13/11/2025

Tatuagens Escondidas [4]


O mês de Novembro banhou-me de melancolia. Logo a mim, que até sou sempre tão alegre e tão sem problemas. O ambiente carregado dos dois primeiros dias, em que a vida girou em torno da morte, é que desencadeou esta carga negativa. De cada vez que penso em entrar no cemitério o mundo cai-me aos pés. Mas quis levar uma flor à avó; era o mínimo que podia fazer por tanto que ela foi para mim. Quando penso nela bate-me uma saudade tão grande!
Fui descendo a ladeira íngreme, em romagem com as outras pessoas, depois da missa, e, lá em baixo, lá estava aquele grande painel assombrado de casinhas e lápides brancas e cruzes, agora apinhado de gente, de flores e de velas acesas, que se podia ver cá do alto, brilhando por entre os muros caiados de branco, com um jardim de sicomoros na frente. Um local deveras assustador…
Embrenhada mais nesta visão fantasmagórica do que no coro de avé-marias, que se iam desfiando no cortejo encabeçado por duas lanternas e uma cruz ao centro, que luziam por cima dos olhares, levadas por três homens vestidos com umas vestes vermelhas de sangue, escorreguei nas pedras da beira do caminho e caí. Prontamente socorrida por quem ia ao pé de mim, larguei algumas lágrimas, mais pela vergonha do que pelas dores que sufoquei. Rasgaram-se as meias compridas, esfarrapei os joelhos que ficaram cravejados de pedrinhas e a sangrar, e quiseram obrigar-me a voltar para trás para ir à farmácia fazer um curativo. Mas teimei em prosseguir. A coragem tinha de se impor ao resto: tinha de deixar de ser a menina frágil e infantil que todos faziam de mim. Só no fim de levar a cabo o que ia fazer é que fui tratar das feridas.

Agora, pensando nisto tudo, lembro-me da canção que me faziam cantar sempre, em todo o lado, quando era pequenina, e a que achavam muita graça:

"Naquela linda manhã
Estando a brincar no jardim
A certa altura a mamã
Chamou-me e disse-me assim:

Não brinques só a correr
Tropeças sem querer
Depois ficas mal.
Respondi: pronto está bem
Mas antes, porém, esqueci-me de tal.

Não me lembro depois como foi
Escorreguei caí no chão.
No joelho ficou um dói-dói
No nariz um arranhão.
Desde então prometi ser melhor
De ser boa e ser feliz.
Faço agora tudo quanto
A mamã me diz."

Era apenas uma canção, porque reparo que não faço tudo quanto a mãe me diz. Já não sou a menina dócil que me querem. A rebeldia começou a apoderar-se muito de mim, juntamente com toda a melancolia que me envolve.

12/11/2025

Po-esia

Um dia meio pardo, com o sol a espreitar aqui e ali.

A bicicleta do pai chamou-me, luzindo numa nesga de sol que lhe pousou.

Não me fiz rogada, pois para brincar estou sempre pronta.

Aprendi, não há muito, a andar de perna traçada sob o quadro daquelas rodas enormes, e depressa fiquei viciada em pedalar, agora sentada no selim.

Afoita, já sem os pés no chão, vá de enrolar com os pedais, fazendo girar as rodas, para que a bicicleta tomasse balanço e depois, sem esforço, só a guiasse ladeira abaixo levando-me à boleia.

E era como se tivesse asas… poesia para voar.

Sem os pés assentes no chão, no que é o real, tanto pode haver poesia, como só e apenas o pó, da po-esia.

A bicicleta voou pela descida acentuada, como se a estrada fosse céu, mas eu não tinha pára-quedas. 

Sem ser capaz de acompanhar o voo, com medo de não fazer a curva lá em baixo, atirei-me para a barreira do terreno do lado direito e fiquei ali caída para trás, enquanto a bicicleta foi rolando certinha e direitinha, até se espetar contra o portão da casa azul ao fundo.

Quando o chão deixa de ser esse céu de poesia, para passar a ser apenas o pó que nos envolve, também se cai por dentro; ainda que às vezes seja apenas uma paragem mais ou menos pequena, antes de tornar ao voo.

Felizmente, só sofri uns arranhões e a bicicleta não se estragou muito; só tive de me esforçar um bocado para lhe endireitar o guiador e depois, ladeira acima, trazê-la de volta, apeada.

