12/11/2024

Lado negro

(reposição)

Mais uma alta de mais um internamento.
– É desta, Tó? – Perguntei-lhe quando o fui buscar.
– Sim, é desta. – Respondeu.
Se eu pudesse acreditar nisso! Queria tanto acreditar! Mas, decididamente, não me parece que vá ocorrer mudança no seu comportamento. Até porque o seu aspecto e a sua voz o denunciam. A droga e a delinquência encontraram nele poiso.

Encontrei-o, ainda nesse mesmo fim de tarde, na igreja. De pé, bem no meio, muito embrenhado com algo na mão… parecia um livro de cânticos, ou um papel… talvez uma carta ou oráculo do Santo Patrono.
Seria muito bom que esse reencontro com o espiritual lhe permitisse sair de lá iluminado por uma alva luz, com a qual pudesse desvendar o que constitui um mistério para ele, e que mais não é do que todo o seu tesouro, que enterrou não sabe bem onde, mas que se encontra dentro de uma caixinha envolta num papel colorido de bondade.

Mas não. A ida à igreja deve ter-se revestido de algum sofisma, disseram-me depois.
No entanto, custa-me pensar que possa ser assim. Preferia não ver as pessoas pelo seu lado negro, mas o receio de ser atraiçoada por algum paralogismo leva-me a não poder descartar certas possibilidades.
O lado negro muitas vezes leva vantagem.



04/11/2024

O sal de Taiki


“Pior do que a morte é a solidão… e a minha vida é uma completa solidão”. Murmura Taiki após um breve período de ausência mental.
Ao largo ouve-se uma música alegre, saída de um automóvel parado à entrada do jardim.
- Odeio música! – É um grito saído das profundezas do seu ser.
- Que estupidez! - Escuta.
Boquiaberto volta-se na direcção da voz.
De repente, ali naquele momento, apeteceu-lhe falar com alguém desconhecido. Era-lhe mais fácil abrir-se com alguém que não conhecesse, do que com aqueles que já conheciam o seu drama e o olhavam com compaixão. O que não queria era que tivessem dó de si.
E ali estava, à sua frente, como que caída do céu, a dona daquela voz melodiosa, de tonalidades do nascer do sol, preparadíssima para uma troca de ideias.
- Queres-me dizer qual é o problema? – Pergunta a desconhecida.
Taiki ainda hesita:
- Pro… problema?
- Claro! Quem não gosta de música só pode ter um grave problema. Desde quando é que não gostas de música? – Pergunta a jovem?
- Desde hoje… agora… - mal balbucia Taiki, revelando a sua amargura.
A jovem inquire-o com o olhar e este estende-lhe a carta, decidido a confiar-se-lhe, carente como estava de um ombro amigo.
Ela lê a carta e emociona-se. Aconselha-o a seguir em frente, pois não pode mudar nada do que se passou. Agora só o futuro importa.
- Quem olha para trás transforma-se numa estátua de sal!
- Nós nem nos despedimos… - soluça Taiki, acabando por dar liberdade ao seu pranto, largando ali, naquelas lágrimas, o sal que começara a aprisionar.
- Chora… é melhor chorar do que ficar com um nó na garganta!
A jovem abraça-o, e ali se dá o início de uma amizade…

[Texto a pedido do Fontez - Longos Percursos para continuação d'o baloiço e anteriores.]

30/10/2024

A Enchente

Parece que foi ontem e, no entanto, já passou algum tempo desde o início das aulas. Estamos a iniciar o segundo período e, vendo agora com algum distanciamento, aquela exclusão inicial, de que me senti vítima, parece-me ter sido tempestade num copo de água. Mas que foi um sentimento avassalador, que me transtornou imenso, isso foi. Contudo, este acabou por se ir esbatendo, até estar completamente erodido. Pouco tempo depois, acabei por comungar plenamente das actividades da turma, quer nas aulas, quer no recreio.
Agora, após uma pequenas férias, é altura de recomeçar.
A Helena, a Cidália e eu, vamos sempre no mesmo autocarro, de manhã. Hoje, ao chegarmos, deparámo-nos com a vila inundada. Choveu muito e os rios transbordaram, alagando toda a Várzea… e não só. A água chegou perto do colégio, mesmo à estrada onde temos de passar a pé. Parece o mar no espaço que fica entre os dois rios; estes nem se distinguem, tal a fusão das águas num único todo. O colégio - um prédio alto - lembra-me um farol, numa ponta de terra que quase toca esse mar. Cheguei lá com os pés encharcados. Nem outra coisa era de esperar: com a água a chegar à estrada era impossível passar sem molhar os pés, dado que a água atravessava a estrada em alguns pontos. Valeu-me levar na mala as sapatilhas de ginástica, senão ficava com os pés molhados o dia todo; mas até estas encharquei na volta para casa.
Isto fez-me lembrar um dia no regresso da escola primária: as valetas iam cheias de água, por causa das chuvas abundantes que tinham caído, o que me despertou a vontade de chapinhar. Não sendo capaz de resistir, mergulhei os pés, de galochas calçadas, pela valeta fora, numa caminhada compassada, amortecida por aquela água corrente. Sabia tão bem! Só que, num sítio mais fundo, as galochas acabaram por encher de água. Quando cheguei a casa, é claro que apanhei um grande ralhete da mãe, que teve que pôr as galochas a secar ao lume, uma vez que não havia sol.
Desta vez também não se vê o sol, nem o céu azul. É só nuvens cinzentas a ameaçar mais chuva. E apanhei outro ralhete da mãe. Mas desta vez não tive culpa.

