04/04/2022

A rede


Há uma rede de arame enleado, pregada em estacaria por cima do muro; caída a certo passo, em certo tempo derrubada, e a par e passo pisada. É uma vedação que nada veda: nem vento, nem maresia, nem tempo, calor ou invernia; nem vegetação, pássaro, insecto, luz da noite ou do dia; ninguém. 

O tempo vem empurrado pelo marulhar ao encontro da praia e parece ir, dolente, levitar nas asas das gaivotas que não param de dançar, suspensas, lá em cima, num céu acinzentado, meio doente, meio enfarruscado. 

A rede delimita o olhar de um ao outro lado – fora e dentro, só olhar. De fora, atrás, o mar; do outro lado, lá dentro, o tempo custa a passar. De fora, os olhos só vêem a espera, pesada, a arder. 

Por um pouco de tempo, o olhar esqueceu-se de se envolver, semicerrou-se, cansado de pestanejar; e o tempo suspendeu-se, amarelo, na ponta de uma estaca onde a rede se queda, senhora de si, empertigada, enviesada, salpicada da maresia demorada…
 
Dali a outro pouco tempo, do nada, bateu o sol ao atrever-se a espreitar. Um ar de graça que, quer se queira ou não queira, de qualquer maneira, passa. Portanto, sol de pouca dura (e ai, a fome… que ninguém a atura!). 

Mas o tempo é para comer e estar. Porque, do lado de dentro da rede, há outra rede que faz o tempo tardar.

15 comentários:

J.P. Alexander disse...

Buena reflexion. Te mando un beso.

Maré Viva disse...

Gostei, demais!
Uma escrita fluente, que agarra e nos faz querer mais!...
Beijos.

Majo Dutra disse...

Muito interessante, Fá!
Quem me dera calor de praia...
O tempo trocou-nos as estações e já não temos paciência para o frio.
Dias bons. Beijos
~~~~~~

- R y k @ r d o - disse...

Quando eu era miudo usava muito a palavra enfarruscar. Achei graça agora vê-la aqui escrita na forma de " enfarruscado".
Belo texto que muito gostei de ler
.
Cumprimentos cordiais
.
Pensamentos e Devaneios Poéticos
.

silvioafonso disse...

Eu também gostei, claro.
Um beijo, Fá. Um beijo.

Porventura escrevo disse...

Aptecia continuar a ler.
Talvez perceber se há forma de continuar:-)

AC disse...

Tenho para mim que o conceito de rede é exercício ilimitado.

Uma Santa Páscoa, Fá!

O Árabe disse...

Poesia em prosa, Fa... como o fazes bem, amiga! Meu abraço, boa semana.

Kinga K. disse...

Linda reflexión ❤

MM - Lisboa disse...

Consegui visualizar o cenário e gostei.
Saudações poéticas.

A.S. disse...

Excelente texto Fá.
A tua forma de escrever é cativante.
Gostei muito!

Um abraço.

MARILENE disse...

Seu texto poético ficou encantador. E a colocação final é bastante significativa. Bjs.

João Santana Pinto disse...

Gosto muito da tua escrita e do que fazes com ela. um jogo de palavras que encanta, tão simples (de aparência) e tão complexo porque obriga a ler e a pensar.

Gosto destas tuas páginas tingidas, desta rede que me parece ser a vida...

um beijinho para ti

Sérgio Santos disse...

Verdade verdadeira. Bom fim de semana!!!

Ana Freire disse...

Maravilhosa esta bela prosa poética, que nos permitiu reflectir sobre os meandros do tempo... nos quais todos andamos enrolados, de uma forma ou de outra...
Adorei cada palavra! Beijinhos! Bom fim de semana!
Ana

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