29/12/2010

Espírito de Natal II

(Espírito de Natal I)

Em casa onde falta o pão, a todos pode falhar a razão.

Chegou Dezembro. E com ele o Natal. Mas este entrou em casa dos Baptista de espírito arredio. Por onde andava o espírito de Natal? Porque se esquecia ele deles?
Em família onde o Amor e a Paz se fazem escassos, o Natal é retratado de um corpo sem espírito. Os rostos fecham-se, a frieza enregela e corrói. Quando o espírito de Natal se ausenta fica-se só, triste e infeliz. Não se sente o amor, tolerância, paz, compaixão, sentido de dádiva.

A época de Natal é propícia à reunião familiar. Estar em família com amor é a base do espírito de Natal. Amor é a palavra-chave, a senha de acesso à paz e à felicidade.
Mas o Natal e o verbo amar não se conseguiam ali conjugar.
É claro que a vida não é sempre fácil. Somos surpreendidos, no escorrer dos dias, por contrariedades e revezes; sofremos desgostos; estamos tão sujeitos a desgraças. Mas se não se é capaz de estender a mão, quer como quem dá, quer como quem pede ajuda para se erguer do chão, corre-se o risco de se ficar sem ter a quem amar. E sem amar, sem abertura para amar, para dar amor – a todos e a qualquer um, e não só àqueles que nos interessam – não absorvemos o verdadeiro espírito de Natal.
Um Natal até pode ter presépio e árvore de Natal e luzes a piscar… ter neve artificial nas janelas a brilhar… mas o espírito andar longe. Pode até haver prendas, mas o espírito de Natal vai muito para além das prendas materiais que se dão: para muitos pode ser só preciso um sorriso, uma palavra simpática, um carinho, um telefonema…

O espírito de Natal assoma à alma nesta altura do ano para a abrir em calor humano. Numa família unida. No perdão que apaga desavenças. No tempo que se dá a quem dele precisa. Na paciência para ouvir e reconfortar. No ombro que se oferece para alguém chorar. Na generosidade e bondade que extravasa dos rostos para fazer a felicidade dos outros. E sentir-se feliz assim.
Mas muitas vezes assim não é. Que não se apague, ao menos, a esperança de o vir a ser. A Esperança é o berço do espírito de Natal. Mas esse berço – Esperança – não pode ficar vazio, despido. Tem de ser preparado, revestido de lençóis quentinhos. E, se possível for, todo o quarto tem de se ir decorando ao seu redor, para tornar todo o ambiente mais fofo e acolhedor. E, mais tarde ou mais cedo, o milagre acaba por acontecer assim que a decoração estiver pronta.

Mas se se instalar um vazio que não se consegue preencher, o Natal pode trazer um sofrimento maior do que qualquer outra altura do ano. E se a Esperança também se ausentar pode ser o descalabro total. Mas se ela comparecer, uma réstia acenderá um rastilho. A tristeza, a solidão, a doença, a dor, o desamor podem andar constantemente a espreitar, mas é preciso que a Esperança não lhes ceda o lugar.

Pois bem. Na família Baptista, houve alguém que não se deixou desesperar...

(Espírito de Natal III)

