08/02/2025

Arte(lharia)

- Isto mais parece um SALSIFRÉ, saído de uma qualquer FÁBULA ESCAGANIFOBÉTICA! Assim disparou dona Prazeres, toda finesse, de braço dado ao seu NOVO namorado, enquanto percorriam a galeria. 
- Não gostas, minha querida? – Pergunta-lhe o namorado, com o sorriso a esmorecer-lhe nos lábios. 
- Não! E não vais QUERER que eu diga que gosto, só para te fazer o jeito! 
Luizinho sentiu-se à DERIVA, a ficar sem pinga de sangue. Tinha preparado a exposição com tanta PAIXÃO, com tanto amor e dedicação… e agora… agora o resultado era esta insatisfação! 
- Estás a mangar… não vês que isto é arte, minha querida?! – Refere ainda com alguma exaltação. – Um estilo de arte muito SINGULAR! 
- Arte? Chamas arte a estas esborratadelas, a estas bacias cheias de mazelas, a estes cacos espalhados pelo chão? 
O namorado, coitado, a sentir-se mal-amado, não queria acreditar neste AUTÊNTICO descalabro. Ele que pensara fazer-lhe uma surpresa, daquilo que, para si, constituía uma proeza, e ficava agora mudo e quedo, debatendo-se entre o argumentar e o encolher-se num canto a chorar. Ele bem sabia como a dona Prazeres era difícil de contentar… mas ainda pensara em fazê-la RENASCER com a sua arte… talvez que nisso ela pusesse um LÍMPIDO olhar. Mas, qual quê? O seu SUPREMO mau feitio tinha que dar o seu sinal! E foi isso que fez com que a coisa azedasse e tivesse corrido mal. Mas então, o Luizinho, longe de estar resignado à sua sorte, replica-lhe num rasgo audaz: 
- Pois olhe, minha querida, não é assim que se conquista o coração cá do rapaz!
(Mais um texto das 12 Palavras - 10.º jogo )

07/02/2025

A rede


Há uma rede de arame enleado, pregada em estacaria por cima do muro; caída a certo passo, em certo tempo derrubada, e a par e passo pisada. É uma vedação que nada veda: nem vento, nem maresia, nem tempo, calor ou invernia; nem vegetação, pássaro, insecto, luz da noite ou do dia; ninguém. 

O tempo vem empurrado pelo marulhar ao encontro da praia e parece ir, dolente, levitar nas asas das gaivotas que não param de dançar, suspensas, lá em cima, num céu acinzentado, meio doente, meio enfarruscado. 

A rede delimita o olhar de um ao outro lado – fora e dentro, só olhar. De fora, atrás, o mar; do outro lado, lá dentro, o tempo custa a passar. De fora, os olhos só vêem a espera, pesada, a arder. 

Por um pouco de tempo, o olhar esqueceu-se de se envolver, semicerrou-se, cansado de pestanejar; e o tempo suspendeu-se, amarelo, na ponta de uma estaca onde a rede se queda, senhora de si, empertigada, enviesada, salpicada da maresia demorada…
 
Dali a outro pouco tempo, do nada, bateu o sol ao atrever-se a espreitar. Um ar de graça que, quer se queira ou não queira, de qualquer maneira, passa. Portanto, sol de pouca dura (e ai, a fome… que ninguém a atura!). 

Mas o tempo é para comer e estar. Porque, do lado de dentro da rede, há outra rede que faz o tempo tardar.

06/02/2025

 À descoberta


A luz que se escapa pelas frinchas da porta do quarto não chega ao quarto dos pais, que fica no outro extremo da casa. Por isso não corro o risco de ser surpreendida acordada.
Desse modo, devoro o livro, à luz do candeeiro, e nem dou pela noite passar.
Uma das vantagens de se ter irmãos, rapazes, mais velhos, é a de ter acesso a livros que, uma menina da minha idade, de outro modo não teria.
Durante o dia, com eles fora, dou por mim a vasculhar-lhes as prateleiras. Estas são uma tentação para a minha curiosidade. Paulo e Paládia, Amor de Perdição - arregalo os olhos - e tantos e tantos outros...
Vou levando um a um, que não descanso enquanto não leio o mais rapidamente que consigo.
A par da leitura, a imaginação vai voando para a terra dos sonhos e é como se flutuasse num balão colorido à procura do Arco-íris.
Já começa a clarear quando me proponho, finalmente, começar a dormir.
O chilrear dos passaritos é a música que me embala o sono...
[6]
(Publicado em: Memória Alada, 2011, pág. 18)

05/02/2025

Quase como ouvi contar

Na era do antigamente - em tempos magros, de fome, quando os meninos, mal saídos da parca mama das mães, cedo iam ser criados dos senhores mais abastados, a fim de poderem ter um pouco mais para a boca do que na casa paterna -, o pastorinho do rebanho das cabritas todos os dias levava os animais a pastar em roda da capelita de San Sadurninho. Na bolsa do farnelito, umas míseras côdeas de broa seca, que o seu amo lhe mandava para o dia inteiro.

