24/07/2024

Neblinas II

Estava calor. Sentada no banco direito da frente, abri o vidro da janela e esperei. O pai demorava a chegar e eu estava ansiosa para sair. Um passeio de carro é muito apetecível para mim, que todos os dias tenho de ir para a escola a pé.

O meu primeiro sobrinho tinha nascido e eu e o pai íamos vê-lo. A mãe já lá tinha ido e disse que o menino era tão lindo e pequenino. O meu interesse não era ver o bebé que, supunha, iria usurpar uma parte das atenções que deveriam ser para mim. Aliás, eu nem iria ser capaz de o agarrar ao colo. Nunca tinha pegado num bebé ao colo, com certeza não iria ser agora. O meu interesse era mesmo pelo passeio de carro. Esse, sim, era o motivo da minha ansiedade. Eram tão poucas as vezes que eu podia viajar no banco da frente que me sentia inquieta.

Finalmente o pai chegou e pôs o carro em andamento. Começava a aventura para mim.
À medida que a velocidade aumentava o vento ia fazendo esvoaçar cada vez mais os meus cabelos compridos. Decidi fechar um pouco a janela e…

Neste momento percebo que a neblina se quer dissipar...


(Publicado em livro: Memória Alada, 2011, pág. 23)

23/07/2024

Neblinas I

Era domingo à tarde. Um domingo igual a muitos outros domingos, aquele em que mergulhei neste lodo em que me sinto atolada.

Ainda não sei muito bem como aconteceu. Todo o meu corpo se encontra ainda dorido. Deitada nesta cama de hospital, tento vasculhar a minha memória à procura de um ponto de referência, uma luz que me ilumine sobre o momento em que tudo ocorreu.
Recordo-me de entrar no carro do pai, o Fiat 1100...
- Querida, não te mexas! Dói-te a cabeça? – Pergunta-me a enfermeira acabando de entrar no quarto.
Respondo que não, a cabeça não... O que me dói mais é o braço.
O braço esquerdo foi partido pelo cotovelo. E o rosto... Não sei como está o meu rosto. Sinto-o seco e repuxado em alguns sítios, noutros parece-me húmido, mas não posso mexer-lhe para verificar.
A enfermeira faz novamente o curativo, usando o mesmo método de sempre: lava-o suavemente com uma compressa embebida em água morna e aplica uma tintura vermelha. A minha cara deve ficar parecida com uma rosácea, de tão pintada! Se me olhasse ao espelho, acho que teria um sobressalto, ao reparar na figura que devo estar a fazer.
- Querida, não te dói mesmo a cabeça?
Respondo outra vez que não.
A enfermeira sai do quarto e deixa-me de novo com os meus pensamentos.

Ontem os pais vieram-me visitar e trouxeram-me um bolo. E a enfermeira, ao ver, zangou-se com eles, porque eu não podia estar a comê-lo. Ainda ouvi falar em fractura de crânio... mas, a sério que não me dói a cabeça. E, se doesse, se calhar eu também não diria nada, com medo que me operassem...
Mas, agora, é preciso que eu procure as raízes desta loucura que não me deixa recordar tudo o que se passou.
Lembro-me que, após o acidente, vi o rosto do pai branco como a cal. Só não me consigo recordar como é que fui cair do carro em andamento. Essas lembranças ainda estão no fundo da minha memória, mas sei que, aos poucos, irão emergir.

[Texto enviado ao 4.º Jogo das 12 Palavras - Texto 22]
E
(Publicado em: Memória Alada, 2011)

22/07/2024

Regresso ao mundo III

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“Não éramos iguais. Nunca foi uma relação de iguais… tinha de me afastar.”
Sempre a mesma desculpa. E sempre o mesmo peso na consciência. E sempre o mesmo amor teimoso a não dar tréguas nem sossego. Tanto tempo já passado e tantas lutas para que a tranquilidade visitasse o seu coração, e até parecia que, à medida que o tempo passava, a inquietação se instalava mais.

Tinha ficado de tal modo atrapalhada ao avistá-lo ao longe, que não reparara no automóvel a grande velocidade e se deixara atropelar, quase mortalmente. Fora um milagre ter acordado daquele coma profundo, depois de ter sido dada como morta.
A sua primeira preocupação tinha sido com os seus meninos e pedira socorro para eles, mas acordara com José Miguel na memória, talvez devido ao facto de ele nunca de lá ter saído. Ele era o seu constante pesadelo.

Quando sentiu uma respiração quente a acariciar-lhe o rosto, o pesadelo suavizou, mas nada daquilo podia ser real. Não podia ser… já sonhara aquele sonho tantas vezes... Era somente um produto da sua mente perturbada que insistia em atormentá-la.
No entanto, aquele beijo parecia tão verdadeiro que não queria acordar. Perfeita alucinação em que mergulhara e que lhe transmitia um bem-estar interior tão intenso que queria que perdurasse, para não ter que dar ouvidos aos remorsos de o ter deixado, sem lhe contar a verdade, e que não a largavam nunca.

Poderia ele perdoar-lhe?

