25/02/2009

Asas são para voar

Longe vão os tempos em que eu voava com Morfeu. Já não sou aquele gavião de asas doiradas… deixei que elas fossem violentamente arrancadas por uma nortada… caí. Embati tão forte dentro de um navio à deriva que quase lhe causei um rombo.
No fundo dos meus olhos quase se extinguiram as labaredas que os faziam brilhar. No lugar desse lume que me aquecia, o vento passou a ser o soberano, aquele que dita as leis e transforma em aridez tudo aquilo em que toca.
Cada sacudidela, cada oscilação deste barco que me aprisiona, causadas pela fúria das águas do enorme oceano que me volteia, provoca em mim uma vasteza de um nada, que eu almejaria que fosse um tudo. Por isso me transformei num tigre assanhado, que ruge e arranha, numa tentativa desesperada de despertar uns sopros de uns olhares, por muito fugazes que sejam, que me venham atear os resquícios das fogueiras que um dia arderam em mim.
Eu sou apenas eu e a minha situação.
Mas, ao longe, bem ao fundo de um tempo que parece breu, uma batida me faz estremecer e acordar. São as asas de latão que vêm ao meu encontro. Afinal, Morfeu ainda não me abandonou, não desistiu de mim. Começo a perceber que ele jamais deixará de me chamar a voar!

[Mais um texto com 12 Palavras sugeridas - 11.º jogo]

17/02/2009

Bocas

Caminham em fila indiana, pela beirinha do ribeiro, cinco figurinhas miúdas, baixinhas, pequeninas. Tão pequeninas, tão delicadas, que uma brisa, que lhes soprasse, as poderia fazer desequilibrar e tombar sem remédio em direcção ao riacho. Por isso, cautelosamente, a família avança em direcção a uma casinha, num cantinho mais escondido na aldeia dos anõezinhos, que fica na clareira da floresta das magnólias e das hortênsias.
À frente, a mãe guia o seu pequenino rebanho. Atrás, o pai protege-os, orgulhoso da sua prole. O Becas, o Bicas e o Bocas, três destemidos guerreiros (incapazes de fazer mal a um rato), seguem, alegres e travessos, escoltados pelas suas chefias.

Já são uns rapazinhos, não muito criancinhas, mas ainda gostam de brincar às escondidas e à apanhada uns com os outros e, também, aos domingos, com os seus amiguinhos.
O Bocas é o mais pequeno dos três. Não por ser o mais novo, mas porque a sua constituição mais franzina o deixou mais pequeno do que os irmãos. É também este o mais brincalhão e namoradeiro, sempre rodeado pelas mais lindas catraias da aldeia. É engraçado observar as partidas que gosta de pregar às rapariguitas, e que elas, todas sorridentes, não se atrevem a levar a mal, ficando, até, à espera para ver qual é a próxima contemplada com uma maldadezita das dele. Ele gosta de todas elas sem distinção… ah! mas há uma que, aos poucos, lhe vai prendendo mais a atenção.
Coitadito do Bocas!... Quando se acerca das suas amiguinhas, começa a ficar com um apertozinho no coração… e não sabe o que fazer para as tratar a todas por igual, pois aquela, para ele, começa a ser muito especial.

Atrás dos seus irmãos, o Bocas vai caminhando mas sem sentir muito o caminho, esquecendo-se de brincar amiúde como é seu costume. Vai um pouco pensativo, dando voltas para encontrar uma maneira de descalçar aquela bota, antes de arranjar um trinta e um.
Pois… magicava ele, para com os seus botões, que se não conseguir mudar a situação, um dia ainda haverão de começar a contar assim a sua história:
“Era uma vez um anão que teve três filhos, o Becas, o Bicas e o Bocas. Este último era tão pequeno, mas tão pequeno, que quando casou foi viver para dentro de um sapato número trinta e dois!”

Publicado no Ticho para o Desafio: Os Três Anões

09/02/2009

Esperando

Agora, ao pensar como teria sido se tivesse ficado naquele colégio, ainda experimento certas sensações que me ficaram impregnadas.
Nessa altura, eu não podia imaginar que tudo se iria passar tão diferente do que então pensava. As aulas tiveram início e eu não fui.
Bem sei que as coisas não têm que ter um começo como se idealiza, e que a vida é complicada. Mas, por vezes, é muito complicada mesmo. Não que eu sinta qualquer complicação, e o pai até disse que seria tudo muito mais simples assim, mas eu vejo os dias a passar e nada muda… excepto o termos mudado de casa. Agora, da janela do meu quarto já não vejo a casa da tia. Aliás, da janela do meu quarto já não vejo nada, a não ser as escadas que dão para o terraço. Posso abri-la e trepar por ela para as escadas, sem precisar de ir dar a volta. Sim, isso é mais simples…
Dantes, na aldeia pequenina e sossegada, ia de casa para a casa da tia, e da casa da tia para a casa da avó, e novamente para casa, sempre e quando tivesse vontade. Agora já lá não vou todas as vezes em que me apetece. Isso é que não é assim tão simples. É mais longe e a possibilidade de escapar é nula. É verdade que aqui tenho mais colegas. Lá, só tinha a Cila e a Lila, as duas irmãs que moravam na casa ao lado. Aqui, nesta rua enorme, tenho muitos mais, mas só brincamos aos domingos.
Os dias são sempre iguais. O rádio fica ligado todo o dia. Ouvir música, ler… e estive doente. Tive muita febre e quase deixei de comer… mas comi uma maçã amarela deliciosa que a tia me trouxe, ainda sinto o seu travo na boca sempre que recordo. Ah, e consegui aprender a andar de bicicleta. De perna traçada, na bicicleta do pai, depois de algumas quedas e dos joelhos e cotovelos esmurrados. 
Enquanto isto, continuo à espera que abra a escola na vila, para onde o pai disse que tinha pedido a minha transferência. Mas já passou mais de um mês e ainda nada aconteceu.

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