08/12/2014

Subir O Caminho IV


E eis a fonte. Coberta de heras, revestida de musgos. O lastro quase repleto de agriões. Será que ainda tem água dentro, ou terá secado ou escoado toda pelas frestas? O que estará por detrás das janelas de olhar furtivo? Água? Ou apenas fantasias de outras eventualidades?

Um mundo abandonado, escorrido; leito de prantos, de confidências, calores, alvores e… também maledicências. Era uma bacia à cabeça com um alguidar emborcado em cima da roupa suja e, às vezes, também um cântaro debaixo do braço: assim se fazia o caminho, pelo calor ou de madrugada, para que a barrela voltasse bem asseada. Na pia roupa molhada, na pedra a roupa esfregada e batida, depois passada e torcida, pronta a ser estendida para secar no estendal… Aqui se lavaram roupas e outras vidas; se branquearam linhos e outras tendas; se despejaram sujidades e se debateram contendas; aqui chegaram panos com nódoas e foram corados ao sol; farrapos foram rasgados por não terem mais lavagem; braços e pernas se molharam, mas nem sempre se banharam; bocas entraram mudas mas não partiram caladas; por aqui passaram gentes desassombradas e outras que se viram marcadas por ferrões e ferroadas de moscardos e de vespas, mas também de palavras proferidas sem dó nem piedade: as mulheres quando se juntam “cai o Carmo e a Trindade”. Uma fonte de água pura, fresquinha para beber, onde tantas vezes vim encher o barrilito de barro; e nem essa água, apetecida e leve, lavou bocas encardidas, que só se sabiam bem entretidas a falar na vida alheia. Que fonte esta, sempre tão cheia e agora tão vazia!… 

Será que ainda tem água dentro, será que a nascente ainda não secou? Espreito a uma janela: nada, está seca; espreito a outra: esta está cheia. Experimento abrir a torneira que lhe fica abaixo: ainda não enferrujou muito e escorre. O Snoopy aproveita para beber. Eu não me aventuro a tanto. Ainda há água!, ao menos para o Snoopy. Porque “até os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos.” (Mt. 15, 27) 


Como Pedro, também Te digo: 
Salva-me, Senhor! 
Tenho medo de andar sozinho 
Mas, creio que és Salvador. 

Nas águas da minha vida 

Agitadas pelo vento 
Eu não posso navegar 
Se não estiver atento.

Tu vens sempre ao meu encontro 
Eu é que não te reconheço 
Mas quando Tu te revelas 
Humilde, Te agradeço.

Sou um homem pecador 
Mesmo assim Tu me salvas 
Das quedas de que sou autor 
És sempre Tu que me levantas.

Nos meus medos e receios 
Para Ti, Senhor, me volto 
Nas minhas dúvidas e anseios 
Diante de Ti me prostro.

E quando Te reconheço 

Nada me pode abalar 
Só em teu braço seguro 
Eu me posso ancorar. 
(Pe. José António Carneiro)

16 comentários:

Nilson Barcelli disse...

A máquina de lavar a roupa acabou com toda a poesia das lavadeiras. E já ninguém põe a roupa a corar...
Mais um excelente texto. Como sempre, aliás.
Tem uma boa semana, querida amiga Fá.
Beijo.

O Árabe disse...

E esta é uma verdade, Fa: sempre existirá água a correr (ainda que seja apenas um fio), para aqueles que buscam o manancial do Universo. Belo texto, amiga; boa semana.

SOL da Esteva disse...

Espantosa descrição duma verdade, remota no tempo, actual no sentido.
Gostei deste "ruminar" do passado.

Beijos


SOL

Smareis disse...

Mais um excelente texto que me fez pensar.
Vou fazer uma pausa no meu blog por alguns dias, só voltando em Janeiro...
Desejo que você tenha um Natal com alegria, felicidade, e que as esperanças se concretizem.
Feliz Natal e um Ano Novo repleto de realizações!
São os meus sinceros votos para você e toda a sua família.
Grande abraço !

Maria Luiza disse...

O que dizer, Fá de um texto tão lindo, uma poeisa tão marcante? Benditas sejas! Um feliz, abençoado e próspero 2015! Meu forte abraço!

" R y k @ r d o " disse...

Com os esgotos a água que hoje corre não será certamente boa para lavar roupa. Amei o texto e o poema
.
Feliz inicio de semana.

Ana Freire disse...

As fontes... eram as redes sociais de outros tempos... o mundo comentado... passava por elas...
Formidável o texto, e o poema escolhido, Fá!
Durante os próximos dias, umas palavrinhas da Fá, ficarão lá em destaque no meu canto... e também durante os próximos dias, passarei nos seus demais cantinhos... em modo de pandemia, a minha disponibilidade continua sendo mais intermitente, para andar pela Net... entre o lava, limpa e desinfecta... os meus dias ganharam mil emoções extra... :-( mas como a minha mãe se tem aguentado sem problemas... vale a pena continuar nesta nova vida... em que o álcool e a lexivia se tornaram os meus melhores amigos...
Beijinhos! Estimando que tudo esteja bem, aí desse lado!
Ana

alfacinha disse...

Lavar a roupa à mão ,um trabalho duro que das mulheres tornava na altura escravas. Um texto maravilhoso.
Bjos

Catarina disse...

Um bonito texto!
Amanhã com mais tempo, voltarei para ler mais postagens.
:)

By Me disse...

Gostei da narrativa de natureza documental! outros tempos... pobres mulheres, confinadas a um trabalho de escravas!

Beijinhos

Agostinho disse...

Muito boa barrela encontro por aqui.
Memória impressiva dum tempo que os jovens nem sonham.
Lavar roupa tem o seu quê. Hoje ainda mais.
Gostei de ler.
Beijo.

Franziska disse...

Cuando yo era todavía una niña, existían los lavaderos en todos los pueblos y este hecho era ya un avance pues lo normal, durante siglos, fue hacerlo en alguna ribera de un río. Me ha encantado leer este texto y comprenderlo a pesar de que nunca he estudiado el portugués. Una experiencia deliciosa. Ah, se me olvidaba. también había lavaderos públicos en las ciudades, en Madrid, por ejemplo.
Un abrazo con mis mejores deseos de paz y felicidad.

Porventura escrevo disse...

A água
Um bem que é cada vez mais importante e eescasso
Gostei

Sérgio Santos disse...

Que bonito. Pra ter uma semana boa. Bjs!

Kinga K. disse...

Very nice <3

Crônicas de Areia disse...

Fá Menor, tão parecido com Fé Maior. Sim, pois foi exatamente o que vi, senti, observei.
Nós, humanos, achamos que tudo podemos, seja em criação ou destruição. A empáfia toma muitos de nós, e o que não deterioramos com as mão, fazemos com a boca, em maledicências que vertem em forma de palavras duras e cruéis.
No entanto, a água está lá, persistente e sabedora de que Alguém a protegerá para o sempre. Ela pode até desaparecer naquele lugar, mas tal qual a fé de alguns, ela jamais será consumida em um todo. Vingará diante de todos os percalços e voltará. E assim, a velha casa, o caminho, as pedras, o destino. A natureza não se preocupa com o ser humano. Basta cruzar os braços e nos destruiremos por conta própria, e então, ela se renovará, aos poucos e perpétua. Resta a nós, unicamente, um perdão divino, uma nova chance. Mas está na hora de entendermos os desígnios, não é?

Instigante e um texto para ler e re-ler, e meditar. Grato pelas palavras de sabedoria, Fá Menor.

Marcio.

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