03/02/2025

Arte(lharia)

- Isto mais parece um SALSIFRÉ, saído de uma qualquer FÁBULA ESCAGANIFOBÉTICA! Assim disparou dona Prazeres, toda finesse, de braço dado ao seu NOVO namorado, enquanto percorriam a galeria. 
- Não gostas, minha querida? – Pergunta-lhe o namorado, com o sorriso a esmorecer-lhe nos lábios. 
- Não! E não vais QUERER que eu diga que gosto, só para te fazer o jeito! 
Luizinho sentiu-se à DERIVA, a ficar sem pinga de sangue. Tinha preparado a exposição com tanta PAIXÃO, com tanto amor e dedicação… e agora… agora o resultado era esta insatisfação! 
- Estás a mangar… não vês que isto é arte, minha querida?! – Refere ainda com alguma exaltação. – Um estilo de arte muito SINGULAR! 
- Arte? Chamas arte a estas esborratadelas, a estas bacias cheias de mazelas, a estes cacos espalhados pelo chão? 
O namorado, coitado, a sentir-se mal-amado, não queria acreditar neste AUTÊNTICO descalabro. Ele que pensara fazer-lhe uma surpresa, daquilo que, para si, constituía uma proeza, e ficava agora mudo e quedo, debatendo-se entre o argumentar e o encolher-se num canto a chorar. Ele bem sabia como a dona Prazeres era difícil de contentar… mas ainda pensara em fazê-la RENASCER com a sua arte… talvez que nisso ela pusesse um LÍMPIDO olhar. Mas, qual quê? O seu SUPREMO mau feitio tinha que dar o seu sinal! E foi isso que fez com que a coisa azedasse e tivesse corrido mal. Mas então, o Luizinho, longe de estar resignado à sua sorte, replica-lhe num rasgo audaz: 
- Pois olhe, minha querida, não é assim que se conquista o coração cá do rapaz!
(Mais um texto das 12 Palavras - 10.º jogo )

02/02/2025

A rede


Há uma rede de arame enleado, pregada em estacaria por cima do muro; caída a certo passo, em certo tempo derrubada, e a par e passo pisada. É uma vedação que nada veda: nem vento, nem maresia, nem tempo, calor ou invernia; nem vegetação, pássaro, insecto, luz da noite ou do dia; ninguém. 

O tempo vem empurrado pelo marulhar ao encontro da praia e parece ir, dolente, levitar nas asas das gaivotas que não param de dançar, suspensas, lá em cima, num céu acinzentado, meio doente, meio enfarruscado. 

A rede delimita o olhar de um ao outro lado – fora e dentro, só olhar. De fora, atrás, o mar; do outro lado, lá dentro, o tempo custa a passar. De fora, os olhos só vêem a espera, pesada, a arder. 

Por um pouco de tempo, o olhar esqueceu-se de se envolver, semicerrou-se, cansado de pestanejar; e o tempo suspendeu-se, amarelo, na ponta de uma estaca onde a rede se queda, senhora de si, empertigada, enviesada, salpicada da maresia demorada…
 
Dali a outro pouco tempo, do nada, bateu o sol ao atrever-se a espreitar. Um ar de graça que, quer se queira ou não queira, de qualquer maneira, passa. Portanto, sol de pouca dura (e ai, a fome… que ninguém a atura!). 

Mas o tempo é para comer e estar. Porque, do lado de dentro da rede, há outra rede que faz o tempo tardar.

01/02/2025

Quase como ouvi contar

Na era do antigamente - em tempos magros, de fome, quando os meninos, mal saídos da parca mama das mães, cedo iam ser criados dos senhores mais abastados, a fim de poderem ter um pouco mais para a boca do que na casa paterna -, o pastorinho do rebanho das cabritas todos os dias levava os animais a pastar em roda da capelita de San Sadurninho. Na bolsa do farnelito, umas míseras côdeas de broa seca, que o seu amo lhe mandava para o dia inteiro.

A fome apertava, a broa era dura de roer, e o santo na capelita tinha azeite numa griseta para arder.
O rapazito, faminto, eleva uma côdea em direcção ao santo, como quem espera uma bênção que a transforme em manjar do céu.

 Ó mê xantinho xan Xadurninho vosmixê dá lixenxa que eu molhe aqui nha broa no xeu guijaujinho?

E o santo, como bem de ver, nada de responder!
E torna o moço:

 Ó mê xantinho xan Xadurninho vosmixê dá lixenxa que eu molhe aqui nha broa no xeu guijaujinho?

E o Santo parecia que era mudo... ou fazia-se.

 Mas vosmixê não ouve ou quê?... Ó mê xantinho xan Xadurninho, xantinho da nha devoxão, vosmixê dá lixenxa que eu molhe nha broa aí, aí, nexe ajeitinho dexe xeu guijão?

E resposta, nenhuma!

 Ai vosmixê não responde? É porque quem cala conxente! Poix atão eu molho, e hei-de molhar e xopotear!

E assim, todos os dias, o coitadinho condutava a magra e seca broa com o azeite do santinho, que foi até ao lamber do acabar.

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