30/11/2025

Arrepiar Caminho II


Escuto mas não sei 

Se o que ouço é silêncio 
Ou deus

Escuto sem saber se estou ouvindo 
O ressoar das planícies do vazio 
Ou a consciência atenta 
Que nos confins do universo 
Me decifra e fita

Apenas sei que caminho como quem 
É olhado amado e conhecido 
E por isso em cada gesto ponho 
Solenidade e risco 
(Sophia de Mello Breyner Andresen) 

Acho que vou aventurar-me um pouco mais para cima, quero conhecer este lado do caminho. 
Começo, na dezena, os Mistérios Gloriosos. Subo mais um pouco para lá da curva, o que estará para lá? Será alguma estrada que vire depois à esquerda, para ir dar àquela capelita? Mas não, não encontro nenhum indício disso. Agora é a direito em estrada de areia lavada pela chuva; ali mais à frente vislumbro uma cortada à direita, quem sabe se não irá desembocar num outro caminho, do lado de baixo, que eu conheça? Experimento. Até porque é já um pouquito tarde para voltar para trás antes que se faça noite. Sigo por aí, é sempre a curvar à direita; sim, deve ir dar lá a baixo. Aperto o passo, afoitando-me por este caminho de sulcos de rodas de tractores, por entre pinheiros e matos. 

Nem dou pelo que a floresta pode em si encerrar. As florestas e os matagais são mães e pais de muitos bichos: rastejantes, roedores; com asas; corredores; dos que trepam às árvores; dos que perfuram a terra; dos que têm tocas; dos que fazem ninhos; lobos, raposas, cobras e lagartos; formigas; abelhões e outros que tais; monstros; lobisomens; ladrões e salteadores… e tantos outros dos que ouvimos falar nos telejornais. Ah, mas não. Isto só me aflorou à mente de raspão. Não vou pensar mais nisso. Aqui, não. Não há aqui nada disso. Sob os meus pés sorriem pequenas flores, dentro dum relvado verdinho, é macio este caminho.

Este caminho é cheio de metáforas. 

A mão vai passando as contas e há alguém que vai rezando; não me parece ser eu… talvez o meu coração. Porque a cabeça, essa, levita, abstraída, sei lá, pela paisagem bonita. Ave Maria, cheia de graça…

26/11/2025

Arrepiar Caminho I


Valha-me Nossa Senhora, 
Mãe de Deus de Nazaré! 
A vaca mansa dá leite, 
 a braba dá quando quer. 
A mansa dá sossegada, 
a braba levanta o pé. 
Já fui barco, fui navio,
mas hoje sou escaler. 
Já fui menino, fui homem, 
só me falta ser mulher. 
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré! 
(Ariano Suassuna, Auto da Compadecida)

A estrada é larga. Asfaltada.
Ouso o caminho quando o sol se reclina, por cima das ramagens, em direcção ao mar. Deixo a estrada principal e desço a ladeira íngreme  via semi-nova, pouco movimentada  rumo à natureza, levando pela trela o meu camarada de passeio. Uns metros adiante, solto-lhe a trela para o deixar correr à sua vontade, agora que a estrada é só para nós.
Faz-se bem este caminho, em modo de passeio, sempre a descer.

A dezena vai-me rolando entre os dedos da mão direita, enquanto os pés vão pisando o asfalto negro na sede da caminhada. Mistérios Dolorosos.

Lá em baixo, no vale, onde o arvoredo se torna mais denso, o meu amigo já anda a farejar as bermas da encruzilhada, enquanto espera que eu lhe indique a direcção a tomar. Hoje vamos virar à esquerda, sempre pelo asfalto, deixando o caminho da direita, em terra batida, para percorrer amanhã. Ainda ao longe, faço-lhe sinal com a mão e ele avança resoluto. Gosta de ir sempre à frente, no comando, como se fosse ele o dono da viagem, e eu permito-lhe esse gosto.

