao José, ou seja, ajudá-lo a perceber e a avaliar o seu problema, a dar-lhe significado e a estabelecer objectivos realistas e, só depois, dar-lhe o apoio instrumental: ajudá-lo a resolver o problema através da prestação concreta de bens e serviços. O problema é, primeiramente, do José, ele é que tem de querer resolvê-lo, se conseguir perceber que tem um problema e que o quer resolver.
Combinaram fazer uma visita ao José, ficando incumbido de o abordar, para conseguir agendar a visita ao domicílio, o director que trouxe o problema à discussão, o qual teria mais hipóteses de ser bem sucedido, uma vez que tem alguma confiança com ele.

Passados dois dias a visita estava marcada. O José disse que sim, que podiam ir lá falar com ele quando quisessem. Seria então no dia seguinte.

Continua

16/07/2009

[1] Gotas

O José tem 76 anos. Fala-se de miséria habitacional, concretamente ao nível do telhado, que se encontra degradado, deixando que as gotas de chuva lhe entrem em casa e caiam em cima da cama. Imagina-se o que lá vai dentro. Além disso, o seu aspecto denuncia falta de cuidados de higiene pessoal, em que as pulgas encontraram poiso; parece, ainda, não usufruir de uma alimentação digna, sendo visto, na rua, a comer apenas bocados de pão com alguma outra coisa. O José é portador de algum atraso mental e vive sozinho, sem suporte familiar, depois de terem falecido, primeiro o cunhado, única pessoa com maior tino naquela família, e depois a irmã, que lhe cuidava da alimentação e da roupa.

Ninguém pediu nada. Há olhos para ver. Ouvidos para ouvir. E uma pele para se arrepiar.
Há uma intervenção para fazer.

Continua

07/07/2009

A gente habitua-se

A gente habitua-se. Quer se queira que não, a gente acaba sempre por se habituar...
Habitua-se ao passado, que mais do que passado, torrado, moído, cru ou cozido; cosido ou tecido, ou só alinhavado; espalmado, enrolado, estendido, comprido ou nem tanto; tanto nos mói como nos mata, tanto nos afasta como nos oprime e ou muitas vezes nos salva ou redime.
A gente habitua-se ao presente, que é presente, dádiva ou castigo; por vezes um perigo e outras sorte; muitas vezes vida e outras morte.
A gente habitua-se ao futuro. Maduro ou duro; que pode ser resplandescente ou escuro, negro, fumegante, frio, quente, fervente, escaldante, pungente; sempre igual ou diferente; mas que se anseia puro, vivente.
A gente habitua-se!
Quer se esperneie quer não, acaba sempre por se habituar... e conformar...
Ou não...

29/06/2009

História da Carochinha

A mãe mandou-me varrer a cozinha. E eu varri-a. Mas, no fim, ralhou comigo porque tinha ficado toda mal varrida. Eu acho que ficou bem, mas ela diz que deixei lixo atrás. Não vejo onde, mas pronto, ela tinha que implicar. Nada nunca está à vontade dela.
“Era uma vez uma Carochinha que achou 5 tostões quando varria a cozinha.” Era assim que começava a história que eu tinha bordada no bibe quando andava na terceira classe. E a Carochinha aparecia com uma vassoura na mão a varrer. “Comprou fitas e laços e pôs-se à janela.” E aparecia a figura da Carochinha à janela. “Quem quer casar com a Carochinha, que é tão linda e bonitinha?”
As minhas colegas, no recreio da escola, faziam roda à volta de mim com o meu bibe na mão a ver os bonecos bordados e a ler: “Passou o gato: miau, quero eu!”… “Passou o cão, ão, ão, quero eu!”… “Mas ela não quis!”…
Gostava de me sentir o centro das atenções quando levava o bibe vestido para a escola. Sentia-me uma Carochinha enfeitada com fitas e laços. Agora, que sou mais crescida, não é assim. A mãe parece que faz, cada vez mais, de propósito para me fazer sentir um Patinho Feio… e sem vontade própria. Ela é que sabe; ela é que faz; ela é que manda. Mas ela não sabe nada. Continuo a sentir-me o centro das atenções, mas por motivos contrários: sinto-me desprezada na maneira como me faz vestir. E não sou só eu que o sinto, já mais alguém o notou, que eu bem o ouvi cochichar.
Mas chegará uma altura em que ela não mandará mais em mim. Hei-de arranjar um modo de ser eu própria a vestir-me à minha maneira, para ficar bonita como a Carochinha…