21/12/2010

Espírito de Natal I


Tudo começou quando a dona Maria Aurora ficou viúva. Faltando-lhe o seu companheiro de toda a vida, decidiu ir viver com a filha, a sua única filha - filha única -, com o seu rico genro - genro rico -, e seus amados netos José Maria e Matilde, de 20 e 18 anos respectivamente. Ela sabia que a sua filha, muito bem casada com Alcides Batista, um empresário de sucesso, não deixaria que nada lhe faltasse. E, de facto, por um bom tempo assim foi. Tudo corria bem. Alcides, proprietário de uma cadeia de lojas de pronto a vestir, não tinha mãos a medir. A sua esposa, Maria, ajudava-o quando podia para pôr a escrita em dia, ocupando-se da escrituração e, se preciso fosse, também ao balcão, enquanto a sua mãe tomando as rédeas da casa na sua ausência, se sentia nas suas sete-quintas a ditar as suas ordens à família. José Maria e Matilde, que sempre foram alunos exemplares, andavam na universidade.
Era uma família normal aos olhos de toda a vizinhança, até ao dia em que a esposa descobre que o marido a apostou ao jogo no casino.
Maria, ao fazer a escrita da empresa, tinha dado com uma grande diferença nas contas e, vendo o dinheiro a faltar em casa e para pagar às empregadas, ‘encostou o marido à parede’, e ele confessou o seu vício ao jogo, de que tinha dificuldade em se livrar e, no qual, num dia em que não tinha mais dinheiro para jogar, foi pressionado pelos colegas a apostá-la a ela, tendo sido por um triz que não a perdera. Tinha consciência de que andava mal, mas precisava de recuperar, ao menos, algum do dinheiro que tinha perdido e que levara a empresa quase à insolvência e fizera surgir todos os problemas à família. Contudo, referia que a sogra é que fora a causa primeira de toda esta situação, pelo facto de ir viver com eles, pois ela controlava tudo e todos, e ele, para não ter de a aturar, começara a sair à noite com amigos e a viciar-se no jogo.
José Maria, o filho do casal, sempre foi sociável e com boas notas nas disciplinas escolares. Ao dar conta do mau ambiente familiar acontecido tão repentinamente, começou a fazer noitadas com amigos pouco recomendáveis e a chegar a casa de madrugada alcoolizado, como forma de fugir aos problemas, passando as tardes a dormir e faltando às aulas. De aluno exemplar tornou-se num aluno fraco, fechando-se cada vez mais em si, sem falar com a família.
Matilde, mal saída da adolescência, sempre tinha sido uma menina muito mimada e protegida e nada sabia da vida. Ao ver-se mergulhada em tamanha confusão na família começou a buscar refúgio nos amigos e a passar semanas sem aparecer em casa. Ao fim de um certo tempo aconteceu: engravidou.
Só desgraças!
A dona Maria Aurora, mãe da Maria, começa então a ser pressionada a gastar o dinheiro da sua reforma nas despesas da família, e não anda nada contente com isso. Diz que não sabem governar vida, que se não fosse ela morriam todos à fome naquela casa. Que o genro lhe saiu melhor do que a encomenda, e que não sabe educar os filhos, por isso é que tudo deu no que deu: a neta está grávida e não sabe quem é o pai; e o rapaz ou se fecha que ninguém o vê, ou anda com umas companhias que até metem medo…
O caso está mal parado.

10/12/2010

Pontos nos iiii

Os tempos modificam-se como da noite para o dia. E outra vez como do dia para a noite.
Fingem-se páginas bem alinhadas, arrancadas à intempérie que não dá tréguas. Num corrupio, abastecem-se memórias de histórias esquecidas, tontas, torcidas, tremidas, aladas, caladas. Coladas. Vividas.
A ti pertence o meu sabor das manhãs de neblina. Em ti abandono as dores das noites sem luar. De ti retiro calor e frio, paz e tormento. Fogo. Relento.
E debato-me numa indecisão: refresco-me na chuva que me salpica a janela ou retiro-me no sono que me espreita as pálpebras?
Posso, precariamente, colar as mãos ao volante e soltar-me livre no asfalto negro que me fascina. Posso, indefinidamente, resumir-me ao espelho da janela e fechar o mundo do lado de dentro. Posso.
Posso cerrar a cortina e suprimir, de vez, este engano em banho lento. Posso trocar as voltas às voltas à volta de mim. Posso. Talvez um dia mergulhe nessa coragem. E posso ter a certeza de que, quando isso acontecer, essa volta será uma volta dada bem por cima.