02/11/2025

Sombras II

Tinha reparado com atenção em toda aquela inusitada cena na piscina e seguiu-os. Sabia como lidar com crianças, sentia aptidão natural para isso. Por isso foi-lhe fácil aproximar-se e falar com cuidado e meigamente. Procurando ganhar a confiança deles, começou por perguntar com se chamavam. Manuel e José, respondeu o maiorzinho, apontando para si e para o irmão, respectivamente. Que faziam ali sozinhos? Que não sabia da mãe. Esta, ao sair, tinha-lhe pedido que tomasse conta do irmão. Seria por pouco tempo. Não demorava. Uma colega tinha necessidade da sua ajuda e era preciso que lá fosse.
Primeiro pensou que ela tinha precisado demorar um pouco mais, e adormeceram no sofá da sala enquanto viam televisão. Do dia seguinte acordaram e ela não estava no quarto. Se calhar tinha saído para fazer alguma coisa e não tinha querido acordá-los. Comeram bolachas com leite, e mais tarde os iogurtes que estavam no frigorífico. E à noite a mãe ainda não regressara.
Hoje resolvera procurá-la nos lugares onde ela os costumava levar. Não tinham mais ninguém em casa. Sentia muito a falta da sua mamã. Tinha medo que lhe pudesse ter acontecido alguma coisa de mal.
O pequenino pedia a mãe. Pegou-lhe ao colo e acarinhou-o como se fosse filho seu. Adormeceu-lhe no regaço enquanto o acariciava. O outro encostou-se-lhe também e sentiu-se invadir de uma ternura imensa. Estes pequeninos precisavam de alguém que olhasse por eles, que lhes encontrasse a mãe, que os protegesse, tão indefesos e carentes estavam, e tão à mão de predadores, alheios ao perigo que corriam. Tinha que fazer alguma coisa.
Entrou com eles na igreja enquanto o mais pequenino dormia e ficaram um pouco em silêncio naquela penumbra refrescante. Pediu ajuda à Virgem. Era preciso fé e esperança.
Mais tarde, levou-os a lanchar e acompanhou-os a casa, talvez a mãe já lá estivesse. Não estava. Viu fotos... e o seu sangue gelou e ferveu... procurou nomes, telefonou. Fez-lhes o jantar e comeu com eles. Tranquilizou-os, encontraria a mãe! E adormeceu-os contando-lhes uma história.
Fez mais telefonemas. Sim, estava ali… meu Deus, deveria ser ela! Sentiu-se invadir por uma convulsão incontrolável, um sentimento de perda irreparável, um vazio sem esperança. Agora estes meninos não tinham ninguém, não tinham mais ninguém senão a si... e tomou a decisão: seria o seu pai. O pai que eles pareciam não ter.

31/10/2025

Sombras I

O tempo convidava a um mergulho naquela água reluzente. Mas o calor escaldante que se fazia sentir desenhava-se numa capicua de sofrimento. Caminhando pela beirinha da piscina, puxando pela mão o seu irmãozinho que ainda mal andava, o menino procurava desesperadamente com o olhar. No bolso, a chave de casa - uma mansão antiga, grande demais para dois meninos sozinhos. O pequenino chorava, ora caindo, não conseguindo acompanhar o passo agitado do irmão, ora sendo arrastado e obrigado, pelo mais velho, a levantar-se. A criançada ficou curiosa perante o espectáculo, e alguns adultos pareciam temer que os dois pequenos caíssem à água. Que se passaria com estes meninos que destoavam daquele ambiente? Infrutíferas buscas causavam cada vez mais desânimo neste menino de olhar cansado e fugidio. Havia já duas noites e dois dias em que tudo se resumia a uma espiral de angústia devastadora. Não a encontrava nos locais de lazer, que tão bem conhecia, habituado que estava a que ela os lá levasse. Procurara-a e não a encontrara. Urgia, agora, repensar a estratégia, antes que o desalento e o pânico se instalassem por completo. Sentado na soleira da porta da igreja, esperava. Talvez uma luz divina o iluminasse. Então pareceu-lhe que um anjo lhes falhava. Respondeu às suas perguntas como se o céu os tivesse vindo socorrer. Tinha necessidade de confiar em alguém. Contou tudo. O que acontecera, as suas inquietações, os seus medos e o como já não sabia mais que fazer para calar o irmãozinho. Aquele anjo bondoso tranquilizou-os e até conseguiu que o pequenino adormecesse. Escutava inebriado aquela voz melodiosa que lhe respondia serenidade e esperança. Então pôde acalmar um pouco, recostando-se de encontro ao seu peito, fechando os olhos, sentindo pousar em si a sombra das suas asas delicadas.

30/10/2025

A rede


Há uma rede de arame enleado, pregada em estacaria por cima do muro; caída a certo passo, em certo tempo derrubada, e a par e passo pisada. É uma vedação que nada veda: nem vento, nem maresia, nem tempo, calor ou invernia; nem vegetação, pássaro, insecto, luz da noite ou do dia; ninguém. 

