25/09/2023

A Casa dos Ratos — intermezzo (6.1)


Depois de muito matutarem cada um para seu lado, os ratinhos reuniram-se enroscados no ninho e guincharam uns aos outros o que cada um tinha pensado. Era preciso encetar a fuga: consenso, veredicto!
Havia de ser bonito! Assim não podiam continuar! Era mais que altura de passar o pé, marchar!

Era hora, agora, de orquestrar uma estratégia com pés e cabeça, para que a evasão fosse bem sucedida, pois estavam fartos de sonhar com uma vida livre, mas a verem-se atados de pés e mãos, sem se atreverem a pôr pé em ramo verde.
Então, com o pé no estribo, mas de pés de lã, que é como quem diz: pé ante pé; e a pé firme, haviam de dar com os pés àquela vida que lhes tinham imposto do pé para a mão. Com muito cuidado, sem pôr os pés na argola, quer dizer: não podiam perder o pé, nesta altura de pôr-se em pé e agir! Fugir, pois, é a única solução, bater o pé ao patrão; ele que pensara protegê-los, mas os tinha aprisionado fazendo deles diversão.
 
Se bem o ditaram, melhor o haviam de fazer.
Era só procurar algum ponto mais fraco na gaiola e roer. Alargar uma fresta e, ala!, zarpar!
Lá fora haveria um largo mar, uma praia, uma casa grande a explorar. Oh, música para os seus finos ouvidos! Já se viam todos idos, à larga, no bem bom e bem bebidos.

23/09/2023

Mundo insinuado

A cidade cheira a mar. Sim... e ouve-se o mar de encontro à areia...
Acho que me vou cá sentir bem.

- Tens de tirar a roupa. - Desperta-me o homem de bata branca.
Olho-o surpreendida a tentar compreender.
- Tenho de te observar. Pesar, medir...
Hesito e olho à minha volta. Não é nada agradável despir-me aqui. Não é que esteja frio… não é isso. Esta sala, no primeiro andar, até que está quente, com o calor do sol que entra pela janela. É que sinto vergonha…
“Caramba! Para vir para o colégio é preciso isto?” Vou pensando enquanto, a custo, começo a tirar a roupa. Fico só de combinação… e cuecas, e tremo de acanhamento. Ao menos se a mãe estivesse aqui… mas não. Ela nunca quis saber de nada. É sempre o pai para tudo…
Inspiro profundamente e ganho coragem. Afinal de que me vale tremer? Ainda só se está a insinuar esta nova vida a que vou ter de me adaptar. O pai decidiu assim… e eu não me importo, acho mesmo que irá ser bom.
- Pronto! Agora podes vestir-te. – Diz o médico, depois de me ter pesado e medido, e ter colocado, repetidas vezes, um aparelhinho em contacto com as minhas costas e peito, ao mesmo tempo que me mandava respirar com força outras tantas vezes.
- Tens que comer mais um bocadinho para não seres tão magrinha. – Acrescenta ele, a sorrir para mim.
Encolho os ombros ainda meio envergonhada e não digo nada. Não sou de falar muito. Mas o pai é todo cheio de amabilidades para com o senhor doutor. Ele fala por ele e por mim.
Quando chego à rua inalo, finalmente, aquele apetecido aroma a maresia, que me faz sentir leve e esquecer o desconforto que passei lá dentro.
Liberto-me, por agora, deste mundo entre grades, desconhecido para mim, mas que começo a ficar inquieta por provar.

(Publicado em livro: Memória Alada, 2011)

21/09/2023

A Casa dos Ratos 6

(anterior)

Os ratinhos cresceram. E começaram a olhar com maior insistência para o lado de fora. Algumas vezes mordiam as grades com uma certa esperança de as conseguirem desfazer. Mas os seus dentinhos não eram tão fortes assim que roessem aquele material, só faziam barulho naquelas malditas grades. E chiavam uns com os outros, mas eram chiados finos, quase gritos mudos a que os ouvidos dos donos não davam importância. Estes pensavam que eles se andavam a divertir, quando o que eles faziam era ralhar e lutar uns com os outros de tão descontentes que se achavam. É que, por vezes, até se acabava a comida, pois a dona ainda não se apercebera bem de que eles tinham crescido rapidamente e que precisavam de maior dose de alimento. Isso era um inferno. E sonhavam alto com outra vida lá fora. Os olhos daquele gato-guarda não andavam por perto havia alguns dias, talvez ele se tivesse cansado de os espreitar ou tivesse tirado uns dias de férias. Quem sabe, seria uma boa altura para pôr em prática um plano de fuga… mas eles ainda não tinham arranjado um plano. Agora começavam a perceber que estava mais do que na hora de pensarem a sério nisso.

