01/03/2024

Sombras I

O tempo convidava a um mergulho naquela água reluzente. Mas o calor escaldante que se fazia sentir desenhava-se numa capicua de sofrimento. Caminhando pela beirinha da piscina, puxando pela mão o seu irmãozinho que ainda mal andava, o menino procurava desesperadamente com o olhar. No bolso, a chave de casa - uma mansão antiga, grande demais para dois meninos sozinhos. O pequenino chorava, ora caindo, não conseguindo acompanhar o passo agitado do irmão, ora sendo arrastado e obrigado, pelo mais velho, a levantar-se. A criançada ficou curiosa perante o espectáculo, e alguns adultos pareciam temer que os dois pequenos caíssem à água. Que se passaria com estes meninos que destoavam daquele ambiente? Infrutíferas buscas causavam cada vez mais desânimo neste menino de olhar cansado e fugidio. Havia já duas noites e dois dias em que tudo se resumia a uma espiral de angústia devastadora. Não a encontrava nos locais de lazer, que tão bem conhecia, habituado que estava a que ela os lá levasse. Procurara-a e não a encontrara. Urgia, agora, repensar a estratégia, antes que o desalento e o pânico se instalassem por completo. Sentado na soleira da porta da igreja, esperava. Talvez uma luz divina o iluminasse. Então pareceu-lhe que um anjo lhes falhava. Respondeu às suas perguntas como se o céu os tivesse vindo socorrer. Tinha necessidade de confiar em alguém. Contou tudo. O que acontecera, as suas inquietações, os seus medos e o como já não sabia mais que fazer para calar o irmãozinho. Aquele anjo bondoso tranquilizou-os e até conseguiu que o pequenino adormecesse. Escutava inebriado aquela voz melodiosa que lhe respondia serenidade e esperança. Então pôde acalmar um pouco, recostando-se de encontro ao seu peito, fechando os olhos, sentindo pousar em si a sombra das suas asas delicadas.

29/02/2024

A Casa dos Ratos 8

 (anterior)

Toda a quadrilha tem um chefe. E eles eram quatro – adiantou-se o vermelhinho: “Eu sou o chefe! Vamos lá, que se faz tarde!” 

E aí vão o Vermelhinho, o Azulinho, o Verdinho e o Amarelinho numa desfilada apressada em fila pelo carreiro, no desfiladeiro do túnel a desembocar numa fresta, alargada pelo Tonecas de tanto por lá remexer. E uma luz lá ao fundo brilhava para eles, que já a estavam a ver. Mas são os olhos do Gato que brilham tanto no escuro na ânsia de os comer. Um sobressalto. Um salto. Um “Alto!... Para trás!... que está ali o rapaz!”
Tiveram de recuar e esperar por melhor oportunidade. 

O Tonecas percebera que tinham tentado fugir. Ficou mais alerta, mas à futrica. Desejava-os há tanto tempo que temia que lhe escapassem sem lhes conseguir tocar. Disfarçou, fechou um olho e abriu outro, espreitou pelo buraco, esperou, esperou, esperou, eles haviam de vir. Fingiu um sono profundo. E adormeceu... e acordou e… 

...é agOora! Deu um salto estendendo as mãos e… 

Quase, quase!... por um triz. Ao lado do seu nariz.

Caramba! (meneou a cabeça), como foi possível?! Estava apardalado... Tinham passado rapidamente debaixo dos seus bigodes, caladinhos como só ratos, que só viu o rabo do último. 

Ainda correu, esbracejou, procurou, fungou, miou, qual quê? Agora?! Muito tarde e a má hora! Já deviam ter-se alojado nalgum canto bem escondido. Ah, como lhe tinham apetecido, como lhe apeteciam ainda, que nóia! Cabisbaixo e atordoado retirou-se, já nada havia a fazer, melhor seria agora esquecer. 

17/02/2024

A Casa dos Ratos 7


O Tonecas andava de trombas, como se fosse mau. 
Tinha-se fascinado com os rituais de acasalamento do par de andorinhas empoleiradas no estendal do telheiro, mas já estava a ficar farto. Eram cantorias para um lado, cantorias para o outro, pulinhos daqui para ali, dali para aqui, mais um pequeno voo para acolá, e depois mais outro para acolí, só visto! E, então, as melodias eram cada vez mais elaboradas, e ele não gostava nada de se ver como “segundo violino”, ainda por cima desafinado. Se era para andar nessas vidas, melhor seria não aprender a voar. Ná, ele não tinha jeito para isso. Gostava de ser o dono da situação: de lançar os seus longos miados, naquelas noites de luar de Inverno, em cata de alguma fêmea das redondezas; e ao sol da Primavera queria era caçar. Pássaros de telhado, pardais e ratinhos dos campos, ratinhos do celeiro… ratinhos! ah, os seus ratinhos da gaiola… como se esquecera deles?! Aquelas andorinhas tinham-no tirado do sério. 
Avançou por cima do telhado, lançando um último olhar, como um adeus, àquelas esganiçadas aves, que tanto o tinham feito sofrer, e desceu pelo poste que segurava o telheiro.

