04/04/2025

O Desembaraço


De molhos de garrafões de plástico vazios nas mãos, aproximo-me da fonte para os encher de água. Sabe bem assentar os pés, descalçados os chinelos, no pequeno lastro alagado. No tempo do calor é fresquinha a água desta nascente que jorra continuamente em bica desembaraçada; como desembaraçadas são as duas mãos idosas que ali esfregam a roupa ensaboada na pedra. 
Dou as boas-tardes e peço licença para encher os garrafões, se não for incomodar. 
– Sirva-se à vontade! 
– Obrigada! Sabe bem estar aqui com os pés fresquinhos… – digo para meter conversa. 
– Pois é. Agora é mais fresquinha e no Inverno é mais morninha… 
Vou enchendo vasilha a vasilha, enquanto ela vai esfregando e molhando a roupa devagar na bacia com água, virando-se de lado para mim. 
 – Só há quem a venha aqui estorvar… – digo, pensando que posso estar a demorar, e ela precisará de se servir da bica da água. 
– Não estorva nada. A gente nunca estorva ninguém. 
– Se calhar andamos mas é por cá a estorvar-nos uns aos outros… 
– Não senhora! A gente não estorva nada. Antigamente tinham seis e sete e oito ou nove filhos e não se estorvavam uns aos outros… agora são menos, não há razão para se estorvar ninguém. 
– É bem verdade. Agora é só um, ou dois… quando é!... 
– E tudo se criava. Você se calhar não sabe… não era do seu tempo, mas, e quando se partia uma sardinha em dois ou três só com um bocadito de broa?… agora é só lambarices… e coisas caras. 
– Realmente… ainda dizem que agora os tempos são maus… e que não dá para se viver… as pessoas habituam-se ao que é bom, ao conforto, e já ninguém quer passar com pouco e fraco. 
– Ah, mas olhe, acolá em cima há uma rapariga, você não deve conhecer, que não é de cá… bem, quem mora ali são os pais, ela agora já não mora cá, que já está casada; quero dizer, casou e separou-se e voltou a casar ou a juntar-se… 
– Pois… agora já não se estranha isso… 
– É assim!... Pois essa rapariga trabalha, ou trabalhou, num talho. E contava ela que vinha a carne para o talho e ia-se vendendo para uns e para outros… e passava-se uma semana e nunca se vendia toda… e a carne que ficava começava a ganhar bichos, daqueles com um rabito, você não sabe?... têm um rabito… uns bichos com um rabito… e depois passavam aquela carne por uma máquina e bichos e tudo, moíam aquilo tudo… para… 
– Para fazer hambúrgueres?... 
– Isso. E sei lá mais o quê… olhe, depois era tudo vendidinho!... 
Sorri levemente, num misto de assentimento e incredulidade, acabando de encher os garrafões e acabando a conversa por ali mesmo com um adeus. 
E a água a jorrar sempre certinha e desembaraçada ficou; como certinhas e desembaraçadas as palavras de quem com mestria as ditou.

03/04/2025

Arte(lharia)

- Isto mais parece um SALSIFRÉ, saído de uma qualquer FÁBULA ESCAGANIFOBÉTICA! Assim disparou dona Prazeres, toda finesse, de braço dado ao seu NOVO namorado, enquanto percorriam a galeria. 
- Não gostas, minha querida? – Pergunta-lhe o namorado, com o sorriso a esmorecer-lhe nos lábios. 
- Não! E não vais QUERER que eu diga que gosto, só para te fazer o jeito! 
Luizinho sentiu-se à DERIVA, a ficar sem pinga de sangue. Tinha preparado a exposição com tanta PAIXÃO, com tanto amor e dedicação… e agora… agora o resultado era esta insatisfação! 
- Estás a mangar… não vês que isto é arte, minha querida?! – Refere ainda com alguma exaltação. – Um estilo de arte muito SINGULAR! 
- Arte? Chamas arte a estas esborratadelas, a estas bacias cheias de mazelas, a estes cacos espalhados pelo chão? 
O namorado, coitado, a sentir-se mal-amado, não queria acreditar neste AUTÊNTICO descalabro. Ele que pensara fazer-lhe uma surpresa, daquilo que, para si, constituía uma proeza, e ficava agora mudo e quedo, debatendo-se entre o argumentar e o encolher-se num canto a chorar. Ele bem sabia como a dona Prazeres era difícil de contentar… mas ainda pensara em fazê-la RENASCER com a sua arte… talvez que nisso ela pusesse um LÍMPIDO olhar. Mas, qual quê? O seu SUPREMO mau feitio tinha que dar o seu sinal! E foi isso que fez com que a coisa azedasse e tivesse corrido mal. Mas então, o Luizinho, longe de estar resignado à sua sorte, replica-lhe num rasgo audaz: 
- Pois olhe, minha querida, não é assim que se conquista o coração cá do rapaz!
(Mais um texto das 12 Palavras - 10.º jogo )

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