Cor matinal


Um som estridente ressoou pelo casarão adentro, fazendo rodopiar, num gesto de bailarina, o coração assustado de José Miguel. Ainda de forças quebradas pela noite mal dormida, teve de inventar um grande esforço para se erguer. Transpiravam-lhe as mãos quando rodou a chave na fechadura. Do lado de lá, dois rostos femininos encaram-no com surpresa. Identificam-se. 
– Quem é o senhor? – Pergunta uma das jovens. 
José Miguel fica sem saber que responder, mas consegue dominar a situação e ilude a pergunta. 
– Que desejam? 
– Vimos buscar os meninos. – Percebe uma resposta seca, talvez numa tentativa de cortar pela raiz uma eventual resistência. Então, propõe-se travar aquele propósito sem qualquer capitulação. Estava ali para proteger os seus pequeninos. – A mãe deixou-os sozinhos em casa… 
– Não! – Cortou José Miguel – deixou-os comigo! 
Assim. Com total liberdade. Ninguém lhe arrancaria aquelas pérolas que acabara de encontrar. Por isso ensaia o acto falaz. – São meus filhos. Nunca permitirei que os levem! 
– Mas a mãe… 
– Já não têm mãe – gemeu. – Não os podem deixar também sem pai… 

Quase desfalecia de dor. José Miguel começava, agora, a entregar-se a um sentimento de inquietação que o rondava, pela ideia de que poderiam querer interná-los num lar de acolhimento de crianças em risco, afinal eram órfãos, e ele um intruso. Mas não existem verdades absolutas. Os sustos e as surpresas surgem sempre repentinamente, revelando o quão ilusória é uma certeza e abstracta uma harmonia. Do mesmo modo, na escuridão pode esplender inesperadamente uma luz, qual galanteio que converte uma amálgama de mágoas em sintonia perfeita de cores e tons. Deste confronto com as Técnicas de Serviço Social vem a nascer nova alma em José Miguel. Luísa vive. Acordou quando todos a julgavam morta. Era ela que as tinha ali mandado.

[Texto enviado
ao 7.º Jogo das 12 Palavras]

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