25/11/2010

Um mundo para Luísa

Ao adaptar-se à sua nova vida, Luísa vira-se envolvida nos cuidados aos sogros.
Dona Arminda, a sogra, com 73 anos, há algum tempo que vinha fazendo curativo, em casa, a uma ferida que lhe aparecera na perna direita, e Luísa foi-se apercebendo de que esta não tinha jeito de cicatrizar, mas, pelo contrário, parecia que afundava. Levou-a então a uma consulta ao médico de família que a encaminhou para os serviços de enfermagem, onde passou a ir fazer penso três vezes por semana. Andaram neste vai-e-vem durante meses, enquanto a barriga de Luísa crescia.
O senhor Américo, o sogro, era sete anos mais velho do que a esposa, mas sem grandes problemas de saúde, apenas um pouco duro de ouvido e, de vez em quando, com umas dores nos pés que lhe dificultavam um pouco a marcha. Gostava muito de ficar com o neto quando as mulheres não estavam em casa. Parecia que rejuvenescia com as brincadeiras que os dois travavam. Estas eram, para ambos, momentos muito agradáveis de partilha de afectos e de vida. Aquele relacionamento intergeracional ensinava o pequeno a crescer e o mais velho a renovar o gosto de viver. Gostava de dar o seu passeio pela rua, mas só o fazia quando a nora o podia acompanhar, pela tardinha, os dois de braço dado e com o pequenito, ora de mão dada à mãe, ora ao avô.
Mas a idade não perdoa, e as dores nos pés começaram a ser mais e as forças nas pernas a ser menos, o que o passou a confinar, cada vez mais, ao interior da habitação. No entanto, de vez em quando, sentava-se à porta de casa, a apanhar sol nas pernas e, assim, sempre ia observando o que se passava lá fora.
Luísa ia-se sentindo mais pesada e redonda à medida que o tempo passava, até que, enfim, chegou a hora de o José nascer. Deixou o Manuel com os avós e chamou um táxi, que a levou à maternidade onde o parto se desenrolou sem complicações. Passados dois dias estava de volta a casa; na alcofinha, um bebé rosadinho e de cabelos de fazer inveja ao “avô” chupava no dedinho com desenvoltura.
- É tão bonito! – Comentavam os idosos, gostando já dele como se fosse seu neto.
O irmão não arredava pé dele, pendurado no berço a contemplá-lo no sono, experimentando-lhe a chupeta, esperando pela oportunidade de se enfiar no seu lugar assim que a mãe de lá o tirasse. Uma vez, apanhando a mãe fora do quarto, tirou-o ele próprio da caminha para cima do tapete e deitou-se naquele ninho fofo e quentinho, como só os bebés têm.
E, durante algum tempo, tudo se resumiu, naquela casa, a choros de bebé e risos de criança. As crianças retêm em si o mundo. Para além delas, o que houver é de menor importância.

03/11/2010

O Direito à Verdade

Os pensamentos e os remorsos não davam tréguas a Luísa.
Não acreditava que apaixonar-se pudesse ser pecado. É que não se pode evitar, principalmente quando se está só ou carente. Mesmo que não se procure. E quando acontece e se é correspondido, então não há como se ocultar por muito tempo, e o encontro dos sentimentos acabará por surgir na menor oportunidade. Parece que existe como que um íman que atrai e tudo se torna inevitável porque os dois se buscam. Luísa ainda o tentou evitar mas sem o conseguir, apesar de saber que um namoro entre uma professora e um aluno nunca seria bem visto. Uma relação entre professora e aluno não era nada convencional, e quando aconteceu foi a medo, por isso reprimida e curta, mas em encontros tanto mais intensos quanto escondidos, tanto mais vividos quanto fugazes. Uma vivência tão cega quanto puros os sentimentos.
O tempo foi escasso para explicações e estórias de vida, e ficou tudo por dizer.
Tudo se precipitara quase no final do semestre e do ano lectivo quando Luísa caíra em si depois de fazer o teste de gravidez. Depois, Luísa dava por si a evitar-lhe os olhos; e as aulas onde o tinha por aluno tornavam-se insuportáveis porque impregnadas da dor da sua presença. Até que Luísa tomara a decisão que a fizera culpada.
Era agora mais do que tempo de lhe contar toda a verdade. Já não era sua professora. E ele já não era seu aluno.
Pelo menos aquela verdade ele tinha de saber. Tinha esse direito. Mesmo que ela nunca obtivesse o seu perdão.

