Lado negro

(reposição)

Mais uma alta de mais um internamento.
– É desta, Tó? – Perguntei-lhe quando o fui buscar.
– Sim, é desta. – Respondeu.
Se eu pudesse acreditar nisso! Queria tanto acreditar! Mas, decididamente, não me parece que vá ocorrer mudança no seu comportamento. Até porque o seu aspecto e a sua voz o denunciam. A droga e a delinquência encontraram nele poiso.

Encontrei-o, ainda nesse mesmo fim de tarde, na igreja. De pé, bem no meio, muito embrenhado com algo na mão… parecia um livro de cânticos, ou um papel… talvez uma carta ou oráculo do Santo Patrono.
Seria muito bom que esse reencontro com o espiritual lhe permitisse sair de lá iluminado por uma alva luz, com a qual pudesse desvendar o que constitui um mistério para ele, e que mais não é do que todo o seu tesouro, que enterrou não sabe bem onde, mas que se encontra dentro de uma caixinha envolta num papel colorido de bondade.

Mas não. A ida à igreja deve ter-se revestido de algum sofisma, disseram-me depois.
No entanto, custa-me pensar que possa ser assim. Preferia não ver as pessoas pelo seu lado negro, mas o receio de ser atraiçoada por algum paralogismo leva-me a não poder descartar certas possibilidades.
O lado negro muitas vezes leva vantagem.



À descoberta

A luz que se escapa pelas frinchas da porta do quarto não chega ao quarto dos pais, que fica no outro extremo da casa. Por isso não corro o risco de ser surpreendida acordada.
Desse modo, devoro o livro, à luz do candeeiro, e nem dou pela noite passar.
Uma das vantagens de se ter irmãos, rapazes, mais velhos, é a de ter acesso a livros que, uma menina da minha idade, de outro modo não teria.
Durante o dia, com eles fora, dou por mim a vasculhar-lhes as prateleiras. Estas são uma tentação para a minha curiosidade. Paulo e Paládia, Amor de Perdição - arregalo os olhos - e tantos e tantos outros...
Vou levando um a um, que não descanso enquanto não leio o mais rapidamente que consigo.
A par da leitura, a imaginação vai voando para a terra dos sonhos e é como se flutuasse num balão colorido à procura do Arco-íris.
Já começa a clarear quando me proponho, finalmente, começar a dormir.
O chilrear dos passaritos é a música que me embala o sono...
[6]
(Publicado em: Memória Alada, 2011, pág. 18)

Presépio na Montra e a revisita


Volto ao presépio do tio Zé. O fascínio das suas figuras impeliu-me a revisitá-lo e a observá-lo mais demoradamente.

São figuras pequeninas, de barro pintadinho de cores bonitas, que na sua simplicidade tornam este presépio num lugar mágico, cativante, onde se misturam a criatividade com o belo; e como que a pureza sobressai e vem ao nosso encontro e nos quer falar.

Detive novamente o olhar na figurinha mais intrigante para mim: o Ano Velho com o Ano Novo às costas. Como cheguei a pensar que seria o Pai Natal carregando o Menino Jesus, tenho de o apreciar melhor. Que nos quererá mesmo dizer esta figura no presépio?!...

Que o tempo não termina com o fim do ano, mas continua em tempo Novo, ou renovado?...
Que o tempo de Natal tem o fim do ano e o início de outro pelo meio?...
Que um ano passa o testemunho de Natal ao outro ano?
Que Jesus Menino não é só no Natal, mas se transporta de um ano ao outro?

Sim, para esta figura estar no presépio, terá algo a ver com Jesus...

Ano velho e Ano Novo: dois tempos… figurando num homem velho carregando um Homem Novo! O Tempo que passa e que vem Menino ao nosso mundo… na “plenitude dos tempos”.

Ah, será que quererá significar que no Natal há um ano velho que acaba e um ano Novo que começa?... um antes e um depois? que ali há um marco histórico e sobrenatural? Um tempo velho e um tempo Novo?

Se o nascimento de Jesus é uma boa notícia, uma Boa Nova, será que nos vem dizer para deixarmos para trás o que é velho e começar o Novo?... ou de novo? que o que em nós é velho tem de dar lugar ao novo, ou renovado?...

Tantas interrogações a que uma simples figura nos pode levar!...