O tempo vem empurrado pelo marulhar ao encontro da praia e parece ir, dolente, levitar nas asas das gaivotas que não param de dançar, suspensas, lá em cima, num céu acinzentado, meio doente, meio enfarruscado. 

A rede delimita o olhar de um ao outro lado – fora e dentro, só olhar. De fora, atrás, o mar; do outro lado, lá dentro, o tempo custa a passar. De fora, os olhos só vêem a espera, pesada, a arder. 

Por um pouco de tempo, o olhar esqueceu-se de se envolver, semicerrou-se, cansado de pestanejar; e o tempo suspendeu-se, amarelo, na ponta de uma estaca onde a rede se queda, senhora de si, empertigada, enviesada, salpicada da maresia demorada…
 
Dali a outro pouco tempo, do nada, bateu o sol ao atrever-se a espreitar. Um ar de graça que, quer se queira ou não queira, de qualquer maneira, passa. Portanto, sol de pouca dura (e ai, a fome… que ninguém a atura!). 

Mas o tempo é para comer e estar. Porque, do lado de dentro da rede, há outra rede que faz o tempo tardar.

29/10/2025

Regresso ao mundo II

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Uma sonata de sons alucinantes parecia ecoar aos ouvidos de José Miguel, como convite a loucuras inconfessáveis. Aquela mão, retida na sua, irradiava centelhas de calor que o trespassavam até à medula.
O mundo tinha parado e José Miguel, de olhos fechados, saboreava com sofreguidão aquela embriaguez dos sentidos que se apoderara dele, enquanto o seu peito arfava de comoção.
Não conseguindo aguentar, foi deslizando a sua mão pelo braço nu da sua amada, num bailado de arrebatadora paixão.
Sentia-se um pecador, mas o desejo foi mais forte. Pousou os seus lábios naqueles que o chamavam com um misto de veludo e seda, primeiro com toda a suavidade, depois, sentindo-os entreabrirem-se, fundiram-se neles numa entrega inevitável e plena de êxtase.
O beijo quente e apaixonado fez-lhe reviver alvoroços perdidos no fundo de um baú. Mas aquilo parecia-lhe uma violação. “Perdão, meu amor…”, foram as palavras que lhe afloraram à mente. E afastou-se. Afastou-se sem se poder saciar naquela boca, que tantas vezes tinha povoado os delírios das suas noites. Afastou-se sentindo um arrepio profundo a inundá-lo, até lhe deixar as mãos trémulas e a cabeça à roda. E, de repente nauseado, antes de ter tempo de procurar onde se sentar, notou que o chão lhe fugia…
As emoções tinham sido muitas e demasiado fortes nos últimos dias, e aquela vertigem, que lhe tirou momentaneamente os sentidos e o atirou ao chão, era o resultado disso.
“Luísa… oh, Luísa… tanto te esperei!...”

27/10/2025

Minha Laranja Amarga e Doce


Enterrou a unha do polegar na casca da laranja e puxou. Não resistiu a enfiar o pedacinho amarelo-alaranjado na boca e cortar com os dentes aquela parte branca, de dentro da casca, que gostava de saborear. Era leve e adocicada, em contraste com os salpicos amarelos, oleosos e acres, que saltaram da parte de fora e se lhe entranharam nos dedos, e lhe chegaram ao nariz num aroma esborratado de acidez e remédio. Lembrava-lhe aqueles xaropes que a mãe lhe dava em criança quando estava constipado e com tosse. 
Outra unhada na laranja e outra pequena casca prontinha a abocanhar. Num instante, a laranja ficou descascada e toda a parte branca da casca comida. Parecia que tinha passado por ali um bichinho guloso que devorara aquilo tudo, mas não… ou sim. Sim, um bichinho de mãos amarelas e gordurosas e com uma espécie de massa esbranquiçada debaixo das suas unhas: o rasto do que ali acontecera, não podia negar. Tinha-lhe apetecido lavar logo as mãos ao tirar a primeira casca, mas veio-lhe a recordação dos seus tempos inocentes da infância e contivera-se. Passando a língua nos dentes, notou que lhe soubera mesmo bem voltar a ser criança a fazer travessuras. 
A laranja era agora uma bola madurinha e doce a pingar sumo pegajoso para as mãos. Como lhe crescia água na boca! Separou-a em duas metades. Depois, abriu gomo a gomo, que dispôs à roda num pratinho. E ficou a sorrir sozinho: estava já a imaginar o filhito a começar a fazer as caretas azedas àquela iguaria, mas depois a pedir sempre mais, como de costume.

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