(continua)

20/09/2023

A Casa dos Ratos 5

(anterior)

Elas chegaram, alegres e cheias de graça. Distraiu-se, o gatarrão, dos afazeres a que se tinha apostado. Vigiar os ratinhos cansava, e agora aquela música era-lhe familiar e querida, embora os seus ouvidos, treinados, não a ouvissem há muito. Ali estavam, naquela parte dos seus sonhos, as melodias de que mais gostava – os belos trinados das andorinhas. Tinha-lhes sentido a falta durante o Inverno, muito embora os ratinhos lhe tivessem vindo aplacar um pouco o vazio dessa perda. Só um pouco mesmo, porque ainda não lhes conseguira deitar as garras, o que o andava a deixar ansioso. 

Agora ali estavam elas a gozar o sol, encavalitadas nos fios telefónicos que sobrevoavam o pátio até à parede da casa. Trepou avidamente o poste de suporte da alpendorada até ao telhado, para as fitar mais de perto. Eram duas, e as canções que cantavam enfeitiçaram-no como cantos de sereias. Ah, maviosos tons! Que maravilhosa cor e aroma delicioso que o sol lhe vinha trazer! Bendito sol, bendito céu azul onde moravam os seus sonhos. Um dia ainda haveria de voar como elas…

(continua)

19/09/2023

Prova final

Hoje foi o meu exame da quarta. Não foi na minha escola, mas numa da sede do concelho, ao lado da Casa da Criança, onde está uma estátua dum rapazinho a tocar uma trombeta longa.
De manhã, uma prova escrita parecida com as que estava habituada a fazer e, de tarde, a oral. Não achei nada difícil, pois correu-me muito bem. Não dei erros no ditado e acertei todos os problemas. Fiquei aprovada, claro, nem outra coisa estava à espera, depois de tanto esforço despendido! Fiquei a saber que um dos professores é amigo de um dos meus irmãos, pois quando ele viu o meu nome, perguntou-me se eu seria a sua irmã. E conheci uma menina, a Joana, que me disse que ia estudar para o Ciclo e me perguntou se eu também iria. Respondi que não sabia, que o meu pai é que mandava. Então ela insistiu com o meu pai e ele disse que ia pensar no assunto. Estou com esperança de que ele me deixe ir, uma vez que já lá teria uma amiga.

No fim da oral o pai trouxe-me ao parque infantil.
O parque infantil fica no jardim da Várzea e é muito bonito. Tem canteiros de flores no meio de grandes relvados e é coberto de grandes árvores que fazem sombras fresquinhas. De um dos seus lados corre o rio que passa debaixo da ponte.
É a primeira vez que me aventuro no escorrega e nos cavalinhos de roda. Um baloiço, esse já tinha experimentado. Os manos fizeram-me um, na figueira ao pé da eira, e posso balançar-me nele, sempre que me apeteça, durante as tardes depois da escola, desfrutando da sombra da árvore, enquanto me delicio a observar os pardalitos que trabucam nos seus ramos.
Um após outro, experimento os brinquedos novos, entranhando os pés na areia, com a sofreguidão de querer eternizar estes momentos, neste lugar que me parece ser o remate de uma etapa e, ao mesmo tempo, me indicia um universo por descobrir.

