27/05/2009

Pardais à solta



Não tenho jeito para a Educação Física. A nota mais baixa que tenho é a esta disciplina. Invejo as colegas que fazem saltos em comprimento enormes, que conseguem saltar muito alto, que no campo de jogos são as melhores. Eu sou das mais fraquinhas, se não a mais fraca mesmo. Não sei por que não consigo. Sinto-me mal comigo mesma por ser assim. Mas adoro a sensação de liberdade que a disciplina me dá. Quando nos juntamos todas, de equipamentos vestidos, parecemos um bando de pardais à solta no restolho de um trigal, a esvoaçar aqui, a pular acolá, a correr além…
Hoje, a nossa turma juntou-se à dos rapazes e fomos para o campo de futebol, que fica do outro lado da vila, já depois da ponte, onde o rio já é só um, depois de os dois se unirem um ao outro. Lá fomos, chilreando pelo caminho, em pequenos bandos. A nossa professora quase não nos dava atenção, tão entretida que ia com o professor da outra turma. Pelos vistos são namorados, pois iam sempre a conversar, muito juntinhos, todo o caminho. As colegas que iam no meu grupo disseram que duas meninas da turma, a Celeste e a Guida, também têm namorados, aqueles dois que vinham com elas lá atrás. Mas eu achei tão estranho… namorarem assim tão novos… será que estão mesmo apaixonados? Eu acho impossível… Como é que se se apaixona assim com esta idade?... Como será isso de se estar apaixonado? Eu acho estes rapazes tão criancinhas e tão sem jeito, que não me parece que seja capaz de gostar de algum, aliás, acho muito improvável que isso aconteça. Isso ainda não é para a minha idade. Não, não é isso que quero para mim... agora.

20/05/2009

As meias das cerejinhas

Ganhei, do pai, umas meias, até à curva da perna, com umas bolinhas penduradas de lado que parecem duas cerejas. Há que tempos que eu as desejava. Já tinha sorrido para elas... e elas para mim, através da montra. Até já tinha começado a poupar para elas, deixando de comprar daquelas farturas deliciosas, polvilhadas de açúcar e canela, que a dona Mariazinha vem vender ao portão do colégio, e também das saborosíssimas sandes de fiambre fininho, que eu nunca tinha provado na vida antes de vir estudar para a vila. Mas hoje o pai comprou-me as benditas meias. Comprou porque eu as ganhei. Foi a minha recompensa por ser uma menina corajosa.
Às vezes tem que se ser corajosa à força. E foi o que me aconteceu no sábado passado, à tarde. O pai levou-me com ele a Coimbra… quer dizer, não levou, ou melhor, não chegámos lá, porque o carro avariou pelo caminho. E aqui entra a minha coragem forçada: o carro ficou na beira da estrada comigo lá dentro, enquanto o pai foi procurar ajuda.
Disse-me que tinha que ficar ali porque não me podia levar, que ficasse sossegada, sem medo, que depois me compraria uma coisa. Pediu a um cantoneiro, que andava ali a limpar as valetas, que fosse olhando por mim e pelo carro, e apanhou boleia à procura de um mecânico. Fiquei ali, a contar os carros que passavam, até lhes perder o conto, e a olhar o senhor a raspar a ervas com a enxada, vendo-o ir-se afastando a pouco e pouco. Uma vez ele veio perguntar-me: “A menina está bem?”, e eu só acenei, com a cabeça, que sim. Devem ter-se passado muitas horas até o pai voltar, pois já estava a começar a ficar chateada e cheia de fome, e a tarde ia bastante avançada quando ele lá apareceu com um senhor, que se pôs de volta do carro até que ele começou a trabalhar.
Depois o pai deu uma gratificação ao cantoneiro e voltámos para casa, mas ainda parámos num café para eu lanchar um bolo e um garoto. Foi uma aventura e tanto! E hoje o pai comprou-me as meias das cerejinhas que eu tanto queria e, também, um casaco comprido. Assim, o carro até pode avariar mais vezes!

15/05/2009

Leituras

A leitura exerce um enorme fascínio sobre mim. Ler permite-me a fuga para um mundo encantado, um mundo onde posso descobrir muito do que a minha curiosidade me pede e que não obtenho de outra maneira. Ler satisfaz-me e inquieta-me. Satisfaz-me porque me proporciona momentos de verdadeiro prazer e delírio, ao descobrir coisas novas; inquieta-me porque sinto uma avidez de ler tanta coisa a que não tenho acesso.
Já li quase tudo o que havia em casa para ler; leio o que vou encontrando e pedindo emprestado; leio os livros que vou buscar à biblioteca - àquela carrinha que passa por cá de tempos a tempos, e da qual não me deixam trazer todos os livros que quero, nem dos que quero, só dos da fita verde – mas leio também os que o meu amigo Zeca traz; leio outros que ele me empresta, do Tio Patinhas e de outros heróis de Banda Desenhada, se bem que alguns não fazem muito o meu género, mas à falta de outros, é melhor do que nada; leio também as revistas de fotonovelas e a Crónica que a minha amiga Manuela compra quase todas as semanas e me empresta, mas leio às escondidas, porque tenho medo que o pai me veja ler essas coisas… não é por nada, que acho que não faço mal nenhum, até porque já fiz onze anos, mas ele pode não compreender e ralhar comigo com aquela sua voz de trovão que me faz encolher toda.
E é claro que também leio os livros da escola, mas esses é por obrigação, apesar de quase nem precisar de os ler, pois o que percebo nas aulas quase me basta para apreender a matéria e tirar boas notas.
Há dias encontrei uns livros antigos do pai e, entre eles, uma Bíblia que tem feito as minhas delícias. Tenho vindo a lê-la, aos poucos, desde o seu início, enquanto a mãe me espreita no quarto, ficando a pensar que estou a estudar. Ela até diz às vizinhas que tem uma filha que não faz mais nada senão estudar, que não puxa para fazer mais nadinha; vê outras meninas da minha idade que fazem tudo em casa às mães, mas eu, que não sabe a quem é que eu saí…

(Publicado em: Memória Alada, 2011)

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