20/10/2010

Entre portas e janelas

Uma porta que se fecha pode ser uma janela que se abre. Uma corrente de ar repentina: um sopro mais forte de vento que escancara esta e obriga a fechar aquela; ou um vácuo que se cria pelo trancar da porta que obriga a janela a dar de si. Seja como for: janela que se abra para bater com a porta ou porta que se feche para que o ar entre pela janela, o mundo não pára para acontecer.
Assim sucedera mais ou menos com Luísa: o fecho de uma porta; uma janela aberta. E um mundo lá fora à espera; e outro a nascer-lhe nas mãos. Mundos diferentes que lhe respiravam na pele e lhe transpiravam no olhar.
Por uns tempos ficara para trás a Faculdade e a sua vida de docente, para dar lugar a uma vida doméstica, quase de reclusa.
Os sogros, dois filhos a crescer - um a pular pela casa e outro a pular dentro de si - traziam-lhe os dias de tal modo preenchidos que não tinha tempo para pensar em nada mais.
Tinha sentido alguma dificuldade e apreensão inicial para contar da gravidez aos seus velhinhos, mas eles até haviam reagido melhor do que contara. Lembrava-se das palavras que a sogra então lhe dissera: “Filha, fizeste um grande disparate, sabes disso?”. Ela assentira, corada, pedindo-lhes que não a mandassem embora. E respirara fundo, aliviada, quando eles, olhando um para o outro, lhe disseram que se ela precisava deles, eles também precisavam dela.
Foi assim que Luísa passou a morar ali naquela casa grande: não só essa porta não se lhe fechara como, por entre as cortinas das suas janelas abertas, o sol lhe fora trazendo alguns sorrisos.
Tinha consciência de que fizera grandes disparates… mas, ainda assim, achava que maior disparate teria sido nunca se ter permitido amar.

06/10/2010

Repetições

Sim, a vida também é feita de repetições.
Há dias de nevoeiro que se fecham em noite; há dias de nevoeiro que se abrem ao sol. E se há dias de nevoeiro que escondem a vida, há também dias de nevoeiro que a desvendam, que dela palpitam.
A vida repete-se todos os dias; em dias de nevoeiro ou em dias de sol; ou de chuva, ou de tempestade, ou de bonança. Todos os dias o sol nasce; todos os dias o sol se põe. As estações sucedem-se umas às outras. Todos os dias se morre; todos os dias se nasce. A vida tira; a vida dá. E até o que se oculta no nevoeiro também dele irrompe inesperadamente, às vezes contra todas as probabilidades.
Luísa viu as repetições acontecerem na sua vida: em si.
Um dia, o nevoeiro cortara-lhe o ar que respirava; mais tarde, um outro dia de nevoeiro devolvera-lhe o ar em tal quantidade que a sufocara. Contra todas as probabilidades, a vida lhe mostrara de novo o amor. Um amor demasiado belo para ser verdade. José Miguel. O aluno daquele semestre que brilhava por entre uma multidão de alunos, como o sol rompendo o nevoeiro.
Demasiado ofuscada, demasiado sedenta, afogara-se nessa fonte de luz, sem conseguir a racionalidade que lhe permitisse manter a distância. Racionalidade é o que não abunda quando o amor e a paixão se fazem urgência. Mais tarde foi tarde demais.

Chegaram as férias e Luísa foi, e não voltou. A dor também se repete, mas desta vez fora uma decisão sua. José Miguel. Pensou sobretudo nele: nunca lhe atrapalharia a vida. Era muito jovem, era homem, como tal seria fácil para ele ultrapassar aquele seu, talvez, devaneio da juventude que era amar a sua professora. Quanto a ela, o que aconteceria a seguir não passaria de mais uma repetição: ser mãe, e pai, outra vez.

28/09/2010

Luísa

Luísa casara numa manhã de Junho; era Primavera, quase Verão. Tinha sido uma cerimónia íntima no registo civil, apenas com um casal amigo de ambos por testemunhas, seguido de um almoço a quatro; e pronto.
O marido, filho único de pais já idosos, não tinha mais família chegada; por isso não queria grandes cerimónias nem boda e resolvera assim. Ela amava-o e conformara-se; que fossem um do outro, construir uma vida em conjunto, era tudo o que lhe bastava. Mas a sua família não lhe perdoou o casamento fugido e repudiou-a. Acabou, com muito custo, por se habituar a esse afastamento; em contrapartida ganhou outra família: os pais do marido, que passaram a ser a sua única família – eram eles que a estimavam como filha.
Casada ainda não era há um ano quando o marido lhe desapareceu, num dia de nevoeiro, qual D. Sebastião. Passou muito mal. A dor e o pranto pareciam querer roubar-lhe a vida. Dormia mal, comia mal… ou mal dormia e mal comia, ao que se seguiram quebras de tensão, desmaios; enjoos. Definhou. Estava grávida, soube-o depois. Isso a salvou. E foi mãe.
Ter um filho sem pai era ter que ser mãe e pai para ele. Dedicar-se inteiramente àquela criança supria-lhe a falta do marido e ajudava-a a não pensar no sofrimento que a falta dele lhe causava. O filho era vida, alegria ressurgida, amor perpetuado.
Visitava amiudadamente os sogros, os quais deliravam com o neto que ia crescendo esperto e saudável, recordando-lhes saudosamente o filho, ao mesmo tempo que lhes preenchia algum do vazio deixado. As férias e muitos fins-de-semana eram passados juntos, até que um dia mais tarde Luísa se mudou para lá. A idade avançada tornava-os cada vez mais dependentes e não tinham mais ninguém senão a ela e ao menino.
Mas não foi só isso que a levou àquela mudança de cidade e de vida. É que a vida também é feita de repetições…