09/06/2009

Cinza

O sorriso já de si amargo morreu-lhe por completo nos lábios; a luz esmoreceu-lhe no olhar. O brilho opaco que ainda despontava no seu rosto foi-se apagando como uma torcida que deixa de fumegar.
O lume vai-se lentamente apagando na fogueira já gasta. Não quer arder. Não quer cintilar. Gasta. Apagada. Sem fulgor. Tudo é negro no canto cada vez mais escuro. Vai-se extinguindo a lenha dando lugar à cinza que se vai acumulando e encobrindo, porventura, algum brasido ainda quente. Um coração, ainda rubro, que teima em não parar de bater. Mas por quanto tempo mais, se um mundo de escombros em putrefacção lhe rasgam as carnes e a alma? Só cinza. Lixo. À sua volta o que mais encontra é lixo, lixo, lixo, lixo, lixo, lixo, lixo, lixo, lixo, lixo, lixo…

Cinzas?

04/06/2009

Como é que se estuda?

- A Matemática é coisa para homens. – Respondeu a Júlia à minha pergunta sobre as notas dos testes.
Faltei uns dias às aulas porque estive doente com papeira e tive que ficar em casa. Por isso hoje, de regresso a estas lides, perguntei, ansiosa, às colegas pelas notas dos testes. Fiquei a saber que, no geral, não foram lá grande coisa e que tive negativa no teste de Matemática.
Negativa?!... Não queria acreditar, mas elas insistiam. Como era possível ter negativa se o teste me tinha corrido bem? Se eu achei as equações e os problemas tão fáceis e os resolvi como se fossem a coisa mais simples deste mundo? Desconsolada e nervosa não via a hora de saber o que é que tinha errado.

Tocou para a entrada e, desta vez, fomos para uma sala do primeiro andar. Geralmente temos sempre aulas no rés-do-chão, logo na primeira ou, por vezes, na segunda sala porque na turma há uma menina, a Ana, que anda de muletas. Tem um aparelho no corpo todo por causa de uma doença que teve em bebé e que lhe causou aquela deficiência. Todas a ajudamos, mas ela habituou-se a isso e parece que anda a abusar de nós. Começou a ficar muito teimosa e só quer que lhe façam todas as vontades. Há dias atirou com as muletas para longe porque se chateou com uma das colegas. Hoje duas empregadas tiveram que a levar ao colo, pela escada acima, para que pudesse ir para a sala de aula, enquanto ela se debatia por teimar em ir sozinha. Às vezes não há quem a entenda! Mas também não sei por que nos levaram para o primeiro andar, se sabem desta dificuldade da Ana, mas decerto terá havido algum motivo forte.

Houve um ruge-ruge entre nós quando entrámos na sala. Era da parte da tarde, estava calor, e percebeu-se um odor abafado e estranho que nos empurrava para fora. Abriu-se logo as janelas; o burburinho tornou-se conversa aberta: que desagradável! Cheirava a rapazes.
- Silêncio, meninas! – Assim pôs, o professor, termo às conversas.
Não tardou muito para que ele se dirigisse a mim. Senti um enorme calor no rosto, prevendo a vergonha pela qual iria passar. Começou a colocar-me questões sobre os problemas e as equações do teste, ao que eu respondi sem ter dificuldade, segura do que respondia. Depois entregou-me o teste. Nessa altura tive a surpresa com que não contava: vinte valores!
Pois se eu sabia que me tinha corrido bem! Mas nunca pensei que fosse possível ter acertado tudinho. Por isso é que as colegas me mentiram, para ver como eu reagiria… se me atrapalhava… mas enganaram-se. Ficaram foi cheias de inveja! Ah! Mas foi muito bem feito!
Ainda há pouco, no recreio, me confrontaram novamente, perguntando-me se eu teria copiado. Copiado?! Eu não copiei! Nunca fiz isso! Mas como é que se copia num teste? E ainda, para mais, num teste de Matemática? E não têm saído de volta de mim, a querer saber como é que eu estudo… que lhes ensine a estudar Matemática. Mas aí, eu não tenho como as ajudar, pois também não sei. Eu, simplesmente, não estudo Matemática. Eu apenas faço os exercícios todos.

