25/07/2014

Arrepiar Caminho I


Valha-me Nossa Senhora, 
Mãe de Deus de Nazaré! 
A vaca mansa dá leite, 
 a braba dá quando quer. 
A mansa dá sossegada, 
a braba levanta o pé. 
Já fui barco, fui navio,
mas hoje sou escaler. 
Já fui menino, fui homem, 
só me falta ser mulher. 
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré! 
(Ariano Suassuna, Auto da Compadecida)

A estrada é larga. Asfaltada.
Ouso o caminho quando o sol se reclina, por cima das ramagens, em direcção ao mar. Deixo a estrada principal e desço a ladeira íngreme  via semi-nova, pouco movimentada  rumo à natureza, levando pela trela o meu camarada de passeio. Uns metros adiante, solto-lhe a trela para o deixar correr à sua vontade, agora que a estrada é só para nós.
Faz-se bem este caminho, em modo de passeio, sempre a descer.

A dezena vai-me rolando entre os dedos da mão direita, enquanto os pés vão pisando o asfalto negro na sede da caminhada. Mistérios Dolorosos.

Lá em baixo, no vale, onde o arvoredo se torna mais denso, o meu amigo já anda a farejar as bermas da encruzilhada, enquanto espera que eu lhe indique a direcção a tomar. Hoje vamos virar à esquerda, sempre pelo asfalto, deixando o caminho da direita, em terra batida, para percorrer amanhã. Ainda ao longe, faço-lhe sinal com a mão e ele avança resoluto. Gosta de ir sempre à frente, no comando, como se fosse ele o dono da viagem, e eu permito-lhe esse gosto.

Uma ligeira subida e deixamos o asfalto para trilhar o caminho da floresta que nos fica do lado esquerdo. O caminho é nosso conhecido de outras caminhadas. Descemos agora. Ele corre; eu vou ficando um pouco para trás, assobiando-lhe de tempos a tempos, para que não pense em dispersar-se por outros lugares que não o caminho que levamos. Na bolsa, que levo a tiracolo, enfio a trela – que já me cansa na mão esquerda – e tiro a máquina fotográfica para tirar umas fotos a uns maciços de cogumelos que me surpreendem o olhar, que grande alfobre nasceu aqui!

Continuo. No próximo cruzamento lá está ele novamente à minha espera, olhando-me ansioso. Indico-lhe a subida, à direita, e seguimos quase lado a lado, agora que é a subir. A meio da ladeira há um carreiro à esquerda, por onde já fomos uma vez, até uma pequena capela; e uma curva à direita na continuação desta estrada de pedra sobre pedra. Bordejam-na alecrins, rosmaninhos, silvados de amoras ainda verdes e algumas flores cor-de-rosa de chícharos-selvagens. Tiro mais umas fotos – este mundo é um jardim que me seduz!

Guardo a máquina fotográfica e penso que está na hora de voltar para trás, porque já andámos a metade do tempo que determinei para esta caminhada, e é preciso fazer outro tanto tempo no mesmo caminho de regresso, antes que se faça noite. Mas…

17 comentários:

  1. E quem de nós uma vez na vida não teve de arrepiar caminho?
    O que muitas vezes assusta já não é a distância mas a necessidade de retroceder sem enganos procurando dar amais sentido à caminhada.

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  2. Boa noite Fá, como sempre fabulosa a sua narrativa!
    É um gosto acompanhá-la neste trajecto tão rico em aromas e cores da natureza, como se fosse um quadro vivo!
    Um beijinho e bom fim de semana.
    Ailime

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  3. Os Caminhos são para serem percorridos com, ou sem, companhia.
    O importante é que o rumo seja certo e seguro para que o regresso se torne em satisfação.
    Bom texto. Parabéns.


    Beijos


    SOL

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  4. Uma excelente narrativa , que li com muito prazer !
    Obrigada pela partilha !

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  5. Bela narrativa, abraço Lisette,

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  6. Querida Fá
    As palavras e a música... o sonho..
    Beijo
    Daniel

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  7. Adorei fazer metade desta caminhada contigo. Como o teu cão, também aguardava que dissesses para que lado íamos em cada cruzamento...
    Também gostei do poema inicial. Não conhecia.
    Fá, tem um bom fim de semana.
    Beijo.

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  8. Ariano Suassuna e um belo texto de Fa Menor...vou encerrar a tarde numa boa.
    Beijinhos!!!

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  9. .

    .

    . a.setembro.me de véspera . posso ? . :) .

    .

    . é urgente arrepiar(mos) caminho . sim .

    .

    . um beijo meu .

    .

    .

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  10. ... mas às vezes não dá vontade de voltar, não é? :) belo texto, Fa; às vezes, vale a pena arrepiar caminhos! Boa semana.

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  11. O caminho tem seu encantos mas, se longo, há sempre a volta a preocupar rss. Um texto encatador. Bjs.

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  12. Há caminhos que valem a pena percorrer bem boa companhia!

    🤚👍💋

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  13. Arrepiar caminho parece ser a sina de qualquer português
    😊

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  14. Que delicada postagem, Fá.

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  15. Adorei este poético passeio, em que saltitei atrás de cada palavra sua... feito de encanto e de responsabilidade! Voltar para trás, a tempo, é preciso... mas... onde será que este mas nos pode conduzir?...
    Fica a semente da curiosidade, já a desenvolver-se para um próximo passeio...
    Beijinhos
    Ana

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  16. 🪶Olá Fa,
    🌾 Neste domingo, que a claridade te acalme,
    🌾 Que a tarde se estende em uma brasa tenra,
    🌾 A mente em clara estadia, longe do tumulto cinzento,
    🌾 Em um jardim de paz que o dia embeleza.
    🌾 E que o teu coração brilhe como um céu sem nuvens.
    Tomei a liberdade de me convidar para sua lista de amigos,
    eu convido você com grande prazer em meus universos tão abaixo

    https://les-murmures-de-velours.blogspot.com
    https://lencredesnuitseternelles.blogspot.com
    📜 Beijos💋 🅁🄴🄶🄸🅂 🐾⛱♡

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  17. A volta, pelo mesmo caminho, é a garantia de que nada ficou de ser visto.
    Amei o jeito como você conta uma história! Amei, de verdade!!!

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Truman Capote diz:
«Quando se trata de escrever,
acredito mais na tesoura do que na caneta.»...
Mas eu escrevo aqui por entre o imaginado e o sentido; e
«Entre meus rabiscos e minhas ideias há um mundo de sentimentos.» (Marcelle Melo)
.
Leia pf: Indicações sobre os Comentários

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