19/08/2010

Quando a Vida é Uma Peça de Teatro

A vida é uma peça de teatro: umas vezes comédia, outras drama. Só que no teatro do quotidiano não são permitidos ensaios, a peça desenrola-se de improviso, sem estudo prévio, em que cada acto rola na sequência de outros actos, mais ou menos amadores, onde o protagonista é uma existência livre, mas que, mesmo que a cena em palco seja monólogo, não vive sem personagens secundárias, figurantes e público, numa permanente construção.
E quantas vezes a vida é um filme! Umas vezes de amor, outras de terror; umas vezes em formato de telenovela, em ecrã de televisão, outras de curta-metragem e em ecrã de cinema. Alguns episódios podem mesmo parecer saídos de filmes antigos, daqueles que sofreram cortes de tesoura porque alguma cena merecera censura ou porque a película pegara fogo.

José Miguel pensava nisso, sentado na sua cadeira no consultório, cansado de uma tarde de trabalho intenso, um tanto desgastante, em que, entre outras, tivera de acalmar duas crianças para as fazer colaborar no tratamento, e de chamar à razão as mães, que em vez de ajudar só atrapalhavam. E pensava nos teatros da vida e no formato que tinha a sua.
Se lhe fosse permitido voltar atrás, ao passado… refazer o seu filme, o teatro que era a sua vida…
Mas não era assim tão simples. O passado não se podia cortar à tesoura, e voltar a colar, como a fita de um filme antigo, nem sequer era como um dente do siso incluso, que se extirpa, sem dificuldade, com uma pequena cirurgia, e que depois de se suturar o vazio, o sítio acaba por ficar perfeito como se o dente nunca tivesse lá existido. Não: no palco da vida real, o passado não pode ser extirpado. Quando muito, pode ser remendado, suturado, a cada dia, com o presente, como jeito de tecer o futuro. Além disso, José Miguel tinha uma confusa percepção de que, no seu passado, poucas teriam sido as vezes em que tivera o papel principal. Se calhar, desde que nascera, em muitas situações tinha sido personagem secundária ou, até, mero figurante...
Se não se sentisse sempre tão carente, talvez não se tivesse apaixonado pela pessoa errada: uma jovem mulher um pouco mais velha do que ele, que lhe dera todo o amor que então precisava, mas que depois o abandonara.
Mas o passado era passado, o que estava feito, feito estava; poucas seriam, pois, as hipóteses de emendar o que, provavelmente, não teria emenda, de endireitar o que nascera torto. Assim, voltar atrás estava fora de questão. A vida tinha que seguir o seu rumo. E amanhã seria outro dia. Quem sabe, igual. Quem sabe, diferente.

01/07/2010

Sonhos de Criança


A turma foi dividida em duas partes. Enquanto metade da turma tem aulas de Desenho, a outra metade tem Trabalhos Manuais. Depois trocamos. Destas duas, a aula que mais gosto é a de Trabalhos Manuais. Não é que não goste da de Desenho, mas é que não tenho muito jeito para desenhar; a não ser que seja Desenho Geométrico, aí já faço uns riscos mais ou menos. No entanto, gosto de ter o meu material, não gosto de andar a pedir emprestado às colegas. Só que ainda estou à espera que a Lucília compre, para me devolver, uma ponta do compasso onde se coloca a tinta-da-china, que ela me pediu emprestada, e que fez o favor de deixar escorregar pelo cano abaixo, quando a lavava debaixo da água da torneira. Ando farta de lhe perguntar quando é que me compra outra. Isso aborrece-me um bocado e não me deixa aproveitar estas aulas como deveria.
Quanto à aula de Trabalhos Manuais, essa sim, gosto, pois posso usar mais livremente a minha criatividade. Nestas aulas sinto-me extremamente motivada. Gosto dos trabalhos que lá faço e gosto da professora, o que me leva a desejar vir a ser, um dia, uma professora como ela. Sim, gostava de ser professora, comecei a sonhar com isso. Já o disse aos pais.
Mas será que os adultos têm em conta os sonhos das crianças?