Uma ligeira subida e deixamos o asfalto para trilhar o caminho da floresta que nos fica do lado esquerdo. O caminho é nosso conhecido de outras caminhadas. Descemos agora. Ele corre; eu vou ficando um pouco para trás, assobiando-lhe de tempos a tempos, para que não pense em dispersar-se por outros lugares que não o caminho que levamos. Na bolsa, que levo a tiracolo, enfio a trela – que já me cansa na mão esquerda – e tiro a máquina fotográfica para tirar umas fotos a uns maciços de cogumelos que me surpreendem o olhar, que grande alfobre nasceu aqui!

Continuo. No próximo cruzamento lá está ele novamente à minha espera, olhando-me ansioso. Indico-lhe a subida, à direita, e seguimos quase lado a lado, agora que é a subir. A meio da ladeira há um carreiro à esquerda, por onde já fomos uma vez, até uma pequena capela; e uma curva à direita na continuação desta estrada de pedra sobre pedra. Bordejam-na alecrins, rosmaninhos, silvados de amoras ainda verdes e algumas flores cor-de-rosa de chícharos-selvagens. Tiro mais umas fotos – este mundo é um jardim que me seduz!

Guardo a máquina fotográfica e penso que está na hora de voltar para trás, porque já andámos a metade do tempo que determinei para esta caminhada, e é preciso fazer outro tanto tempo no mesmo caminho de regresso, antes que se faça noite. Mas…

25/11/2025

Tatuagens Escondidas [4]


O mês de Novembro banhou-me de melancolia. Logo a mim, que até sou sempre tão alegre e tão sem problemas. O ambiente carregado dos dois primeiros dias, em que a vida girou em torno da morte, é que desencadeou esta carga negativa. De cada vez que penso em entrar no cemitério o mundo cai-me aos pés. Mas quis levar uma flor à avó; era o mínimo que podia fazer por tanto que ela foi para mim. Quando penso nela bate-me uma saudade tão grande!
Fui descendo a ladeira íngreme, em romagem com as outras pessoas, depois da missa, e, lá em baixo, lá estava aquele grande painel assombrado de casinhas e lápides brancas e cruzes, agora apinhado de gente, de flores e de velas acesas, que se podia ver cá do alto, brilhando por entre os muros caiados de branco, com um jardim de sicomoros na frente. Um local deveras assustador…
Embrenhada mais nesta visão fantasmagórica do que no coro de avé-marias, que se iam desfiando no cortejo encabeçado por duas lanternas e uma cruz ao centro, que luziam por cima dos olhares, levadas por três homens vestidos com umas vestes vermelhas de sangue, escorreguei nas pedras da beira do caminho e caí. Prontamente socorrida por quem ia ao pé de mim, larguei algumas lágrimas, mais pela vergonha do que pelas dores que sufoquei. Rasgaram-se as meias compridas, esfarrapei os joelhos que ficaram cravejados de pedrinhas e a sangrar, e quiseram obrigar-me a voltar para trás para ir à farmácia fazer um curativo. Mas teimei em prosseguir. A coragem tinha de se impor ao resto: tinha de deixar de ser a menina frágil e infantil que todos faziam de mim. Só no fim de levar a cabo o que ia fazer é que fui tratar das feridas.

Agora, pensando nisto tudo, lembro-me da canção que me faziam cantar sempre, em todo o lado, quando era pequenina, e a que achavam muita graça:

"Naquela linda manhã
Estando a brincar no jardim
A certa altura a mamã
Chamou-me e disse-me assim:

Não brinques só a correr
Tropeças sem querer
Depois ficas mal.
Respondi: pronto está bem
Mas antes, porém, esqueci-me de tal.

Não me lembro depois como foi
Escorreguei caí no chão.
No joelho ficou um dói-dói
No nariz um arranhão.
Desde então prometi ser melhor
De ser boa e ser feliz.
Faço agora tudo quanto
A mamã me diz."

Era apenas uma canção, porque reparo que não faço tudo quanto a mãe me diz. Já não sou a menina dócil que me querem. A rebeldia começou a apoderar-se muito de mim, juntamente com toda a melancolia que me envolve.

poderá também gostar de:

Mais Rabiscos