22/08/2025

Tempestade Vendaval

Sobravam tempos a ameaçar. Céus nublados e semblantes. Desconsertos, sem concertos nem sinfonias. Danças em dó maior.

E chegou, viu e quis vencer.
Em cegueira que se apodera das fragilidades, e destrói em segundos o que levou anos a mal erguer.
Ela desce e rodopia, roda e pia, pia e roda. Enrosca-se e enrola. Rola, rebola, revolve e revolta, às voltas, às soltas, sem tento nem portento que lhe trave e freio; sem meio de remir o que largou ou o devir.

Tempestade vendaval desengonçada atravessa a praça e as ruas; as vielas mais escondidas; os jardins e as florestas; as aldeias preguiçosas e cidades buliçosas, desde o casebre mais tosco até ao palácio real; castiçais e candelabros são apagados num fôlego, sem dó nem piedade de plebeu ou divindade.

Tempestade furacão, fura gente, fura almas, desalmada, descompensada, destrambelhada, sem coração nem entranhas, que causa dores tamanhas, torturas, tonturas e desgostos; salta em rostos pregões aos quatro ventos, arrastando-se pela lama, destelhando até à cama, rodopiando à lareira, soprando pela boca faúlhas de fogueira. Invertebrada sai pelos mundos de qualquer jeito e maneira, sem jeito nem maneira, de soltura e caganeira. Garganeira.

Mas creio firmemente num só Deus que nos governa e vela; quando nos atravancam uma porta, Ele escancara-nos uma janela.

21/08/2025

A Casa dos Ratos — intermezzo (8)

 (anterior)

Toda a quadrilha tem um chefe. E eles eram quatro – adiantou-se o vermelhinho: “Eu sou o chefe! Vamos lá, que se faz tarde!” 

E aí vão o Vermelhinho, o Azulinho, o Verdinho e o Amarelinho numa desfilada apressada em fila pelo carreiro, no desfiladeiro do túnel a desembocar numa fresta, alargada pelo Tonecas de tanto por lá remexer. E uma luz lá ao fundo brilhava para eles, que já a estavam a ver. Mas são os olhos do Gato que brilham tanto no escuro na ânsia de os comer. Um sobressalto. Um salto. Um “Alto!... Para trás!... que está ali o rapaz!”
Tiveram de recuar e esperar por melhor oportunidade. 

O Tonecas percebera que tinham tentado fugir. Ficou mais alerta, mas à futrica. Desejava-os há tanto tempo que temia que lhe escapassem sem lhes conseguir tocar. Disfarçou, fechou um olho e abriu outro, espreitou pelo buraco, esperou, esperou, esperou, eles haviam de vir. Fingiu um sono profundo. E adormeceu... e acordou e… 

...é agOora! Deu um salto estendendo as mãos e… 

Quase, quase!... por um triz. Ao lado do seu nariz.

Caramba! (meneou a cabeça), como foi possível?! Estava apardalado... Tinham passado rapidamente debaixo dos seus bigodes, caladinhos como só ratos, que só viu o rabo do último. 

Ainda correu, esbracejou, procurou, fungou, miou, qual quê? Agora?! Muito tarde e a má hora! Já deviam ter-se alojado nalgum canto bem escondido. Ah, como lhe tinham apetecido, como lhe apeteciam ainda, que nóia! Cabisbaixo e atordoado retirou-se, já nada havia a fazer, melhor seria agora esquecer. 

19/08/2025

Arrepiar Caminho I


Valha-me Nossa Senhora, 
Mãe de Deus de Nazaré! 
A vaca mansa dá leite, 
 a braba dá quando quer. 
A mansa dá sossegada, 
a braba levanta o pé. 
Já fui barco, fui navio,
mas hoje sou escaler. 
Já fui menino, fui homem, 
só me falta ser mulher. 
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré! 
(Ariano Suassuna, Auto da Compadecida)

A estrada é larga. Asfaltada.
Ouso o caminho quando o sol se reclina, por cima das ramagens, em direcção ao mar. Deixo a estrada principal e desço a ladeira íngreme  via semi-nova, pouco movimentada  rumo à natureza, levando pela trela o meu camarada de passeio. Uns metros adiante, solto-lhe a trela para o deixar correr à sua vontade, agora que a estrada é só para nós.
Faz-se bem este caminho, em modo de passeio, sempre a descer.

A dezena vai-me rolando entre os dedos da mão direita, enquanto os pés vão pisando o asfalto negro na sede da caminhada. Mistérios Dolorosos.

Lá em baixo, no vale, onde o arvoredo se torna mais denso, o meu amigo já anda a farejar as bermas da encruzilhada, enquanto espera que eu lhe indique a direcção a tomar. Hoje vamos virar à esquerda, sempre pelo asfalto, deixando o caminho da direita, em terra batida, para percorrer amanhã. Ainda ao longe, faço-lhe sinal com a mão e ele avança resoluto. Gosta de ir sempre à frente, no comando, como se fosse ele o dono da viagem, e eu permito-lhe esse gosto.