22/04/2010

Pontos nos iii

.

"A vida é tão diferente
Daquilo que sonhamos
Talvez o nosso mal seja acordar"


Há uma linha invisível, uma ténue fronteira entre o ontem e o hoje... e o amanhã(?); entre o dia e a noite; entre o cedo e o tarde; entre o conhecimento e a ignorância; entre o amor e o ódio... e entre o ódio e o amor(?); entre a saúde e a doença... e entre a doença e a saúde(?)...

"Estou a sentir
A minha voz perdida no deserto"


Espero. Há um nó que me aperta no estômago.

Queria dizer-te que nada me ata a nada, que sou dona de mim, que quem manda em mim sou eu... e até pensava que era um pouco assim. Mas não é.
Tudo o que tenho não é meu. Tudo o que sou não está nas minhas mãos. Tudo o que penso não me cabe no pensamento. Tudo o que sinto me escapa. Tudo o que sei desconheço. E o que olho não vejo. E o que me dizem não sei.
Longe - perto; longo - breve; grande - pequeno; aberto - fechado; visível - escondido...
Palavras: apenas palavras com muitas conotações, sentidos, direcções; e dores, afectos, emoções.

Espero. E chove-me enquanto espero. A chuva que me escorre é porta de vai-e-vem. Para lá dela, o nevoeiro: o despontar da noite ou do dia - o crepúsculo ou a aurora.

A vida nunca é como a sonhamos.
Mas parar de sonhar é parar de viver.

Preciso de um Xanax; ou de um café.

09/02/2010

Pontos nos ii

O dia amanheceu cor-de-rosa. Percebi-o pela luz que me chegou filtrada através das cortinas da mesma cor. Esquecera-me de fechar as portadas na noite anterior e o dia espreitava-me, agora, mais cedo do que o costume. Pensei um breve gesto para me levantar mas nem sequer as pálpebras me obedeceram, teimando em voltar a fechar-se. E sonhei, por momentos, o mesmo sonho de sempre, outra vez: isto já não era sonho, mais parecia pesadelo! Sonhava que o meu quase primeiro movimento da manhã era em direcção aos teus braços, mas agora sentia-me sem forças para o fazer. Melhor assim. Agora não eras tu que te impunhas, era eu que comandava. Chamavas-me, mas havia algo, mais aliciante do que tu, que me prendia: tão bem aninhada nos lençóis fofos e quentinhos que nada me arrancaria de lá tão cedo.

A vida fervilhava lá fora há muito tempo quando, por fim, dei conta de que eram mais do que horas. Aquilo não era vida. Mandriava, o que me traria os mais diversos aborrecimentos. Não só começava o dia tarde, o que me faria andar atrasada todo o dia, como não iria ter muito tempo para estar contigo. Levantei-me e não resisti a procurar-te. Mas, desilusão, hoje não te tinha. Como era possível que a janela não abrisse? Já não sei o que é melhor: que me sejas veneno ou pedaço de fantasma que me tapa o sol. De uma maneira ou de outra, não passas sem me embotar o cérebro, e não era para isso que te queria.
Porque me manténs refém? Não havia necessidade! Eu gostava de ti, para que querias de mim ainda mais? Maldita ressaca quando me faltas!…