18/09/2023

Neblinas IIII

Estou de volta aos bancos da escola, mas agora a realidade é um pouco diferente. Todos os meus desejos e anseios se resumem a apanhar os colegas na matéria dada e a que eu não assisti. Nada seria mais frustrante para mim do que o não conseguir fazer a quarta classe. Nem os risos de zombaria dos colegas, perante o meu rosto de palhaço, me conseguem tornar numa criança excluída. É verdade que a minha cara ainda não está curada. Ainda está feia, pintada de vermelho, com algumas feridas que ainda exigem curativo. Mas nunca pensei que os colegas pudessem fazer troça de mim por causa disso. Mas fazem. Sou o alvo da chacota deles. Divertem-se assim à minha custa. Mas não faz mal. O meu mundo de fantasias vê apenas crianças sorrindo, quais marionetas manipuladas por homenzinhos, a dançar em torno de versos imaginários. Ultrapasso, assim, todo o contexto da dor causadora de algum desequilíbrio. Fecho os olhos da alma ao frio e à miséria em que me poderia ver envolta e chego, rapidamente, por etapas sucessivas, de um ponto a outro quer na Gramática ou na Escrita, quer na Geografia, na Aritmética ou na História. Bem, na História nem tanto, mas na Aritmética ninguém me supera!
Nesta altura, por muito que me perturbe o meu inglório aspecto físico e o medo da rejeição, mesmo com crises de choro e de algum isolamento, os meus pensamentos procuram outras coisas que me fazem sentir bem: os dentes brancos sem cáries, os cabelos loiros e fartos e a natural inteligência. A minha inteligência, esta sim, é para mim o maior motivo de satisfação. É ela que me permite ultrapassar todos os obstáculos e dar uma volta completa aos contratempos.
Os colegas hão-de acabar por perceber que o meu aspecto exterior não me afectou por dentro. Pois, muito embora me fiquem as cicatrizes, as neblinas, essas, estão agora nos colegas e não em mim!

02/09/2023

A Casa dos Ratos — O Gato Tonecas


Esta casa tem um gato, ai ai ai que feio gato:



Nome: Gato Tonecas

Sexo: Masculino

Idade: 3 anos

Aspecto físico: Grande, gordo e feio, de grandes malhas pretas e algumas brancas, com pêlos sensores brancos nas costas, espetados por entre as malhas pretas; céu-da-boca preto; olhos amarelos; bigodes grandes e fartos. Faz lembrar o Gato Malhado da Andorinha Sinhá.

Qualidades: Caçador de sonhos; educado: não sobe à mesa nem aos armários, dá uma volta pela cozinha e pelo resto da casa se alguma porta interior estiver aberta e, se não vir ninguém, volta a sair; atento e observador.

Defeitos: Também caçador de pássaros; mandrião: estende-se ao sol no alpendre, ou enrosca-se na sua cama improvisada lá num canto; é curioso e guloso.

Medos: Tem medo da dona.

Passatempos: Gosta de saltar de telhado em telhado, deambular pelos quintais e, quando lá lhe parece, às vezes passados dias, é que regressa para casa trepando o muro alto do pátio.

Aqui há gato!


30/08/2023

A Casa dos Ratos 4

(anterior)

Os ratinhos na sua gaiola
Vão brincando e vão sonhando
Que um dia, não sabem quando
Mas um dia, qualquer dia
Hão-de roer e roer
Ou esticar, ou encolher
Mesmo a muito doer
E passar
De dentro para o outro lado
Debaixo dos bigodes do gato
Que os vigia deitado
Dolente e anafado
À espera de os caçar.
Desengane-se o gatarrão
Que não. Bem pode esperar sentado.

Da prisão à liberdade
Há grades com frestas estreitas
Que os separam do mundo

Aqui têm o que comer
Túneis por onde correr
Camas fofas e quentinhas
E enfeites ao pescoço
E lá fora o perigo espreita
Mas isto de se ser rato
Tem muito que se lhe diga…

Não é com fitas e laços
Nem com uma qualquer espiga
Numa gaiola bonita
Que se prende um ratinho.
A ânsia de aventura
Da frescura da noite ao luar
De liberdade e tontura
A roer o seu belo manjar
Será sempre o que perdura
Para lá de qualquer fechadura
Que teime em o agarrar.

(continua)

29/08/2023

A Casa dos Ratos 3



As fitinhas coloridas iriam dar o nome aos ratinhos. Assim que Bia lhas pusesse ao pescoço os ratinhos já não seriam só ratinhos, mas sim: Verdinho, Amarelinho, Vermelhinho e Azulinho. E isso seria assim que mudassem para a gaiola nova que teriam.

Quem quer admirar os belos ratinhos,
Tão lindos e enfeitadinhos,
Com as suas fitinhas de cores?

Será então que o gato Tonecas,
Se vai perder por eles de amores?