Foto

08/01/2024

Espírito de Natal IV


(continuação de Espírito de Natal III)

O ambiente em casa era de cortar à faca, disse-lhe. Contou-lhe tudo enquanto as lágrimas lhe escorriam grossas pelo rosto abaixo e até os soluços lhe cortarem as palavras. Queria salvar a sua família. E salvar-se a si de morrer afogada nela e com ela.
Mas uma assistente social não tem receitas milagrosas para solucionar todos os casos que lhe são colocados. Não há comprimidos para isso. Poderá, eventualmente, algum placebo fazer efeito, mas não sob a forma de qualquer pílula. Por isso não era assim tão fácil actuar. Cada caso é um caso. E este era um caso complexo que iria, muito provavelmente, requerer a intervenção de uma equipa multidisciplinar. Mas para que viesse a haver sucesso todos se teriam de dispor a colaborar. Uma ajuda só é eficaz se sentida de dentro como uma necessidade. Porque ninguém pode ajudar quem não quer ser ajudado.
Havia, pois, que identificar causas, ir ao fundo da questão, e trabalhar em conjunto no sentido de as eliminar. Mas, até lá chegar, o caminho poderia ser longo. As verdadeiras causas poderiam estar camufladas debaixo de várias camadas de pó que lhe tivesse assentado em cima, e que seria preciso remover antes. Uma limpeza, uma lavagem de balde e esfregona com o detergente adequado. Só que, à mistura com o pó acumulado pode haver manchas e nódoas difíceis, ou mesmo impossíveis, de dissolver. Algumas visíveis a olho nu, outras nem tanto. Uma gravidez; uma depressão; um comportamento adicto: toxicodependência, alcoolismo, vício do jogo... e outros. Um círculo vicioso de causa/consequência: uma pescada de rabo na boca. Uma cadeia que é preciso quebrar. Assim haja a força necessária para isso; e se esta não existe há que criá-la, senão nada feito.
Para já, era preciso haver ali uma intervenção a nível psicológico no sentido de avaliar situações particulares. Há problemas que não podem ser olhados de cima, de ânimo leve; e no que toca a problemas de comportamento humano, então, nada é simples nem linear. A complexidade da mente humana leva a que a capacidade de encarar as situações seja diferente de pessoa para pessoa. Além disso, há todo um mundo à volta, a fazer das suas, como camadas de folhas de jornal envolvendo uma marmita, mantendo-a aquentada. Se não se desembrulhar o pacote, o cozinhado vai-se conservando, durante algum tempo, com alguma temperatura, que nem sempre é a ideal: nem é quente nem é fria. Por conseguinte, emergir ou não de uma situação problemática ficará a dever-se a uma simbiose de factores internos e externos à pessoa.

Maria percebeu isso. A esperança mantivera-a, e ainda a mantinha, à tona. E a oração, mastigada com essa esperança, tinha povoado aqueles seus dias que se queriam de festa e alegria, mas que de amarguras se fizeram. E porque nenhuma luz conseguira romper o escuro em que a sua família se encontrava, precisava de mais ajuda para transformar a esperança em resultados visíveis à luz do dia. Sabia que Deus faz milagres através das mãos humanas. Afinal, não foi por acaso, nem em vão, que Ele se fez Homem para vir ao mundo onde habitam os homens. Ele tomou em si a natureza humana para que os homens se possam curar do mal que os enferma. Podia ter-se limitado a ser o Deus que era e a actuar no mundo conforme quisesse. Estenderia a Sua mão poderosa e tudo poderia acontecer, unicamente, consoante a Sua vontade. Mas isso seria coarctar a liberdade do ser humano, e Ele quer que os homens mantenham a capacidade para agir livremente. É claro que isso também os leva a muitas escolhas erradas, que causam prejuízos aos próprios e aos outros. Tinha sido o que acontecera ali. Escolhas erradas tinham-nos levado àquela situação complicada.

Mas se Deus permite que se caia, também pode fazer conjugar diversos factores a nosso favor para nos conseguirmos levantar, se estivermos voltados no mesmo sentido. Há uma história que fala de alguém que todos os dias rezava insistentemente a Deus para ganhar a lotaria. Até que um dia Deus se resolveu a responder-lhe: a minha parte será feita quando tu fizeres a tua; não podes querer que te saia a lotaria enquanto não comprares primeiro o bilhete.

Maria entendera que as mãos são tanto para se elevar em oração como para se deitar a uma luta que é preciso vencer.
E, assim, com a força de Deus e  um trabalho em equipa, no próximo Natal o espírito de Natal haveria de regressar.