29/01/2010

Pontos nos i

O sonho foi igual ao de todas as noites. Sonhei que a janela, a mesma janela de sempre, estava fechada e que para lá dela é que era o mundo: lá fora é o mundo e eu fico sempre inquieta enquanto não abro a janela ao sol que por ela me chega. Revolvo-me e não durmo enquanto não acordar.
Quando os mesmos sonhos se sucedem noites a fio passam a ser parte da vida. Quando reclino a cabeça no travesseiro para dormir já sei o que acontece a seguir: a janela, o mundo lá fora à espera, impaciente para entrar no dia seguinte.
Assim entraste na minha vida: todos os dias um pouco, sempre um pouco mais, um sonho que se repete; e passaste a ser-me vida, janela para o mundo. Entraste-me pela porta e foste-me janela. Mirei os meus olhos aos teus e aos poucos gostei de ti até me tornar adicta. Sim, porque me és droga: remédio do qual dependo para me curar as mazelas e, ao mesmo tempo, veneno que me mantém submissa, me envenena lentamente, me mata todos os dias um pouco.
Conheci-te num tempo em que o tempo já não era o que era. Vieste por mãos queridas e eras delas, mas as minhas te tomaram para mim. A culpa não foi minha: foste tu que, sem pudor, me seduziste, te apropriaste da minha vida e fizeste com que me fosse apaixonando por ti. E és-me sol, luar, água para beber, lume para me queimar.

As pálpebras pesam nos olhos cansados, a cabeça fecha-se, as costas doem…
- Coça-me as costas.
Sinto as mãos percorrerem-me os ombros doridos e uma paz silenciar-me as veias e as artérias alteradas. Era assim que deveria ser sempre. Era assim que eu queria estar sempre: tranquila, sem nada desejar, sem mais nada querer.
- O que é que é o comer? Falta muito para o jantar? Já estou com fome.
E lá se vai o sossego! Chega-nos um cheiro estranho. Fumo. Vou até à cozinha, o jantar foi outra vez queimado: o caldo está entornado!

Isto não é normal. Não pode ser normal. Não consigo fazer tanto ao mesmo tempo, com a mente sempre com resmas de coisas para pensar. E tu fazes-te prioridade. Absorves-me. És-me o mundo que me traz alucinada. Que me tira a vida. E o teu papel não deveria ser esse. Não pode ser esse!

Toca o telefone:
- Estou! Sim… onde? Vou já de seguida!
Entro no carro e saio para a estrada. Ligo o rádio na estação preferida:

"It's got to be-ee-ee-ee-ee-ee-ee perfect
It's got to be-ee-ee-ee-ee-ee-ee worth it
yeah.
Too many people take second best
But I won't take anything less
It's got to be
yeah
pe-e-e-e-e-erfect!"

Perfeito! Sair da rotina é o melhor que me pode acontecer. E canto, grito, a par desta música que me faz esquecer, por uns momentos, a loucura em que se está a tornar a minha vida…

11/01/2010

Chuva

Lá fora a chuva cai: ouço-a a bater nas telhas. Presto atenção e saboreio o som da chuvada como se fosse música. Suspendo os deveres da escola e enrolo-me na mantinha sobre a cama para mais confortavelmente a apreciar. Só tenho medo se fizer trovões; a avó costumava dizer que era o Pai do Céu a ralhar...

Olho para o tecto de forro de madeira e para as paredes decoradas a caixas de fósforos e sorrio: sinto-me tão bem no meu quartinho - o meu pequeno mundo!
O que começou por ser uma pequenina colecção de caixas de fósforos com motivos de flores tornou-se já numa colecção enorme destas caixinhas de todos os estilos: os meus amigos, sabendo desta minha paixão, começaram a granjeá-las para mim. E eu, que comecei a colá-las à volta da janela, vou já na terceira parede quase cheia. O pai bem começou por ralhar e dizer que eu estava a fazer um duplo disparate: estragava as paredes e a colecção perdia todo o valor, mas depois acabou por se render e apreciar também; a mãe é que não acha muita graça, diz que eu só perco tempo com coisas que não dão interesse nenhum e o que eu havia de fazer não faço. Ela nunca me irá entender.
Eu sei que isto não vai durar para sempre, que acabará por se estragar ou por alguém estragar; algumas já se descolaram e voltei a colá-las, outras tive mesmo que as substituir porque se deterioraram completamente, mas também não me importa o tempo que dure, o que interessa é que eu goste e me sinta bem enquanto durar.
É como a chuva que continua lá fora... há coisas que nos são agradáveis ao coração, mesmo que os outros não o entendam.

(Publicado em: Memória Alada, 2011)

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