(Publicado em: Memória Alada, 2011)

20/05/2009

As meias das cerejinhas

Ganhei, do pai, umas meias, até à curva da perna, com umas bolinhas penduradas de lado que parecem duas cerejas. Há que tempos que eu as desejava. Já tinha sorrido para elas... e elas para mim, através da montra. Até já tinha começado a poupar para elas, deixando de comprar daquelas farturas deliciosas, polvilhadas de açúcar e canela, que a dona Mariazinha vem vender ao portão do colégio, e também das saborosíssimas sandes de fiambre fininho, que eu nunca tinha provado na vida antes de vir estudar para a vila. Mas hoje o pai comprou-me as benditas meias. Comprou porque eu as ganhei. Foi a minha recompensa por ser uma menina corajosa.
Às vezes tem que se ser corajosa à força. E foi o que me aconteceu no sábado passado, à tarde. O pai levou-me com ele a Coimbra… quer dizer, não levou, ou melhor, não chegámos lá, porque o carro avariou pelo caminho. E aqui entra a minha coragem forçada: o carro ficou na beira da estrada comigo lá dentro, enquanto o pai foi procurar ajuda.
Disse-me que tinha que ficar ali porque não me podia levar, que ficasse sossegada, sem medo, que depois me compraria uma coisa. Pediu a um cantoneiro, que andava ali a limpar as valetas, que fosse olhando por mim e pelo carro, e apanhou boleia à procura de um mecânico. Fiquei ali, a contar os carros que passavam, até lhes perder o conto, e a olhar o senhor a raspar a ervas com a enxada, vendo-o ir-se afastando a pouco e pouco. Uma vez ele veio perguntar-me: “A menina está bem?”, e eu só acenei, com a cabeça, que sim. Devem ter-se passado muitas horas até o pai voltar, pois já estava a começar a ficar chateada e cheia de fome, e a tarde ia bastante avançada quando ele lá apareceu com um senhor, que se pôs de volta do carro até que ele começou a trabalhar.
Depois o pai deu uma gratificação ao cantoneiro e voltámos para casa, mas ainda parámos num café para eu lanchar um bolo e um garoto. Foi uma aventura e tanto! E hoje o pai comprou-me as meias das cerejinhas que eu tanto queria e, também, um casaco comprido. Assim, o carro até pode avariar mais vezes!

15/05/2009

Leituras

A leitura exerce um enorme fascínio sobre mim. Ler permite-me a fuga para um mundo encantado, um mundo onde posso descobrir muito do que a minha curiosidade me pede e que não obtenho de outra maneira. Ler satisfaz-me e inquieta-me. Satisfaz-me porque me proporciona momentos de verdadeiro prazer e delírio, ao descobrir coisas novas; inquieta-me porque sinto uma avidez de ler tanta coisa a que não tenho acesso.
Já li quase tudo o que havia em casa para ler; leio o que vou encontrando e pedindo emprestado; leio os livros que vou buscar à biblioteca - àquela carrinha que passa por cá de tempos a tempos, e da qual não me deixam trazer todos os livros que quero, nem dos que quero, só dos da fita verde – mas leio também os que o meu amigo Zeca traz; leio outros que ele me empresta, do Tio Patinhas e de outros heróis de Banda Desenhada, se bem que alguns não fazem muito o meu género, mas à falta de outros, é melhor do que nada; leio também as revistas de fotonovelas e a Crónica que a minha amiga Manuela compra quase todas as semanas e me empresta, mas leio às escondidas, porque tenho medo que o pai me veja ler essas coisas… não é por nada, que acho que não faço mal nenhum, até porque já fiz onze anos, mas ele pode não compreender e ralhar comigo com aquela sua voz de trovão que me faz encolher toda.
E é claro que também leio os livros da escola, mas esses é por obrigação, apesar de quase nem precisar de os ler, pois o que percebo nas aulas quase me basta para apreender a matéria e tirar boas notas.
Há dias encontrei uns livros antigos do pai e, entre eles, uma Bíblia que tem feito as minhas delícias. Tenho vindo a lê-la, aos poucos, desde o seu início, enquanto a mãe me espreita no quarto, ficando a pensar que estou a estudar. Ela até diz às vizinhas que tem uma filha que não faz mais nada senão estudar, que não puxa para fazer mais nadinha; vê outras meninas da minha idade que fazem tudo em casa às mães, mas eu, que não sabe a quem é que eu saí…