Mas acho que sim, que é isso... – uma coisa é certa: não podemos ficar indiferentes ao Natal, que é tempo de nascimento, de nascer sempre a cada ano, outra e outra vez, nascer de Novo, nascer O Novo. O Homem Velho dá lugar ao Homem Novo. Homem Novo que é Jesus, e que tem de ser também cada um de nós que O ama e segue.

O velho tem de dar lugar sempre ao Novo, à novidade – o velho tem de carregar sempre o Novo, como a criança de colo que fomos tem de ser carregada e mantida sempre em nós, pura, perfeita, inocente, humilde e linda.

Pois que se vá o ano velho que em nós se instalou e um Ano Novo connosco viva, em revisita constante de Jesus ao nosso mundo, ao nosso eu.


Tempestade Vendaval

Sobravam tempos a ameaçar. Céus nublados e semblantes. Desconsertos, sem concertos nem sinfonias. Danças em dó maior.

E chegou, viu e quis vencer.
Em cegueira que se apodera das fragilidades, e destrói em segundos o que levou anos a mal erguer.
Ela desce e rodopia, roda e pia, pia e roda. Enrosca-se e enrola. Rola, rebola, revolve e revolta, às voltas, às soltas, sem tento nem portento que lhe trave e freio; sem meio de remir o que largou ou o devir.

Tempestade vendaval desengonçada atravessa a praça e as ruas; as vielas mais escondidas; os jardins e as florestas; as aldeias preguiçosas e cidades buliçosas, desde o casebre mais tosco até ao palácio real; castiçais e candelabros são apagados num fôlego, sem dó nem piedade de plebeu ou divindade.

Tempestade furacão, fura gente, fura almas, desalmada, descompensada, destrambelhada, sem coração nem entranhas, que causa dores tamanhas, torturas, tonturas e desgostos; salta em rostos pregões aos quatro ventos, arrastando-se pela lama, destelhando até à cama, rodopiando à lareira, soprando pela boca faúlhas de fogueira. Invertebrada sai pelos mundos de qualquer jeito e maneira, sem jeito nem maneira, de soltura e caganeira. Garganeira.

Mas creio firmemente num só Deus que nos governa e vela; quando nos atravancam uma porta, Ele escancara-nos uma janela.

Quase como ouvi contar

Na era do antigamente - em tempos magros, de fome, quando os meninos, mal saídos da parca mama das mães, cedo iam ser criados dos senhores mais abastados, a fim de poderem ter um pouco mais para a boca do que na casa paterna -, o pastorinho do rebanho das cabritas todos os dias levava os animais a pastar em roda da capelita de San Sadurninho. Na bolsa do farnelito, umas míseras côdeas de broa seca, que o seu amo lhe mandava para o dia inteiro.

A fome apertava, a broa era dura de roer, e o santo na capelita tinha azeite numa griseta para arder.
O rapazito, faminto, eleva uma côdea em direcção ao santo, como quem espera uma bênção que a transforme em manjar do céu.

 Ó mê xantinho xan Xadurninho vosmixê dá lixenxa que eu molhe aqui nha broa no xeu guijaujinho?

E o santo, como bem de ver, nada de responder!
E torna o moço:

 Ó mê xantinho xan Xadurninho vosmixê dá lixenxa que eu molhe aqui nha broa no xeu guijaujinho?

E o Santo parecia que era mudo... ou fazia-se.

 Mas vosmixê não ouve ou quê?... Ó mê xantinho xan Xadurninho, xantinho da nha devoxão, vosmixê dá lixenxa que eu molhe nha broa aí, aí, nexe ajeitinho dexe xeu guijão?

E resposta, nenhuma!

 Ai vosmixê não responde? É porque quem cala conxente! Poix atão eu molho, e hei-de molhar e xopotear!

E assim, todos os dias, o coitadinho condutava a magra e seca broa com o azeite do santinho, que foi até ao lamber do acabar.

Presépio na Montra e A Fuga para o Egipto


Este meu presépio aqui na montra da loja é bem mais pequeno do que o do tio Zé. O dele é enorme! Estende-se pela adega além, em cima de um palanque de tábuas para dar uma altura, que foi revestido até ao chão de papel pardo, retirado de sacos grandes de farinha, enfeitado depois com fitas e bolas coloridas e brilhantes. E o mais importante: tem imensas figurinhas. Perco-me a observá-lo sem nunca me cansar. A cada Natal há sempre mais coisas que o tio vai acrescentando: luzes, água, um ou outro movimento, campainhas que tocam ao ser puxado um cordel que vem pela parede até à porta…
Para além das figuras iguais às que o meu presépio também tem, há outras que me causam alguma estranheza e admiração. Gosto tanto de apreciá-lo e de fazer perguntas! Ó tio, o que é este? Ó tio, e este? Ó tio, e ali aquele?... E o tio com a sua paciência pachorrenta vai-me explicando, como quem está a ensinar catequese – o tio é catequista.
 