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 publicação no Eremitério

18/10/2024

José Miguel


José Miguel de Andrade Cardoso nascera no Porto numa tarde de Junho de 1984. Um parto difícil, por fórceps, que traumatizou a jovem mãe e a levou a pensar não lhe dar irmãos, não fora a ironia do destino a surpreendê-la novamente poucos meses volvidos.

Manuela de Andrade, que descendia de uma família de brasão, quase obrigara o seu namorado Jorge Cardoso a casar com ela às pressas.
Jorge provinha de uma família simples, e fora seduzido pela menina de família, de modos finos, que o deslumbrara com um mundo tão diferente do seu.
Depois, ela fizera-lhe sentir a sua vergonha ao saber-se grávida e ele cumprira o que lhe prometera, mais cedo do que contava. A juventude e a inexperiência fizeram pouco deles, por duas vezes.

Entre José Miguel e Ana Maria havia apenas a diferença de um ano e alguns dias, e a cumplicidade, talvez mais do que o sangue, a uni-los. Os sorrisos de um eram a alegria do outro, tal como as lágrimas de um eram a dor do outro. Desde cedo (mais entregues aos avós maternos do que aos pais, que achando a sua liberdade tolhida pelos nascimentos dos filhos, não se permitiram dedicar-se-lhes em grande parte, delegando muitos dos seus cuidados naqueles, com quem moravam) os dois irmãos refugiavam-se mais um no outro do que no colo dos avós ou dos pais. Frequentaram a escola juntos, até que o percurso académico divergiu. José Miguel estudou sempre no Porto e sentiu demasiado a falta de Ana Maria quando chegou a altura em que ela foi para Lisboa. Sentiu-se desamparado ao faltar-lhe a confidente sempre pronta a ouvi-lo, só a tendo nos poucos fins-de-semana que esta vinha passar com a família. Passou uns maus bocados, com os seus amores frustrados e com a falta da irmã, sem conseguir buscar o apoio no resto da família, mas sobreviveu.

Quando acabou a faculdade, a nova vida profissional de médico dentista levou-o para Coimbra. E é em Coimbra que volta a encontrar Luísa e que lhe sangra o coração outra vez.

(continua)

10/10/2024

Fogo


Naquela tarde, o sol fervia-lhe antipaticamente nas têmporas, ao adentrar-se inconsequente no automóvel, estrategicamente estacionado, e feria-lhe de luz intensa os olhos: nem os óculos escuros lhe escondiam os raios vibrantes. Ainda no dia anterior lhe chovera de improviso e, poucas horas volvidas, um sol sem tréguas o despia de nuvens e se apostava a vesti-lo de fogo. E pensou que precisava de uma cortina de sombra, uma corrente de ar, uns pingos de chuva que o viessem refrescar: ardia.
Dali podia percorrê-la com o olhar quando saísse ou entrasse em casa. E enfim vira-a: bebera-a toda com o olhar. Tinha pensado que era quanto lhe bastava, mas encontrava-se pegado àquele assento, à espera de nova visão. Ela saíra, havia de regressar.
Quanto da vida se suspende de um contacto, ainda que só visual, à distância, mesmo que só um dos lados o saiba, o sinta, o aprecie!

