27/09/2009

Tatuagens Escondidas [1]

A morte... ainda não consigo escrever sobre isto com tranquilidade. Mas forço-me a fazê-lo nestas páginas soltas deste quase-diário. Preciso de espantar os meus fantasmas, resolver ou perdoar-me as minhas culpas, desfazer as tatuagens escondidas.
Primeiro foi a Princesa, a gatinha branca que conhecia os meus passos, que miava para mim como se estivesse a falar comigo, que se coçava nas minhas pernas para dar e receber mimo; depois foi o avô, que passava as tardes sentado na cadeira no patim, junto de quem eu brincava de o imitar a abrir a boca, e que me ensinava lengalengas e as primeiras letras; recentemente, a avó, a minha maior amiga, da qual eu ainda não consigo deixar de sentir um peso no peito e um nó na garganta. Pelo meio, um menino vizinho que estava doente, e também a outra avó, mãe da mãe, mas dela não tenho marcas tão fundas porque não passava tanto tempo com ela, só a via mais ao domingo depois da catequese. Quando morreu, há uns anos, eu fiquei a brincar no jardim até ser severamente repreendida; foi quando percebi que se não se podia brincar era porque a morte era um acontecimento muito triste e sisudo, em que se tinha de chorar, estar sempre a chorar, mesmo que naquela hora não se sentisse vontade. Então eu pensava que havia alguma coisa errada comigo, por preferir ficar no jardim, sem conseguir aguentar aquele ambiente de tristeza e choro em que eu, menina sempre tão chorona por tudo e por nada, me sentia triste e muito abalada, mas não conseguia chorar.

16 comentários:

antonior disse...

Esse rio, sempre coberto por neblinas de prata só atravessado esclarece o mistério das margens. Os viajantes , dele sentem temor e evitam aproximar-se. Mas todos os caminhos lá vão dar, suavemente ou com um ranger de ossos.
A água que corre é de lágrimas feita, das lágrimas que não conseguimos chorar...

Beijinhos

P.S. - Respondi aos comentários do post “Amarelo – O Pequeno Tigre” na mesma página em que foram feitos

O Profeta disse...

Passei para te deixar um terno beijo...

Maria Lúcia disse...

"Because I could not stop for Death,
He kindly stopped for me;
The carriage held but just ourselves
And Immortality."... /

Porque fazer convite à morte eu não podia,
Ela gentil veio buscar-me;
A carruagem só levou nós duas
E a Imortalidade.
..... Emily Dickinson

Não precisamos ter medo da morte, nem esperá-la, pois virá, com certeza, um dia, para todos, sem distinção.
Difícil é aceitar ver nossos mais queridos partirem, mesmo que o tempo nos queira ajudar...
Beijinhos.

Anónimo disse...

Não foi decerto o momento mais apropriado para ler este post. Não foi uma gainha que me morreu...antes fosse. Desculpa este comentário negro, mas a minha alma está negra também.

Quanto à âncora, recolhida, quer dizer que provavelmente estaremos à deriva...e iremos continuar a estar.

Um beijo amigo.

Secreta disse...

O choro não vem quando queremos...
Por vezes não conseguimos chorar , ainda que precisemos faze-lo.
Beijito.

Justine disse...

Muito bem descrito, o contacto dos jovens com a morte - sempre uma aprendizagem dificil. E será qua alguma vez aprendemos?

pin gente disse...

porque para eles, morrer é simplesmente... e ainda bem que assim é!

deixo-te um beijo de ternura, fá

Nilson Barcelli disse...

Gosto deste teu tom intimista, de diário. Fico à espera de mais...
Em criança também me aconteceu o mesmo com a morte de um familiar. E aprendi com os adultos. Mas passei a chorar apenas quando uma morte me dói (embora às vezes o faça discretamente num filme, por exemplo, se a morte é de uma criança).
Querida amiga, um beijo.

. intemporal . disse...

. da morte resumo a curva que se avista para a amplitude da transposição .

. a mudança . porque tudo o que vive é ampla.mente imortal .

. grat.íssimo pela visita ao Intemporal .

. deixo um beijo .

Å®t Øf £övë disse...

Fá,
Por muito que isso nos custe, temos que procurar encarar a morte como uma passagem para outro estadio, e tentarmos desdramatizá-la o mais que nos for possível, por muito que a dor às vezes pareça insuportável.
Bjs.

Gabriela Rocha Martins disse...

o toque de mestre num tema de uma enorme ambivalência.... o aprender a ser ... ou o saber ser

a VIDA



.
um beijo

MARILENE disse...

Não se pode esperar lágrimas ou tristeza de uma criança. O sentir não é compartilhado diante da morte. Esse é um tema muito difícil de ser abordado. Bjs.

Majo Dutra disse...

Gostei muito de ler, Fá amiga.
Vou estar ausente por algum tempo.
Tudo bom para si. Beijinhos
~~~~~~

Mariazita disse...

Todos nós temos recordações tristes - amigos que partiram, familiares que nos deixaram, animais (que eram mais que família) a quem tivemos de dizer adeus...
Cada um tem o seu modo de reagir à perda - chorando ou engolindo as lágrimas.
Quanto à minha própria morte, penso nela de vez em quando. Encaro-a com serenidade, sem, contudo, deixar de esperar/desejar que se mantenha longe por bastante tempo.

RE: Obrigada pelos votos de melhoras deixados lá no meu canto.
Um grato abraço.

Uma semana feliz.
Beijinhos
MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

Porventura escrevo disse...

Que tristeza bem construída

Sérgio Santos disse...

Texto forte e reflexivo.

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