Uma ligeira subida e deixamos o asfalto para trilhar o caminho da floresta que nos fica do lado esquerdo. O caminho é nosso conhecido de outras caminhadas. Descemos agora. Ele corre; eu vou ficando um pouco para trás, assobiando-lhe de tempos a tempos, para que não pense em dispersar-se por outros lugares que não o caminho que levamos. Na bolsa, que levo a tiracolo, enfio a trela – que já me cansa na mão esquerda – e tiro a máquina fotográfica para tirar umas fotos a uns maciços de cogumelos que me surpreendem o olhar, que grande alfobre nasceu aqui!

Continuo. No próximo cruzamento lá está ele novamente à minha espera, olhando-me ansioso. Indico-lhe a subida, à direita, e seguimos quase lado a lado, agora que é a subir. A meio da ladeira há um carreiro à esquerda, por onde já fomos uma vez, até uma pequena capela; e uma curva à direita na continuação desta estrada de pedra sobre pedra. Bordejam-na alecrins, rosmaninhos, silvados de amoras ainda verdes e algumas flores cor-de-rosa de chícharos-selvagens. Tiro mais umas fotos – este mundo é um jardim que me seduz!

Guardo a máquina fotográfica e penso que está na hora de voltar para trás, porque já andámos a metade do tempo que determinei para esta caminhada, e é preciso fazer outro tanto tempo no mesmo caminho de regresso, antes que se faça noite. Mas…

17/08/2025

Subir o Caminho II


Acordo cansada. Com o coração a querer saltar-me para fora do peito. Há dois dias que ando cansada. Um cansaço em estado crescente a escrever-me no corpo rimas de todas as coisas e de coisíssima nenhuma. Sinto-me quase apática, quase sem qualquer vontade. Como se se tivesse levantado, à minha volta, uma nuvem de pó desta cruzada. O que quererá o corpo falar-me? Há, por vezes, palavras tão difíceis de se deixarem agarrar… e entender. 

Quem me dera uma chuva miudinha que me refrescasse a fronte latejante, que orvalhasse o pó do caminho. Que bom seria sentir o cheiro a terra molhada, para que esta penitência fosse menos custosa, um pouco menos pesada, menos severa; mais airosa, mais suave… mais lavada. 

É assim, no meu amargo soluço, que a madrugada me encontra, começando a espreitar-me, avidamente, por debaixo da porta. Primeiro, uma nesga de claridade, depois um céu aberto. E entra no quarto uma sinfonia de luz, recortada a chilreio da passarada. Percebo que as estrelas lá fora, no céu, já se despediram da noite, e está agora o dia a ser torneado pelo sol. E o meu corpo a pedir mais repouso, sem se atrever a levantar! 

O dia ergue-se e enche toda a casa, pássaro louco a esvoaçar esbaforido numa madrugada de Verão, sacudindo as asas e agitando tudo com elas. A manhã a esticar as penas, a espanejar as asas ao sol. E eu a encolher-me, a preguiçar, sem me apetecer espreguiçar-me, mole, apesar da luz intensa do sol a enfiar-se-me pelo quarto, pela cama afora, pelos lençóis adentro; apesar das vozearias da passarada, das labutas a começar lá fora. 

Maldito cansaço que me prega à cama, que não se desprega de mim. 


«Há dias em que o sol nasce quadrado, 
em que o fogo gela 
e em que a maré está vazia 
de vontade de a encher 

Há dias em que o silêncio ensurdece, 

em que o amor perde a coragem 
e em que o norte perde o rumo. 

Nestes dias, 

há uma alma angustiada 
que clama por consolo 
mas o vento cala a sua voz. 

A esperança esmorece, 

a força desvanece, 
a fé hesita, 
a luz apaga-se. 

Nesta noite escura, 

que me sufoca a alegria 
e me impede de respirar a Tua paz, 
que eu saiba perseverar no meu caminho, 
mesmo sem saber qual é. 

Que eu saiba ter paciência 

e manter acesa a chama da confiança, 
mesmo sem saber porquê. 

Que eu saiba acreditar que nela permanecerei, 

impotente e só, 
apenas o tempo que for necessário…»
(Raquel Dias, Há dias assim, em: Renascer Do medo à confiança)