Parecia tomado de febre quando levantou a cabeça para o espelho retrovisor e viu reflectido o seu rosto brilhante de suor, marcado pelo cansaço e pela indecisão. Viu-se o jovem que era, mas sentiu-se velho, ao notar as rugas a marcarem-lhe a testa. Sabia que era preciso construir o futuro, mas então, porque se detinha ante um passado que o prendia numa espécie de limbo, do qual não ousava sair? Queria olhá-la de longe, nem que só uma vez mais, e uma pequena felicidade lhe sorriria. Mas essa felicidade ser-lhe-ia suficiente? Se não podia ser de outra forma, sim, tinha de ser suficiente. Vê-la secretamente, saber que estava bem, encher-lhe-ia os olhos e acalmar-lhe-ia a alma.
Ainda desse modo se agitava quando a avistou de volta: magra, mas belíssima como a conhecera. Escorriam-lhe de cobre os cabelos levemente volteados sobre os ombros, enquanto que os olhos de luar se ocultavam por detrás dos óculos escuros – mas adivinhava-os – e eram fascínio e dor: promessa e recusa. Ali, ao alcance de uns passos: todo o seu tormento, a sua agonia – a sua vida.

(M. Fa. R. )

04/10/2024

A única escolha


Só tinha uma hipótese: ir. Já perdera muito tempo calando o que havia para dizer. Só agora começava a ter noção de que nunca se deveria ter calado.
São as palavras que se calam as que, por vezes, mais doem. Doem como fazem doer as fracturas expostas. E muitas vezes são nódoas negras que aparecem depois de uma pancada. As que ela calara eram tudo isso e muito mais: eram ferida aberta que, por mais curativos que quisesse inventar, não cicatrizava.
Naquela altura não pensou que seria assim. Achou que ficaria tudo bem, que ficaria tudo melhor se se calasse, e que o tempo seria seu aliado. Mas agora, depois dos traumatismos que sofrera em consequência do acidente, olhando para as nódoas negras do seu corpo, que ainda mal se queriam disfarçar, pensava nas outras que tinha por dentro e que lhe doíam na alma. Estivera do lado de lá da vida. E regressara. Agitava-se agora numa convulsão, ao pensar que aquelas palavras não ditas poderiam ter morrido com ela. Palavras em carne viva, que lhe eram sangue escorrendo dolorosamente da ferida recentemente acesa. Sim, tinham sido nódoa negra de sangue pisado. Agora eram chaga com sangue vivo que se lhe vertia para dentro em catadupa e lhe revolvia as entranhas até a sufocar num vómito aflitivo. Chorar, por vezes resolve; mas outras, nem por isso. E chorar não resolvia a sua dor. Tinha que falar. Tinha que o procurar e falar.
Depois de ter despertado de todo um emaranhado de alucinações, tomara consciência de que o tivera outra vez e que, outra vez, o perdera. Se ele tivesse voltado, talvez que não lhe tivesse sido difícil dizer-lhe tudo. Mas ele não voltara. Não voltava. A espera era inútil. E só ela e Deus sabiam o quanto lhe doía tudo. Tudo.
As palavras que se calam agigantam-se dentro do peito e chega uma altura em que têm de eclodir. Mesmo que façam doer ainda mais do que doem. Mas, se para sarar uma ferida tiver que doer ainda mais, que doa! Assim é que já não podia continuar. Falaria. Falaria tudo o que havia para falar. Tudo. Até à última lágrima. Até à última gota de sangue.
Engoliu a enchente de lágrimas misturadas com essa decisão e foi em frente. A vida tinha-lhe dado outra oportunidade que não podia desperdiçar. Só tinha uma hipótese: ir.

(M. Fa. R.)

02/10/2024

Asa ferida


Fugia do que não podia controlar. Fugia magoado com a dor de se sentir inseguro, perdendo-se na fronteira entre a verdade e o medo dela.
Tivera uma efémera felicidade que ainda lhe corria nas veias, lhe percorria as artérias, lhe inundava o cérebro, ao mesmo tempo que se transformava num regato de solidão. “Os lugares dos outros atingem-nos na nossa insegurança!” – Era o pensamento que o levava a um lago parado: um lugar que não estava vago, que era habitado por cisnes brancos, onde não cabia um patinho feio.
Contudo, não conseguia evitar de a imaginar no voo das gaivotas. As gaivotas e os sonhos possuem a liberdade de voar por entre as nuvens, indiferentes à agrura da viagem, apenas sentindo o odor a maresia no arco-íris que perseguem. O voo das gaivotas é sustentado pelas asas; são elas a segurança do voo no sopro do vento.
Mas nem ele era uma gaivota nem as suas asas lhe permitiam voar. Era um patinho feio de asa ferida, que tinha sido atingida na sua ainda débil segurança. Não, não podia aventurar-se no voo - as suas asas mal lhe amparavam a fuga.

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