(Publicado em: Memória Alada, 2011)

29/04/2009

A Enchente

Parece que foi ontem e, no entanto, já passou algum tempo desde o início das aulas. Estamos a iniciar o segundo período e, vendo agora com algum distanciamento, aquela exclusão inicial, de que me senti vítima, parece-me ter sido tempestade num copo de água. Mas que foi um sentimento avassalador, que me transtornou imenso, isso foi. Contudo, este acabou por se ir esbatendo, até estar completamente erodido. Pouco tempo depois, acabei por comungar plenamente das actividades da turma, quer nas aulas, quer no recreio.
Agora, após uma pequenas férias, é altura de recomeçar.
A Helena, a Cidália e eu, vamos sempre no mesmo autocarro, de manhã. Hoje, ao chegarmos, deparámo-nos com a vila inundada. Choveu muito e os rios transbordaram, alagando toda a Várzea… e não só. A água chegou perto do colégio, mesmo à estrada onde temos de passar a pé. Parece o mar no espaço que fica entre os dois rios; estes nem se distinguem, tal a fusão das águas num único todo. O colégio - um prédio alto - lembra-me um farol, numa ponta de terra que quase toca esse mar. Cheguei lá com os pés encharcados. Nem outra coisa era de esperar: com a água a chegar à estrada era impossível passar sem molhar os pés, dado que a água atravessava a estrada em alguns pontos. Valeu-me levar na mala as sapatilhas de ginástica, senão ficava com os pés molhados o dia todo; mas até estas encharquei na volta para casa.
Isto fez-me lembrar um dia no regresso da escola primária: as valetas iam cheias de água, por causa das chuvas abundantes que tinham caído, o que me despertou a vontade de chapinhar. Não sendo capaz de resistir, mergulhei os pés, de galochas calçadas, pela valeta fora, numa caminhada compassada, amortecida por aquela água corrente. Sabia tão bem! Só que, num sítio mais fundo, as galochas acabaram por encher de água. Quando cheguei a casa, é claro que apanhei um grande ralhete da mãe, que teve que pôr as galochas a secar ao lume, uma vez que não havia sol.
Desta vez também não se vê o sol, nem o céu azul. É só nuvens cinzentas a ameaçar mais chuva. E apanhei outro ralhete da mãe. Mas desta vez não tive culpa.

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 publicação no Eremitério

27/03/2009

Pássaro selvagem

Benjamim é um beija-flor, um pássaro selvagem, um pinga-amor.
Ele não sabe, mas partilha de uma maldição, comum a variadas maldições, que não o deixa parar em ramo verde. Desconfia, apenas, de algo trágico e eminente, pululando em seu redor, nos sons melodiosos de uma flauta. E essa música deixa-o receoso. Todavia, não se atreve a criar coragem para escutar com atenção a voz do vento. Desse modo, fica sem perceber bem de onde sopra o toque e o que quererá dizer essa ode.
Por um lado, uma verdade portátil borbulha no seu cérebro de pardal de telhado; por outro, uma simplicidade volúvel fervilha no seu bico carregado de néctar e pólen de flores - vitualhas imprescindíveis à sua sobrevivência.
Ainda assim, a sua natural rebeldia, aliada à desconfiança de que algo não estará bem, levam-no a tomar providências no sentido de tecer um ninho seguro, que o proteja de contratempos. Mas, apesar de tudo, continua firme na decisão de que será sempre um pássaro selvagem.