A fome apertava, a broa era dura de roer, e o santo na capelita tinha azeite numa griseta para arder.
O rapazito, faminto, eleva uma côdea em direcção ao santo, como quem espera uma bênção que a transforme em manjar do céu.

 Ó mê xantinho xan Xadurninho vosmixê dá lixenxa que eu molhe aqui nha broa no xeu guijaujinho?

E o santo, como bem de ver, nada de responder!
E torna o moço:

 Ó mê xantinho xan Xadurninho vosmixê dá lixenxa que eu molhe aqui nha broa no xeu guijaujinho?

E o Santo parecia que era mudo... ou fazia-se.

 Mas vosmixê não ouve ou quê?... Ó mê xantinho xan Xadurninho, xantinho da nha devoxão, vosmixê dá lixenxa que eu molhe nha broa aí, aí, nexe ajeitinho dexe xeu guijão?

E resposta, nenhuma!

 Ai vosmixê não responde? É porque quem cala conxente! Poix atão eu molho, e hei-de molhar e xopotear!

E assim, todos os dias, o coitadinho condutava a magra e seca broa com o azeite do santinho, que foi até ao lamber do acabar.

17/01/2025

Lado negro

(reposição)

Mais uma alta de mais um internamento.
– É desta, Tó? – Perguntei-lhe quando o fui buscar.
– Sim, é desta. – Respondeu.
Se eu pudesse acreditar nisso! Queria tanto acreditar! Mas, decididamente, não me parece que vá ocorrer mudança no seu comportamento. Até porque o seu aspecto e a sua voz o denunciam. A droga e a delinquência encontraram nele poiso.

Encontrei-o, ainda nesse mesmo fim de tarde, na igreja. De pé, bem no meio, muito embrenhado com algo na mão… parecia um livro de cânticos, ou um papel… talvez uma carta ou oráculo do Santo Patrono.
Seria muito bom que esse reencontro com o espiritual lhe permitisse sair de lá iluminado por uma alva luz, com a qual pudesse desvendar o que constitui um mistério para ele, e que mais não é do que todo o seu tesouro, que enterrou não sabe bem onde, mas que se encontra dentro de uma caixinha envolta num papel colorido de bondade.

Mas não. A ida à igreja deve ter-se revestido de algum sofisma, disseram-me depois.
No entanto, custa-me pensar que possa ser assim. Preferia não ver as pessoas pelo seu lado negro, mas o receio de ser atraiçoada por algum paralogismo leva-me a não poder descartar certas possibilidades.
O lado negro muitas vezes leva vantagem.



11/01/2025

Tempestade Vendaval

Sobravam tempos a ameaçar. Céus nublados e semblantes. Desconsertos, sem concertos nem sinfonias. Danças em dó maior.

E chegou, viu e quis vencer.
Em cegueira que se apodera das fragilidades, e destrói em segundos o que levou anos a mal erguer.
Ela desce e rodopia, roda e pia, pia e roda. Enrosca-se e enrola. Rola, rebola, revolve e revolta, às voltas, às soltas, sem tento nem portento que lhe trave e freio; sem meio de remir o que largou ou o devir.

Tempestade vendaval desengonçada atravessa a praça e as ruas; as vielas mais escondidas; os jardins e as florestas; as aldeias preguiçosas e cidades buliçosas, desde o casebre mais tosco até ao palácio real; castiçais e candelabros são apagados num fôlego, sem dó nem piedade de plebeu ou divindade.

Tempestade furacão, fura gente, fura almas, desalmada, descompensada, destrambelhada, sem coração nem entranhas, que causa dores tamanhas, torturas, tonturas e desgostos; salta em rostos pregões aos quatro ventos, arrastando-se pela lama, destelhando até à cama, rodopiando à lareira, soprando pela boca faúlhas de fogueira. Invertebrada sai pelos mundos de qualquer jeito e maneira, sem jeito nem maneira, de soltura e caganeira. Garganeira.

Mas creio firmemente num só Deus que nos governa e vela; quando nos atravancam uma porta, Ele escancara-nos uma janela.

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