01/04/2008

[5] Tempestade

Nos vitrais, a chuva embate com alguma violência.
Colo o rosto à janela e sorvo o ar pálido da noite.
Vindo da cozinha, atravessando a parede do quardo, o crepitar da lareira e o tilintar da loiça que a mãe lava no alguidar.
Estas noites rasgadas pela ventania conjugam sonhos que vão esvoaçando.
As cortinas de chuva ocultam o rapaz do luar, que não ousa sair à rua debaixo do temporal. Decerto estará sentadinho ao borralho, a queimar o feixe das vides que ontem carregava às costas, espetado na forquilha.
A casa da tia, ali mesmo à frente da minha janela embaciada, assim vista de lado e com o seu depósito da água no terraço, é um castelo.
O rapaz do luar lá se resolveu a voar por entre os rochedos das nuvens, montado no seu cavalo alado. Ui, como é veloz! Atrás de si, deixa um rasto luminoso que percebo lá ao longe.
Um trovão!... ponho-me à escuta... um barulho chega até mim através da parede do quarto. Os pais discutem novamente... as vozes alteradas provocam-me um sentimento que não consigo descrever. O meu coração começa a ficar apertado, sufocado, não cabe no peito e quer saltar para fora de mim. Atiro-me de bruços para cima da cama e envolvo o corpo nas cobertas. Começo a soluçar, dando vazão às lágrimas libertadoras. Lembro o conselho da avó, quando lhe confidenciei a amargura do meu coração, "reza, filha, reza...".
É isso que faço, procurando abstrair-me de tudo o mais.
O candeeiro acaba por ficar sem petróleo, a torcida quer apagar-se. A tempestade parece finalmente ter acalmado. E o gato, enroscado no tapete de retalhos que a avó me fez, faz tempo que deixou de passear o rabo pelo meu pé que espreita o soalho, e dorme agora a merecida soneca, depois de ter caçado o ratito que saltou de trás do cadeirado.

(Publicado em: Memória Alada, 2011)

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