Texto do 12.º Jogo das 12 Palavras

20/03/2009

Integrada

A professora de História traz um camaleão no carro, debaixo de um chapéu de palha.
A minha turma é a preferida dela, talvez por sermos só meninas. Também, de todos os professores, ela é a nossa preferida. É muito nova, linda, e uma simpatia. Uma jóia. Usava óculos, mas começou a aparecer sem eles. E é ainda mais linda! Usa saias, com pregas e machos, todas parecidas umas com as outras. Certa vez descobrimos que não são meras saias: são saias-calção. Ainda hei-de ter uma assim...
Como somos boas alunas e bem comportadas, ela deu-nos um presente que adoramos: um conto, que nos vai lendo, aos bocadinhos, numa parte das aulas. Por isso, portamo-nos ainda melhor, na expectativa da continuação da história, que não tem nada a ver com História. É sobre uma menina que fecham em casa, um casarão, e a quem não deixam passear nem brincar com os colegas. Está a ser muito emocionante. Até já chorei. Todas temos uma enorme empatia com esta professora. E eu, que até nem era grande aluna a História, comecei a tirar muito boas notas.
Foi ela que me ajudou a integrar na escola e principalmente na turma. Notou como eu me andava a sentir e falou comigo, e depois falou com as minhas colegas. As suas palavras são de mel.
Um dia ela mostrou-nos o camaleão. Assustei-me um pouco, pois nunca tinha visto nenhum, e pensei que ele fizesse mal. Mas não. É um bichinho muito querido, que muda de cor conforme o que tiver junto a si...

25/02/2009

Asas são para voar

Longe vão os tempos em que eu voava com Morfeu. Já não sou aquele gavião de asas doiradas… deixei que elas fossem violentamente arrancadas por uma nortada… caí. Embati tão forte dentro de um navio à deriva que quase lhe causei um rombo.
No fundo dos meus olhos quase se extinguiram as labaredas que os faziam brilhar. No lugar desse lume que me aquecia, o vento passou a ser o soberano, aquele que dita as leis e transforma em aridez tudo aquilo em que toca.
Cada sacudidela, cada oscilação deste barco que me aprisiona, causadas pela fúria das águas do enorme oceano que me volteia, provoca em mim uma vasteza de um nada, que eu almejaria que fosse um tudo. Por isso me transformei num tigre assanhado, que ruge e arranha, numa tentativa desesperada de despertar uns sopros de uns olhares, por muito fugazes que sejam, que me venham atear os resquícios das fogueiras que um dia arderam em mim.
Eu sou apenas eu e a minha situação.
Mas, ao longe, bem ao fundo de um tempo que parece breu, uma batida me faz estremecer e acordar. São as asas de latão que vêm ao meu encontro. Afinal, Morfeu ainda não me abandonou, não desistiu de mim. Começo a perceber que ele jamais deixará de me chamar a voar!

[Mais um texto com 12 Palavras sugeridas - 11.º jogo]

17/02/2009

Bocas

Caminham em fila indiana, pela beirinha do ribeiro, cinco figurinhas miúdas, baixinhas, pequeninas. Tão pequeninas, tão delicadas, que uma brisa, que lhes soprasse, as poderia fazer desequilibrar e tombar sem remédio em direcção ao riacho. Por isso, cautelosamente, a família avança em direcção a uma casinha, num cantinho mais escondido na aldeia dos anõezinhos, que fica na clareira da floresta das magnólias e das hortênsias.
À frente, a mãe guia o seu pequenino rebanho. Atrás, o pai protege-os, orgulhoso da sua prole. O Becas, o Bicas e o Bocas, três destemidos guerreiros (incapazes de fazer mal a um rato), seguem, alegres e travessos, escoltados pelas suas chefias.

Já são uns rapazinhos, não muito criancinhas, mas ainda gostam de brincar às escondidas e à apanhada uns com os outros e, também, aos domingos, com os seus amiguinhos.
O Bocas é o mais pequeno dos três. Não por ser o mais novo, mas porque a sua constituição mais franzina o deixou mais pequeno do que os irmãos. É também este o mais brincalhão e namoradeiro, sempre rodeado pelas mais lindas catraias da aldeia. É engraçado observar as partidas que gosta de pregar às rapariguitas, e que elas, todas sorridentes, não se atrevem a levar a mal, ficando, até, à espera para ver qual é a próxima contemplada com uma maldadezita das dele. Ele gosta de todas elas sem distinção… ah! mas há uma que, aos poucos, lhe vai prendendo mais a atenção.
Coitadito do Bocas!... Quando se acerca das suas amiguinhas, começa a ficar com um apertozinho no coração… e não sabe o que fazer para as tratar a todas por igual, pois aquela, para ele, começa a ser muito especial.

Atrás dos seus irmãos, o Bocas vai caminhando mas sem sentir muito o caminho, esquecendo-se de brincar amiúde como é seu costume. Vai um pouco pensativo, dando voltas para encontrar uma maneira de descalçar aquela bota, antes de arranjar um trinta e um.
Pois… magicava ele, para com os seus botões, que se não conseguir mudar a situação, um dia ainda haverão de começar a contar assim a sua história:
“Era uma vez um anão que teve três filhos, o Becas, o Bicas e o Bocas. Este último era tão pequeno, mas tão pequeno, que quando casou foi viver para dentro de um sapato número trinta e dois!”

