06/11/2025

Tatuagens Escondidas [4]


O mês de Novembro banhou-me de melancolia. Logo a mim, que até sou sempre tão alegre e tão sem problemas. O ambiente carregado dos dois primeiros dias, em que a vida girou em torno da morte, é que desencadeou esta carga negativa. De cada vez que penso em entrar no cemitério o mundo cai-me aos pés. Mas quis levar uma flor à avó; era o mínimo que podia fazer por tanto que ela foi para mim. Quando penso nela bate-me uma saudade tão grande!
Fui descendo a ladeira íngreme, em romagem com as outras pessoas, depois da missa, e, lá em baixo, lá estava aquele grande painel assombrado de casinhas e lápides brancas e cruzes, agora apinhado de gente, de flores e de velas acesas, que se podia ver cá do alto, brilhando por entre os muros caiados de branco, com um jardim de sicomoros na frente. Um local deveras assustador…
Embrenhada mais nesta visão fantasmagórica do que no coro de avé-marias, que se iam desfiando no cortejo encabeçado por duas lanternas e uma cruz ao centro, que luziam por cima dos olhares, levadas por três homens vestidos com umas vestes vermelhas de sangue, escorreguei nas pedras da beira do caminho e caí. Prontamente socorrida por quem ia ao pé de mim, larguei algumas lágrimas, mais pela vergonha do que pelas dores que sufoquei. Rasgaram-se as meias compridas, esfarrapei os joelhos que ficaram cravejados de pedrinhas e a sangrar, e quiseram obrigar-me a voltar para trás para ir à farmácia fazer um curativo. Mas teimei em prosseguir. A coragem tinha de se impor ao resto: tinha de deixar de ser a menina frágil e infantil que todos faziam de mim. Só no fim de levar a cabo o que ia fazer é que fui tratar das feridas.

Agora, pensando nisto tudo, lembro-me da canção que me faziam cantar sempre, em todo o lado, quando era pequenina, e a que achavam muita graça:

"Naquela linda manhã
Estando a brincar no jardim
A certa altura a mamã
Chamou-me e disse-me assim:

Não brinques só a correr
Tropeças sem querer
Depois ficas mal.
Respondi: pronto está bem
Mas antes, porém, esqueci-me de tal.

Não me lembro depois como foi
Escorreguei caí no chão.
No joelho ficou um dói-dói
No nariz um arranhão.
Desde então prometi ser melhor
De ser boa e ser feliz.
Faço agora tudo quanto
A mamã me diz."

Era apenas uma canção, porque reparo que não faço tudo quanto a mãe me diz. Já não sou a menina dócil que me querem. A rebeldia começou a apoderar-se muito de mim, juntamente com toda a melancolia que me envolve.

12 comentários:

  1. quando as emoções e as recordações se cruzam - o imaginário faz o resto...!


    .
    um beijo

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  2. Amadurecemos com a vida, crescemos perante a morte!

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  3. Olá Fá,

    Temos ver mais Além!
    E não estás só, ela permanece, permanece para lá da memória e haverá reencontro.

    abraço, IDA

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  4. Assim é, amiga: rebeldia e melancolia nos envolvem, à medida que o tempo transcorre. :) Boa semana!

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  5. Fá,
    É bom por vezes sermos rebeldes, sem nunca esquecermos que há momentos para tudo, e há aqueles em que temos que ser melancólicos, e devemos sê-lo. Não há nada como sermos genuínos, sermos nós próprios... sempre... e em todas as situações da vida.
    Bjs.

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  6. Amiga, Estou como tu. Este tempo cinzento e escuro faz-me sempre ficar melancólica e mais introspectiva.

    Sou como o tempo, ora alegre e contente, outra triste a acabrunhado.

    No entanto, até mesmo os dias cinzentos existem raios de sol e é neles que temos de ganhar forças para andar para a frente com um sorriso nos lábios.

    Podemos não ter tudo o que queremos mas devemos aproveitar tudo o que tempos pois existem pessoas que não têm a nossa sorte.

    Ao minimizar certas coisas encontraremos então, sempre motivos para voltar a sorrir. Bjs

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  7. *
    Gostei do Post, amiga,
    ,
    ainda oiço a tua voz:
    Era uma vez uma princesa
    no meio de um laranjal...
    Mas — tu sabes — a noite é enorme,
    e todo o meu corpo cresceu.
    Eu saí da moldura,
    dei às aves os meus olhos a beber,
    Eu vou com as aves, mãe . . .
    ,
    in-Eugénio de Andrade
    ,
    Emolduradas conchinhas,
    Deixo,
    ,
    *

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  8. "Nunca fazemos tudo quanto a nossa mãe nos diz" e só nos lembramos disso quando somos mâes e "os nossos filhos não fazem a maior parte do que lhes dizemos para fazer...2
    A Letra da canção é linda e cantada devia ser também muito bonita!

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  9. Estará a tua heroína a sair da infância a dar os primeiros passos na adolescência. Mas sempre com a segurança das tuas palavras...

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  10. ... gosto muito destas "Tatuagens Escondidas" que as entendo e leio como um diário a decoberto...

    Beijos.

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  11. Olá amiga, todos nós temos tatuagens escondidas, que só nós sabemos que existem. vai ao meu almarude.blogspot.com e verás do que falo. Beijócas querida amiga.

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  12. Continuamos a ter dentro de nós, a criança escondida pronta a sair...

    Beijinho,

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Truman Capote diz:
«Quando se trata de escrever,
acredito mais na tesoura do que na caneta.»...
Mas eu escrevo aqui por entre o imaginado e o sentido; e
«Entre meus rabiscos e minhas ideias há um mundo de sentimentos.» (Marcelle Melo)
.
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