21/07/2024

Regresso ao mundo II

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Uma sonata de sons alucinantes parecia ecoar aos ouvidos de José Miguel, como convite a loucuras inconfessáveis. Aquela mão, retida na sua, irradiava centelhas de calor que o trespassavam até à medula.
O mundo tinha parado e José Miguel, de olhos fechados, saboreava com sofreguidão aquela embriaguez dos sentidos que se apoderara dele, enquanto o seu peito arfava de comoção.
Não conseguindo aguentar, foi deslizando a sua mão pelo braço nu da sua amada, num bailado de arrebatadora paixão.
Sentia-se um pecador, mas o desejo foi mais forte. Pousou os seus lábios naqueles que o chamavam com um misto de veludo e seda, primeiro com toda a suavidade, depois, sentindo-os entreabrirem-se, fundiram-se neles numa entrega inevitável e plena de êxtase.
O beijo quente e apaixonado fez-lhe reviver alvoroços perdidos no fundo de um baú. Mas aquilo parecia-lhe uma violação. “Perdão, meu amor…”, foram as palavras que lhe afloraram à mente. E afastou-se. Afastou-se sem se poder saciar naquela boca, que tantas vezes tinha povoado os delírios das suas noites. Afastou-se sentindo um arrepio profundo a inundá-lo, até lhe deixar as mãos trémulas e a cabeça à roda. E, de repente nauseado, antes de ter tempo de procurar onde se sentar, notou que o chão lhe fugia…
As emoções tinham sido muitas e demasiado fortes nos últimos dias, e aquela vertigem, que lhe tirou momentaneamente os sentidos e o atirou ao chão, era o resultado disso.
“Luísa… oh, Luísa… tanto te esperei!...”

20/07/2024

Regresso ao mundo I

A janela semicerrada deixava entrar uma claridade suave, que transmitia uma aura pacificadora e tranquila. O silêncio era entrecortado, aqui e ali, por um misto de vozes sussurradas e passos no corredor.

Deu a volta à cama, aproximando-se da janela e ficou por momentos a espreitar pelas frestas, sem nada ver.
O coração queria saltar-lhe do peito, tal era a sua ânsia de a abraçar, de a beijar. Mas tinham-lhe recomendado que não a acordasse. Estava sob o efeito de sedativos pois os traumatismos eram muito grandes.
Olhou-a. O seu rosto tinha o mesmo encanto que o prendera, apesar daquela marca roxa do lado esquerdo.
Será que se lembraria dele?
- Quem está aí?... – perguntou Luísa num leve murmúrio.
Entreabriu os olhos e tentou fixar aquela silhueta luminosa que se encaminhava para si.
Ele não resistiu a pegar-lhe na mão, sem dizer nada.
Ela baixou novamente as pálpebras, deixando a sua mão naquela que a prendia, sentindo como se fossem duas gotinhas de água juntas num lago azul. Sonhava. O mundo parecia cantar.

19/07/2024

O Moinho das Sapatilhas outra vez


Hoje o dia está ventoso.
O Verão deixou-me com o sabor do mar na boca.
Foi a mãe que me ensinou a gostar do mar, a não poder passar sem o seu odor. Enquanto o pai fica estendido na areia, a mãe mergulha e arrasta-me com ela numa dança frenética ao encontro das ondas.
O mar, com a sua melodia, impele-me a subir ao terraço para o alcançar à distância, para lhe sentir o embalo e sofrer o Verão que passou veloz.
Sei que ao longe, junto ao pôr-do-sol, há-de tocar a música das ondas. Mas ela não chega até mim, nem sequer um leve murmúrio que me aqueça o espírito.
Hoje o dia está ventoso!
Além, à esquerda, por cima das copas das árvores, o Moinho das Sapatilhas.
Para mim, ainda é um mundo por descobrir, com tanto de fascínio como de mistério. Ali, aquelas pás enormes giram incansáveis, soltando os seus gemidos e lamentos, sá-pá-tshii-lhás, sá-pá-tshii-lhás… são as sapatilhas do Gigante que habita o moinho, a voar com o sopro deste vento que me sacode o cabelo e o vestido.
Lá dentro, o Gigante está abrigado. Cá fora, os seus enormes pares de sapatilhas dançam ao vento.
Hoje o dia está ventoso…


22/06/2024

Cor matinal


Um som estridente ressoou pelo casarão adentro, fazendo rodopiar, num gesto de bailarina, o coração assustado de José Miguel. Ainda de forças quebradas pela noite mal dormida, teve de inventar um grande esforço para se erguer. Transpiravam-lhe as mãos quando rodou a chave na fechadura. Do lado de lá, dois rostos femininos encaram-no com surpresa. Identificam-se. 
– Quem é o senhor? – Pergunta uma das jovens. 
José Miguel fica sem saber que responder, mas consegue dominar a situação e ilude a pergunta. 
– Que desejam? 
– Vimos buscar os meninos. – Percebe uma resposta seca, talvez numa tentativa de cortar pela raiz uma eventual resistência. Então, propõe-se travar aquele propósito sem qualquer capitulação. Estava ali para proteger os seus pequeninos. – A mãe deixou-os sozinhos em casa… 
– Não! – Cortou José Miguel – deixou-os comigo! 
Assim. Com total liberdade. Ninguém lhe arrancaria aquelas pérolas que acabara de encontrar. Por isso ensaia o acto falaz. – São meus filhos. Nunca permitirei que os levem! 
– Mas a mãe… 
– Já não têm mãe – gemeu. – Não os podem deixar também sem pai… 

Quase desfalecia de dor. José Miguel começava, agora, a entregar-se a um sentimento de inquietação que o rondava, pela ideia de que poderiam querer interná-los num lar de acolhimento de crianças em risco, afinal eram órfãos, e ele um intruso. Mas não existem verdades absolutas. Os sustos e as surpresas surgem sempre repentinamente, revelando o quão ilusória é uma certeza e abstracta uma harmonia. Do mesmo modo, na escuridão pode esplender inesperadamente uma luz, qual galanteio que converte uma amálgama de mágoas em sintonia perfeita de cores e tons. Deste confronto com as Técnicas de Serviço Social vem a nascer nova alma em José Miguel. Luísa vive. Acordou quando todos a julgavam morta. Era ela que as tinha ali mandado.

[Texto enviado
ao 7.º Jogo das 12 Palavras]

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