Publicado no Ticho para o Desafio: Os Três Anões

09/02/2009

Esperando

Agora, ao pensar como teria sido se tivesse ficado naquele colégio, ainda experimento certas sensações que me ficaram impregnadas.
Nessa altura, eu não podia imaginar que tudo se iria passar tão diferente do que então pensava. As aulas tiveram início e eu não fui.
Bem sei que as coisas não têm que ter um começo como se idealiza, e que a vida é complicada. Mas, por vezes, é muito complicada mesmo. Não que eu sinta qualquer complicação, e o pai até disse que seria tudo muito mais simples assim, mas eu vejo os dias a passar e nada muda… excepto o termos mudado de casa. Agora, da janela do meu quarto já não vejo a casa da tia. Aliás, da janela do meu quarto já não vejo nada, a não ser as escadas que dão para o terraço. Posso abri-la e trepar por ela para as escadas, sem precisar de ir dar a volta. Sim, isso é mais simples…
Dantes, na aldeia pequenina e sossegada, ia de casa para a casa da tia, e da casa da tia para a casa da avó, e novamente para casa, sempre e quando tivesse vontade. Agora já lá não vou todas as vezes em que me apetece. Isso é que não é assim tão simples. É mais longe e a possibilidade de escapar é nula. É verdade que aqui tenho mais colegas. Lá, só tinha a Cila e a Lila, as duas irmãs que moravam na casa ao lado. Aqui, nesta rua enorme, tenho muitos mais, mas só brincamos aos domingos.
Os dias são sempre iguais. O rádio fica ligado todo o dia. Ouvir música, ler… e estive doente. Tive muita febre e quase deixei de comer… mas comi uma maçã amarela deliciosa que a tia me trouxe, ainda sinto o seu travo na boca sempre que recordo. Ah, e consegui aprender a andar de bicicleta. De perna traçada, na bicicleta do pai, depois de algumas quedas e dos joelhos e cotovelos esmurrados. 
Enquanto isto, continuo à espera que abra a escola na vila, para onde o pai disse que tinha pedido a minha transferência. Mas já passou mais de um mês e ainda nada aconteceu.

03/01/2009

O sal de Taiki


“Pior do que a morte é a solidão… e a minha vida é uma completa solidão”. Murmura Taiki após um breve período de ausência mental.
Ao largo ouve-se uma música alegre, saída de um automóvel parado à entrada do jardim.
- Odeio música! – É um grito saído das profundezas do seu ser.
- Que estupidez! - Escuta.
Boquiaberto volta-se na direcção da voz.
De repente, ali naquele momento, apeteceu-lhe falar com alguém desconhecido. Era-lhe mais fácil abrir-se com alguém que não conhecesse, do que com aqueles que já conheciam o seu drama e o olhavam com compaixão. O que não queria era que tivessem dó de si.
E ali estava, à sua frente, como que caída do céu, a dona daquela voz melodiosa, de tonalidades do nascer do sol, preparadíssima para uma troca de ideias.
- Queres-me dizer qual é o problema? – Pergunta a desconhecida.
Taiki ainda hesita:
- Pro… problema?
- Claro! Quem não gosta de música só pode ter um grave problema. Desde quando é que não gostas de música? – Pergunta a jovem?
- Desde hoje… agora… - mal balbucia Taiki, revelando a sua amargura.
A jovem inquire-o com o olhar e este estende-lhe a carta, decidido a confiar-se-lhe, carente como estava de um ombro amigo.
Ela lê a carta e emociona-se. Aconselha-o a seguir em frente, pois não pode mudar nada do que se passou. Agora só o futuro importa.
- Quem olha para trás transforma-se numa estátua de sal!
- Nós nem nos despedimos… - soluça Taiki, acabando por dar liberdade ao seu pranto, largando ali, naquelas lágrimas, o sal que começara a aprisionar.
- Chora… é melhor chorar do que ficar com um nó na garganta!
A jovem abraça-o, e ali se dá o início de uma amizade…

[Texto a pedido do Fontez - Longos Percursos para continuação d'o baloiço e anteriores.]

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