24/06/2008

Neblinas I

Era domingo à tarde. Um domingo igual a muitos outros domingos, aquele em que mergulhei neste lodo em que me sinto atolada.

Ainda não sei muito bem como aconteceu. Todo o meu corpo se encontra ainda dorido. Deitada nesta cama de hospital, tento vasculhar a minha memória à procura de um ponto de referência, uma luz que me ilumine sobre o momento em que tudo ocorreu.
Recordo-me de entrar no carro do pai, o Fiat 1100...
- Querida, não te mexas! Dói-te a cabeça? – Pergunta-me a enfermeira acabando de entrar no quarto.
Respondo que não, a cabeça não... O que me dói mais é o braço.
O braço esquerdo foi partido pelo cotovelo. E o rosto... Não sei como está o meu rosto. Sinto-o seco e repuxado em alguns sítios, noutros parece-me húmido, mas não posso mexer-lhe para verificar.
A enfermeira faz novamente o curativo, usando o mesmo método de sempre: lava-o suavemente com uma compressa embebida em água morna e aplica uma tintura vermelha. A minha cara deve ficar parecida com uma rosácea, de tão pintada! Se me olhasse ao espelho, acho que teria um sobressalto, ao reparar na figura que devo estar a fazer.
- Querida, não te dói mesmo a cabeça?
Respondo outra vez que não.
A enfermeira sai do quarto e deixa-me de novo com os meus pensamentos.

Ontem os pais vieram-me visitar e trouxeram-me um bolo. E a enfermeira, ao ver, zangou-se com eles, porque eu não podia estar a comê-lo. Ainda ouvi falar em fractura de crânio... mas, a sério que não me dói a cabeça. E, se doesse, se calhar eu também não diria nada, com medo que me operassem...
Mas, agora, é preciso que eu procure as raízes desta loucura que não me deixa recordar tudo o que se passou.
Lembro-me que, após o acidente, vi o rosto do pai branco como a cal. Só não me consigo recordar como é que fui cair do carro em andamento. Essas lembranças ainda estão no fundo da minha memória, mas sei que, aos poucos, irão emergir.

[Texto enviado ao 4.º Jogo das 12 Palavras - Texto 22]
E
(Publicado em: Memória Alada, 2011)

14 comentários:

Paulo disse...

Retratos "da guerra civil" das estradas.
Há sempre um motivo que estabelece um nexo de causalidade que determina uma acidente de viação. Muitas vezes resulta que o acidente ocorreu por violação do dever especial de cuidado dos pais...outras vezes não. Há conclusões difíceis de aceitar... mas conclusões....são conclusões
Paulo

Anónimo disse...

obrigada pela visita ao meu cantinho e pelo apoio. vou dar por aqui uma espreitadela.

Beijoca,

Sónia

Justine disse...

Texto sem um sobressaltos, corrido e leve como se não tivesse as tais "balizas", que tanto me fazem suar.
Gostei também da música:))
Obrigada pela visita!

Bichodeconta disse...

Ler-te é simplesmente delicioso... O talento emerge de ti com naturalidade, as palavras fuiem..Delicioso, serenos momentos .. Parabéns.. um abraço, ell

Carol disse...

Gostei muito do resultado final.

Borboleta disse...

Esta série "neblinas" é maravilhosa.
Beijos carinhosos

" R y k @ r d o " disse...

Imagino ser apenas um conto. Triste, dorido, mas ao ser lido, parecendo tão real

Sem dúvida um retrato fiél do que, infelizmente, acontece diariamente nas estradas do mundo

Cumprimentos poéticos

edna figueiredo disse...

Olá querida amiga Fá!
Melancólico e triste, mas cheio de vida e verdade.

Um grande beijo, com carinho e admiração.
Deus cuide sempre de ti 🌹

By Me disse...

As vicissitudes da vida, todos temos pequenas tragédias para narrar, outros, dramas traumáticos, muito traumáticos...ex: Niki Lauda, Ayrton Senna e muitos outros....

Beijinhos

AC disse...

Fiquei curioso, Fá. Há continuação?
(Bom enquadramento da cena, a descrição faz-se num ritmo cadenciado, eficaz)

Fique bem e... cuide-se!

Fá menor disse...

Sim, há continuação aqui: https://ensaio12.blogspot.com/2008/07/neblinas-ii.html
e no separador página soltas: https://ensaio12.blogspot.com/search/label/P%C3%A1ginas%20soltas

:)

J.P. Alexander disse...

buen relato es terrible cuando alguien le pasa eso. Me conmoviste te mando un beso

Porventura escrevo disse...

Uma mensagem sempre válida num. Texto bem escrito

Ana Freire disse...

Um conto que nos transporta para muitas realidades... com desfechos ainda bem menos felizes... lembrei-me da jovem filha do T. Carreira.
Como sempre, um excelente texto, muitíssimo bem construído, que nos prende a atenção, do princípio ao fim!
Beijinhos! Feliz semana!
Ana

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