23/12/2009

Esperança Despida

Palhaço não era… nem se sentia, muito embora se rissem dele e com ele. Uma figura caricata que poderia parecer um palhaço, com aquela indumentária que vestia, fazendo gosto em ostentar as medalhas que as feirantes lhe colocavam ao peito à segunda-feira no mercado. Elas achavam-lhe graça e, dançando à roda dele, faziam-lhe uma festa. O David, na sua simplicidade, ficava envaidecido e vinha contar tudo, com a sua tão conhecida gaguez que fazia com que todos puxassem por ele. Que elas tinham dançado com ele e que: “fofoforam aquelas maaaluuuca…ca…cas é é daaaaququeeelas é é é pepeeeixeiras esgueeeeirooouas é é é qqque me deeeram a as medaaaalhas”. Um simples, que trabalhava de carregador no mercado a troco de gorjetas. Palhaço não. Nunca pela pequena cabeça lhe passou que se divertiam à sua custa, muito embora alguns o fizessem, pagando-lhe copos de vinho quando sabiam que isso o faria descarrilar. Palhaços são os que, sem alma, se aproveitam da pequenez dos outros para se divertirem à sua custa. Quando o picavam ou chateavam, ele encarava-os com aqueles olhos, entortadamente, e gaguejante ameaçava que chamava a Guarda.
E o tempo ia passando satisfatoriamente, feito de primavera e verão, até lhe chegar o outono e lhe assomar o inverno. Então um Inverno mais forte, estando ele mais fraco, despiu-lhe a esperança do Natal. Desabou-lhe o telhado do casebre sobrevivente da aldeia semi-fantasma de habitantes. E a chuva e a geada dormiram com ele.
O Natal despido de esperança é um gelado inverno: um inverno que gela os ossos e a alma o ano inteiro, com artes de transformar qualquer um em pobre palhaço.

(M. Fa. R. – 22.12.2009)


A todos um Bom Natal, vestido de Esperança e calor humano,
para que se sinta menos gelado o frio que soprar em 2010.

Um Ano Novo de Paz e Amor!

15/12/2009

Passagem

A tarde de Outono começou a fazer-se lua – redonda, grossa – que uma multidão de nuvens prenhas, de ancas largas e de peitos túrgidos, começaram a empurrar para o fundo do céu, fechando-a numa noite temporã. Ela ainda experimentou espreitar por entre umas cortinas que o vento ajudou a arredar, mas não teve forças para fazer frente àqueles bustos inchados que impunham respeito.
Depois de assim vendarem os olhos à lua, estas monstras começaram a guerrear umas com as outras com um leve rosnar intensificado até à discussão séria, empurrando-se e acotovelando-se, discutindo assanhadamente e deitando fogo pelas ventas como toiros, numa ânsia desenfreada de encontrarem lugar para parir. E o céu explodiu em raiva sobre o bosque de eucaliptos que não tinha culpa de nada.

Carregado de medalhas ao peito e de cigarro na boca, foi apanhado naquela confusão pelo caminho enlameado de regresso ao casebre, que ficava para lá daqueles arvoredos, e resmungaguejava contra aquela bátega que o molhou dos pés à cabeça. Se ele soubesse tinha ficado em casa da irmã. “Eeela beeem qqquuue m’aaaaviiiisô!”
Na noite de raios e coriscos, as árvores tomaram formas humanas de cabeçudos gigantes com narizes pontiagudos e dentes arreganhados, que gargalhavam amedrontando o incauto que atravessava naquela hora.
Quem era esta personagem quase descartável, que ali dançava como uma folha de papel soprada pelo vento? Será que deixaria para sempre as suas pegadas naquela lama do caminho? Porque há pessoas que marcam bem a sua passagem pelo tempo.

(M. Fa. R. - 09.12.2009)

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