No dia seguinte, quando a Bia acordou, a primeira coisa que fez foi retirar a tampa do cesto e servir aos bebezinhos miolo de pão embebido em leite – o seu biberão – (isto de criar ratos a biberão pode causar alguma confusão), é que os coitadinhos ainda eram de mama. Mas Bia, daqui a pouco, quando fosse comprar-lhes uma gaiola a uma loja de animais, iria trazer-lhes um pacote de comidinha adequada para ratinhos.

Na loja de animais, Bia deslumbrou-se com um mundo de bichinhos e coisinhas para eles. Foi difícil a escolha de uma gaiola, tanta era a oferta: de várias cores, de vários materiais (de vidro, madeira, plástico, metal), vários tamanhos e andares, vários acessórios… ena!
A gaiola que acabou por escolher, depois de se aconselhar com o simpático empregado, é de um material plástico multicolorido, de três andares com três escadinhas; tem duas casinhas, um comedouro e um bebedouro; tem também duas rodinhas de exercício e dois túneis. Será o sonho (ou o pesadelo) dos ratinhos. As escadinhas para trepar, as rodinhas e o túnel servirão para eles se divertirem. Os ratinhos gostam de explorar e o exercício só lhes fará bem.
Comprou algodãozinho de uma fibra adequada para as camas nas casinhas; palhinha de erva aromatizada para espalhar pelo chão e também serradura granulada absorvente para neutralizar os odores; e não podia faltar a comida: uma mistura de grãos de vários cereais, sementes e ração com vitaminas. Disseram-lhe que lhes pode dar também legumes, verduras e frutas; e que deve limpar a gaiola todas as semanas para evitar os maus odores e não atrair formigas, nem os bichinhos apanharem doenças.

Quem quer admirar os belos ratinhos,
Tão lindos e enfeitadinhos,
Numa gaiolinha a brilhar?

Ai! Será agora que o gato Tonecas,
Desistirá de os caçar?

Bia pegou num animalzinho com cuidado para lhe pôr a fitinha ao pescocinho. Esta não podia ficar muito apertada, mas também não muito larga para não cair. Sentiu algum receio de o magoar, mas verificou que o Vermelhinho ficava bem-disposto (e bonitinho!); e assim também o Verdinho, o Azulinho e o Amarelinho, que Bia acomodou no seu novo ninho.

28/08/2023

A Casa dos Ratos 2.2


O gato Tonecas, caçador de pássaros e de sonhos, espreitou, espreitou, mexeu e remexeu no cesto, subiu-lhe para cima, aflito por desencantar de lá a ninhada, até que o tombou.
A dona, na cozinha, ouviu e acorreu em socorro dos indefesos.
— Malandro! Isso não se faz aos meninos, seu atrevido!
— Miau… miau!... – como quem diz “não sou culpado”, ficou ali a observar a dona a compor aquela cena tão estranha.
Frustradas as intenções do bichano, que não teve outro remédio que não o de conformar-se (conformar-se não, que ele era lá rapaz para se conformar!... eles não haviam de perder pela demora!), Bia aconchegou os ratinhos no seu ninho, vedando bem o cesto, ao mesmo tempo que repreendia o Tonecas, passando-lhe, depois, a mão pelo pêlo:
— Não se mexe aqui, ouviste? Uns bichinhos tão lindos e o menino com apetites? Ai, ai, ai!...
O Tonecas fingiu-se obediente e, amuado, ficou por ali como que a tomar conta deles. De vez em quando parecia lançar-lhes uns olhares de irmão mais velho, mas longe de se enamorar pelos ratinhos, estudava alguma forma de os meter para o bucho.

Enquanto isso, a dona foi procurar, na sua caixinha de costura, umas fitas fininhas de cores, que tinha comprado há uns tempos para uns trabalhos que não chegou a fazer. Vinham mesmo a calhar: verde, amarelo, vermelho e azul. Também havia uma fita branca e outra cor-de-rosa, mas rejeitou essas cores por lhe parecerem muito femininas… e não sabia ainda se entre os seus bebés havia meninas. Amanhã iria comprar uma gaiola apropriada para eles e enfeitá-los-ia, cada qual com o seu lacinho de seda colorida ao pescoço, para ficarem janotas. Ah, eles haviam de ficar medonhamente lindos com os seus lacinhos coloridos!
Esperava que, assim, o Tonecas os visse com outros olhos, que, afinal, eram coisa fina, intocável, e tirasse deles o sentido como petisco.


poderá também gostar de:

Mais Rabiscos