Por exemplo, tem um velhinho de barbas brancas com um menino pequenino às costas: diz o tio, que é o Ano Velho que traz o Ano Novo. Tão giro! Nunca tal me passaria pela cabeça: o Ano Velho e o Ano Novo em figura de gente... (e enquadrado no presépio... humm... um homem velho carregando um Homem Novo! Algo a ver com Jesus terá... ainda cheguei a pensar que seria o Pai Natal e o Menino Jesus, que tola, sei lá!...)

Intrigou-me também uma figura de uma senhora que puxa pela mão, como que arrastando, uma criancita que parece ir a chorar. Lá mais atrás uma figura de um militar empunhando uma espada. O tio diz-me que a senhora e a criança vão a fugir dos soldados do Rei Herodes, aquele malvado, que mandou matar todos os inocentes meninos pequenos até aos dois anos de idade, para ver se entre eles apanhava o menino Jesus para o matar. Pois se Jesus é o Rei dos Judeus, pensava ele que vinha usurpar-lhe o seu lugar no trono, não percebendo que o Reino de Jesus é um reino de paz, de amor e de graça de Deus, de vida, de verdade e de justiça; um reino bem diferente dos deste mundo. 

Também detive o olhar, mais além, num burrito que carrega Nossa Senhora com o Menino ao colo, com S. José adiante a pé, segurando o burrinho pela arreata. Conta que vão em fuga a caminho do Egipto, para que Herodes não apanhe e mate o Menino. São José tinha sido avisado num sonho, por um anjo, para que fugissem para o Egipto e por lá permanecessem até que passasse o perigo e lhe fosse transmitido que poderiam regressar.


Presépio na Montra – Os Reis Magos


Aqui estão, no presépio, Gaspar, Baltasar e Melchior: três Reis Magos, montados nos seus camelos, vindos de longe, dos lados de Oriente. Vêm há vários dias guiados por uma grande luz brilhante de uma nova Estrela, para ver e adorar o Messias Prometido, o Rei de Israel.
 
Para trás já deixaram o castelo do Rei Herodes, a quem foram perguntar se ele sabia onde tinha nascido o Rei que eles vinham visitar, pois que a estrela que os guiava tinha-se encoberto ali perto de Jerusalém e não sabiam para que lado caminhar. Sentindo-se abandonados à sua sorte, não sabendo onde procurar, pensaram que talvez pudesse ser naquele castelo.
 
Mas Herodes não sabia de nada, tendo ficado curioso; então disse-lhes que também queria saber e que lhe viessem dizer quando o encontrassem, pois também gostaria de O visitar. (Mais tarde veio a saber-se que essa sua visita, a acontecer, seria tudo menos amigável). E ali ficou ele, à porta do seu castelo, com cara de poucos amigos!
 
Então os Magos viram de novo a estrela e seguiram-na até à gruta de Belém onde estava Jesus. E ali O adoraram e ofereceram-lhe os seus presentes: ouro, incenso e mirra. 

Depois, sendo avisados em sonhos para não voltarem ao castelo de Herodes, pois as intenções dele não eram boas, escolheram um caminho diferente para voltarem às suas terras.


Há quem diga que haveria ainda outro Rei Mago que ficou para trás no caminho, perdendo-se entre a procura do Menino e a ajudar necessitados, que lhe surgiam ao longo da jornada, com as prendas preciosas que levava consigo como presentes para oferecer ao Rei recém nascido. Sem que conseguisse encontrar os outros Magos e nem o seu olhar alcançasse mais a Estrela de Belém, passaram-se muitos anos até encontrar Jesus, só aquando da Sua crucifixão e morte; aí vindo a saber que O tinha encontrado durante toda a sua vida, nas pessoas a quem tinha amorosa e generosamente ajudado. 

Não sei o seu nome. Mas, quem sabe, esse Mago viesse a inspirar um velhinho de barbas brancas a quem chamam agora Pai-Natal?...
 

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