11/08/2025

O Desembaraço


De molhos de garrafões de plástico vazios nas mãos, aproximo-me da fonte para os encher de água. Sabe bem assentar os pés, descalçados os chinelos, no pequeno lastro alagado. No tempo do calor é fresquinha a água desta nascente que jorra continuamente em bica desembaraçada; como desembaraçadas são as duas mãos idosas que ali esfregam a roupa ensaboada na pedra. 
Dou as boas-tardes e peço licença para encher os garrafões, se não for incomodar. 
– Sirva-se à vontade! 
– Obrigada! Sabe bem estar aqui com os pés fresquinhos… – digo para meter conversa. 
– Pois é. Agora é mais fresquinha e no Inverno é mais morninha… 
Vou enchendo vasilha a vasilha, enquanto ela vai esfregando e molhando a roupa devagar na bacia com água, virando-se de lado para mim. 
 – Só há quem a venha aqui estorvar… – digo, pensando que posso estar a demorar, e ela precisará de se servir da bica da água. 
– Não estorva nada. A gente nunca estorva ninguém. 
– Se calhar andamos mas é por cá a estorvar-nos uns aos outros… 
– Não senhora! A gente não estorva nada. Antigamente tinham seis e sete e oito ou nove filhos e não se estorvavam uns aos outros… agora são menos, não há razão para se estorvar ninguém. 
– É bem verdade. Agora é só um, ou dois… quando é!... 
– E tudo se criava. Você se calhar não sabe… não era do seu tempo, mas, e quando se partia uma sardinha em dois ou três só com um bocadito de broa?… agora é só lambarices… e coisas caras. 
– Realmente… ainda dizem que agora os tempos são maus… e que não dá para se viver… as pessoas habituam-se ao que é bom, ao conforto, e já ninguém quer passar com pouco e fraco. 
– Ah, mas olhe, acolá em cima há uma rapariga, você não deve conhecer, que não é de cá… bem, quem mora ali são os pais, ela agora já não mora cá, que já está casada; quero dizer, casou e separou-se e voltou a casar ou a juntar-se… 
– Pois… agora já não se estranha isso… 
– É assim!... Pois essa rapariga trabalha, ou trabalhou, num talho. E contava ela que vinha a carne para o talho e ia-se vendendo para uns e para outros… e passava-se uma semana e nunca se vendia toda… e a carne que ficava começava a ganhar bichos, daqueles com um rabito, você não sabe?... têm um rabito… uns bichos com um rabito… e depois passavam aquela carne por uma máquina e bichos e tudo, moíam aquilo tudo… para… 
– Para fazer hambúrgueres?... 
– Isso. E sei lá mais o quê… olhe, depois era tudo vendidinho!... 
Sorri levemente, num misto de assentimento e incredulidade, acabando de encher os garrafões e acabando a conversa por ali mesmo com um adeus. 
E a água a jorrar sempre certinha e desembaraçada ficou; como certinhas e desembaraçadas as palavras de quem com mestria as ditou.

10/08/2025

A rede


Há uma rede de arame enleado, pregada em estacaria por cima do muro; caída a certo passo, em certo tempo derrubada, e a par e passo pisada. É uma vedação que nada veda: nem vento, nem maresia, nem tempo, calor ou invernia; nem vegetação, pássaro, insecto, luz da noite ou do dia; ninguém. 

O tempo vem empurrado pelo marulhar ao encontro da praia e parece ir, dolente, levitar nas asas das gaivotas que não param de dançar, suspensas, lá em cima, num céu acinzentado, meio doente, meio enfarruscado. 

A rede delimita o olhar de um ao outro lado – fora e dentro, só olhar. De fora, atrás, o mar; do outro lado, lá dentro, o tempo custa a passar. De fora, os olhos só vêem a espera, pesada, a arder. 

Por um pouco de tempo, o olhar esqueceu-se de se envolver, semicerrou-se, cansado de pestanejar; e o tempo suspendeu-se, amarelo, na ponta de uma estaca onde a rede se queda, senhora de si, empertigada, enviesada, salpicada da maresia demorada…
 
Dali a outro pouco tempo, do nada, bateu o sol ao atrever-se a espreitar. Um ar de graça que, quer se queira ou não queira, de qualquer maneira, passa. Portanto, sol de pouca dura (e ai, a fome… que ninguém a atura!). 

Mas o tempo é para comer e estar. Porque, do lado de dentro da rede, há outra rede que faz o tempo tardar.

07/08/2025

Se chove...


Chove. Chove se chove!

A andorinha estacionada no fio do telefone espaneja as asas de consolação.
Agora: um relâmpago, seguido de trovão que ecoa céu cinzento além.
A andorinha, porém, continua no mesmo sítio, alegre no seu banho de chuveiro, soltando, de vez em quando, a sua cantilena de satisfação.
Em baixo, dois melros pulam no tapete verde molhado do pasto verde recém-cortado; outra andorinha rasou o muro alto, indo enfiar-se debaixo do telheiro, direita ao ninho acolhedor das suas crias, que lá vivem o seu pequeno mundo o dia inteiro.

Os melros acabam por abandonar o recinto; e a andorinha, não minto, continua no seu duche matinal; ao mesmo tempo que um outro pardal se passeia em pequenos voos rasantes às folhagens verdes das plantas do canteiro do quintal, nelas pousando aqui e ali sem se demorar, beijando pérolas luzentes e macias de água, como quem as quisesse namorar.

A chuva abrandou um pouco, e a andorinha deu por finalizada a sua mais que tarefa refrescante sagrada. Foi e voou pelos ares na parda madrugada, enquanto eu observava pela janela, encantada.

Logo logo, a chuva recomeçou. E a andorinha voltou. Ao mesmo preciso lugar. E dali mirava o mundo ao redor. Era a sua praia. 

Eu é que não me posso quedar mais tempo à janela a mirar, não vá o mundo fugir ou parar. Daqui para a frente, se quiser escrever o que a andorinha fizer, só se me propuser inventar.

E se chove!...

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