(Continua em Tempo de Acácias em Flor I)

18/12/2023

A casa dos ratos — intermezzo (7.1)


Deitou-se ao pé da gaiola dos ratinhos, como quem estivesse à sombra, como se ela fosse um porto de abrigo que o protegesse de raios abrasadores e de outros incómodos tais quais pragas rogadas, assombramentos ou pavores.

Mergulhou numa nostalgia letárgica e assim se deixou estar tempos infindos, sem sequer se lhe ouvir um ronrom. Parecia que o seu mundo tinha parado ali. Estava cansado. Cansado de correr atrás de quimeras, e os ventos sempre contrários. Pobre bichano, como até a um gato a vida pode fazer negaças!

Inspirou fundo e soltou depois o ar num suspiro soluçado. Agora não queria nada, mais nada, nada mesmo. Só um vazio sossegado. Enroscou-se mais, escondendo a cabeça debaixo das patas dianteiras, e deixou-se ficar, sem desejo algum.

Não tardou muito que o arrulhar de uma rola lhe viesse perturbar o inconsciente. Ah, as rolas! Meninas bonitas, as malditas, sempre com os seus rucrruu rucrruu a chamá-lo! E ele a começar com água a crescer-lhe na boca. E o rucrruu rucrruu a aproximar-se, e ele, pata ante pata, cada vez mais perto… um pulito sorrateiro e zumba! A mordida no pescoço foi certeira e fatal. Abraçado a ela, sorveu o sabor meio salgado que lhe escorria por entre os dentes, cuspiu as penas, fungou… acordou. Soube-lhe bem. O sonho viera dizer-lhe que tinha que voltar à caçada, porque gato que é gato não fica assim apático e desanimado.

Agora ia poder dormir o seu sono solto, de olho naquela fresta da gaiola.

(continua)

16/12/2023

A Casa dos Ratos — intermezzo (6.1)



Depois de muito matutarem cada um para seu lado, os ratinhos reuniram-se enroscados no ninho e guincharam uns aos outros o que cada um tinha pensado. Era preciso encetar a fuga: consenso, veredicto!
Havia de ser bonito! Assim não podiam continuar! Era mais que altura de passar o pé, marchar!

Era hora, agora, de orquestrar uma estratégia com pés e cabeça, para que a evasão fosse bem sucedida, pois estavam fartos de sonhar com uma vida livre, mas a verem-se atados de pés e mãos, sem se atreverem a pôr pé em ramo verde.
Então, com o pé no estribo, mas de pés de lã, que é como quem diz: pé ante pé; e a pé firme, haviam de dar com os pés àquela vida que lhes tinham imposto do pé para a mão. Com muito cuidado, sem pôr os pés na argola, quer dizer: não podiam perder o pé, nesta altura de pôr-se em pé e agir! Fugir, pois, é a única solução, bater o pé ao patrão; ele que pensara protegê-los, mas os tinha aprisionado fazendo deles diversão.
 
Se bem o ditaram, melhor o haviam de fazer.
Era só procurar algum ponto mais fraco na gaiola e roer. Alargar uma fresta e, ala!, zarpar!
Lá fora haveria um largo mar, uma praia, uma casa grande a explorar. Oh, música para os seus finos ouvidos! Já se viam todos idos, à larga, no bem bom e bem bebidos.

04/12/2023

A molha


Os pingos grossos de chuva levantaram o cheiro a terra molhada. 

A manhã acordara suavemente, com ténues raios de sol a espreitar por entre as nuvens que anunciavam a primeira chuva do Outono. Esperá-la tornou-se em ânsia crescente à medida que ela mais se fazia adivinhar.
E ela, então, espreitou ao longe. Observei-a a começar, para lá do arvoredo, a pintar tudo de branco até chegar aqui. 
Primeiro um pingo. Logo outro e outro… e o cheiro a terra molhada a elevar-se com a suavidade e doçura de um chupa-chupa, que apetece saborear devagarinho. 
Chamei-a, “vem chuva, vem!...”, e ela não se fez rogada. Veio lamber o alpendre de um lado ao outro, enquanto eu, com uma vassoura, a ajudava a poli-lo de um brilho molhado apetecível, removendo a sujidade à sua frente. De pés descalços na água morna, cabelo e roupa a escorrer, senti-me a brilhar mais do que o alpendre. Toda eu era riso por dentro e por fora, feliz por poder apalpar o Outono que me beijava. 

Agora, depois de ter ouvido das boas da mãe e de mudar de roupa, olho-o da janela, de cara encostada ao vidro embaciado. O Outono e a chuva podem ser sonhos quentes que molham o rosto e embalam a alma. A mãe, sempre tão azeda e fria, sabe lá alguma coisa disso!

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