27/04/2008

Espelho meu...

Hoje o pai levou-me ao cabeleireiro. E comprou-me uma calça comprida e uma camisola com comboios na frente.
A mãe barafustou. Isso eram ares que se dessem à garota? "Olhem para esse cabelo! Não era muito mais lindo como estava? Era preciso ir gastar dinheiro à cabeleireira para lhe fazerem uma coisa destas? Eu não lho tenho arredondado sempre? E as calças!? Onde é que já se viu uma cachopa de calças? Tu não tens juízo nenhum... é por essas e por outras que..."
Fechei-me no meu quarto à espera que se calassem.
O pai é mais novo do que a mãe. Não em idade, mas em ideias, na maneira de ser e de viver. Se calhar por conhecer e falar com tantas pessoas. Quando sai gosta de ir bem vestido e engravatado e de corrente do relógio à cintura. E tem orgulho em me apresentar aos seus conhecidos.
A mãe é antiquada. Não tem gostos. Mais parece minha avó. Só me quer vestir com os vestidos de chita que ela própria costura.
Mas quando eu era mais pequenina era uma princesa. Ouço contar que, quando ainda mal falava, o tio do Brasil, quando cá veio, me trouxe um casaco de crochê branquinho, que fez a inveja da minha vizinha:
- Eh cachopa, pareces um Bispo!!!
Quando alguém me perguntava o que ela me tinha chamado, eu respondia "O Bico! O Bico!"
Dizem-me que eu era uma menina "nas mãos das bruxas"...
Eu não sei muito bem o que isto quer dizer, mas penso que é por eu ser a única criança pequena da família toda. As bruxas devem ser as minhas três primas, que são raparigas crescidas que já vão para a "Borda d'Água", e que gostavam muito de andar sempre comigo ao colo.

Já não estou a ouvir vozes. É altura de ir ao quarto dos pais ver se estou bonita!
Neste quarto há dois espelhos grandes, um no guarda vestidos, de um lado da cama e outro no peciché, do outro lado, um em frente do outro. É aqui que gosto de me mirar!
"Espelho meu, espelho meu, haverá alguém com um sorriso tão lindo como o meu?!"

É o pai que me tem ensinado a ser vaidosa. Para desespero da mãe.
[7]
(Publicado em: Memória Alada, 2011)

26/04/2008

Neblinas I

Era domingo à tarde. Um domingo igual a muitos outros domingos, aquele em que mergulhei neste lodo em que me sinto atolada.

Ainda não sei muito bem como aconteceu. Todo o meu corpo se encontra ainda dorido. Deitada nesta cama de hospital, tento vasculhar a minha memória à procura de um ponto de referência, uma luz que me ilumine sobre o momento em que tudo ocorreu.
Recordo-me de entrar no carro do pai, o Fiat 1100...
- Querida, não te mexas! Dói-te a cabeça? – Pergunta-me a enfermeira acabando de entrar no quarto.
Respondo que não, a cabeça não... O que me dói mais é o braço.
O braço esquerdo foi partido pelo cotovelo. E o rosto... Não sei como está o meu rosto. Sinto-o seco e repuxado em alguns sítios, noutros parece-me húmido, mas não posso mexer-lhe para verificar.
A enfermeira faz novamente o curativo, usando o mesmo método de sempre: lava-o suavemente com uma compressa embebida em água morna e aplica uma tintura vermelha. A minha cara deve ficar parecida com uma rosácea, de tão pintada! Se me olhasse ao espelho, acho que teria um sobressalto, ao reparar na figura que devo estar a fazer.
- Querida, não te dói mesmo a cabeça?
Respondo outra vez que não.
A enfermeira sai do quarto e deixa-me de novo com os meus pensamentos.

Ontem os pais vieram-me visitar e trouxeram-me um bolo. E a enfermeira, ao ver, zangou-se com eles, porque eu não podia estar a comê-lo. Ainda ouvi falar em fractura de crânio... mas, a sério que não me dói a cabeça. E, se doesse, se calhar eu também não diria nada, com medo que me operassem...
Mas, agora, é preciso que eu procure as raízes desta loucura que não me deixa recordar tudo o que se passou.
Lembro-me que, após o acidente, vi o rosto do pai branco como a cal. Só não me consigo recordar como é que fui cair do carro em andamento. Essas lembranças ainda estão no fundo da minha memória, mas sei que, aos poucos, irão emergir.

[Texto enviado ao 4.º Jogo das 12 Palavras - Texto 22]
E
(Publicado em: Memória Alada, 2011)

06/04/2008

À descoberta


A luz que se escapa pelas frinchas da porta do quarto não chega ao quarto dos pais, que fica no outro extremo da casa. Por isso não corro o risco de ser surpreendida acordada.
Desse modo, devoro o livro, à luz do candeeiro, e nem dou pela noite passar.
Uma das vantagens de se ter irmãos, rapazes, mais velhos, é a de ter acesso a livros que, uma menina da minha idade, de outro modo não teria.
Durante o dia, com eles fora, dou por mim a vasculhar-lhes as prateleiras. Estas são uma tentação para a minha curiosidade. Paulo e Paládia, Amor de Perdição - arregalo os olhos - e tantos e tantos outros...
Vou levando um a um, que não descanso enquanto não leio o mais rapidamente que consigo.
A par da leitura, a imaginação vai voando para a terra dos sonhos e é como se flutuasse num balão colorido à procura do Arco-íris.
Já começa a clarear quando me proponho, finalmente, começar a dormir.
O chilrear dos passaritos é a música que me embala o sono...
[6]
(Publicado em: Memória Alada, 2011, pág. 18)

01/04/2008

Tempestade

Nos vitrais, a chuva embate com alguma violência.
Colo o rosto à janela e sorvo o ar pálido da noite.
Vindo da cozinha, atravessando a parede do quarto, o crepitar da lareira e o tilintar da loiça que a mãe lava no alguidar.
Estas noites rasgadas pela ventania conjugam sonhos que vão esvoaçando.
As cortinas de chuva ocultam o rapaz do luar, que não ousa sair à rua debaixo do temporal. Decerto estará sentadinho ao borralho, a queimar o feixe das vides que ontem carregava às costas, espetado na forquilha.
A casa da tia, ali mesmo à frente da minha janela embaciada, assim vista de lado e com o seu depósito da água no terraço, é um castelo.
O rapaz do luar lá se resolveu a voar por entre os rochedos das nuvens, montado no seu cavalo alado. Ui, como é veloz! Atrás de si, deixa um rasto luminoso que percebo lá ao longe.
Um trovão!... ponho-me à escuta... um barulho chega até mim através da parede do quarto. Os pais discutem novamente... as vozes alteradas provocam-me um sentimento que não consigo descrever. O meu coração começa a ficar apertado, sufocado, não cabe no peito e quer saltar para fora de mim. Atiro-me de bruços para cima da cama e envolvo o corpo nas cobertas. Começo a soluçar, dando vazão às lágrimas libertadoras. Lembro o conselho da avó, quando lhe confidenciei a amargura do meu coração, "reza, filha, reza...".
É isso que faço, procurando abstrair-me de tudo o mais.
O candeeiro acaba por ficar sem petróleo, a torcida quer apagar-se. A tempestade parece finalmente ter acalmado. E o gato, enroscado no tapete de retalhos que a avó me fez, faz tempo que deixou de passear o rabo pelo meu pé que espreita o soalho, e dorme agora a merecida soneca, depois de ter caçado o ratito que saltou de trás do cadeirado.
5

(Publicado em: Memória Alada, 2011)

poderá também gostar de:

Mais Rabiscos