07/08/2025

Se chove...


Chove. Chove se chove!

A andorinha estacionada no fio do telefone espaneja as asas de consolação.
Agora: um relâmpago, seguido de trovão que ecoa céu cinzento além.
A andorinha, porém, continua no mesmo sítio, alegre no seu banho de chuveiro, soltando, de vez em quando, a sua cantilena de satisfação.
Em baixo, dois melros pulam no tapete verde molhado do pasto verde recém-cortado; outra andorinha rasou o muro alto, indo enfiar-se debaixo do telheiro, direita ao ninho acolhedor das suas crias, que lá vivem o seu pequeno mundo o dia inteiro.

Os melros acabam por abandonar o recinto; e a andorinha, não minto, continua no seu duche matinal; ao mesmo tempo que um outro pardal se passeia em pequenos voos rasantes às folhagens verdes das plantas do canteiro do quintal, nelas pousando aqui e ali sem se demorar, beijando pérolas luzentes e macias de água, como quem as quisesse namorar.

A chuva abrandou um pouco, e a andorinha deu por finalizada a sua mais que tarefa refrescante sagrada. Foi e voou pelos ares na parda madrugada, enquanto eu observava pela janela, encantada.

Logo logo, a chuva recomeçou. E a andorinha voltou. Ao mesmo preciso lugar. E dali mirava o mundo ao redor. Era a sua praia. 

Eu é que não me posso quedar mais tempo à janela a mirar, não vá o mundo fugir ou parar. Daqui para a frente, se quiser escrever o que a andorinha fizer, só se me propuser inventar.

E se chove!...

06/08/2025

Sonhos de Criança

(reposição)

A turma foi dividida em duas partes. Enquanto metade da turma tem aulas de Desenho, a outra metade tem Trabalhos Manuais. Depois trocamos. Destas duas, a aula que mais gosto é a de Trabalhos Manuais. Não é que não goste da de Desenho, mas é que não tenho muito jeito para desenhar; a não ser que seja Desenho Geométrico, aí já faço uns riscos mais ou menos. No entanto, gosto de ter o meu material, não gosto de andar a pedir emprestado às colegas. Só que ainda estou à espera que a Lucília compre, para me devolver, uma ponta do compasso onde se coloca a tinta-da-china, que ela me pediu emprestada, e que fez o favor de deixar escorregar pelo cano abaixo, quando a lavava debaixo da água da torneira. Ando farta de lhe perguntar quando é que me compra outra. Isso aborrece-me um bocado e não me deixa aproveitar estas aulas como deveria.
Quanto à aula de Trabalhos Manuais, essa sim, gosto, pois posso usar mais livremente a minha criatividade. Nestas aulas sinto-me extremamente motivada. Gosto dos trabalhos que lá faço e gosto da professora, o que me leva a desejar vir a ser, um dia, uma professora como ela. Sim, gostava de ser professora, comecei a sonhar com isso. Já o disse aos pais.
Mas será que os adultos têm em conta os sonhos das crianças?

02/08/2025

Subir o Caminho VII

As pedras... Por vezes as pedras que nos surgem no caminho são ásperas e pesadas, impossíveis de remover. Pedregulhos e penedos soltos que têm de ser contornados para encontrarmos um caminho mais macio e sereno. Caminho que se vai fazendo ao caminhar, a cada passada. 

Quando a vida flui e caminhamos naturalmente pelos nossos pés, livres e sacudidos, sem dores musculares ou nas articulações, desimpedidos de muletas ou bengalas, torna-se mais fácil a caminhada, mas não isenta de tropeços ou atrasos. Há sempre que prestar atenção às pedras do caminho. Elas estão por lá. Podem espreitar onde não esperamos. Até num caminho já tantas vezes trilhado, podemos ser surpreendidos, apanhados desprevenidos por um grande calhau ou pedranceira, rolados do alto, estatelados ao comprido, sem eira nem beira. Há que contornar, ultrapassar, e seguir.

A Vida é o que é; e as pedras sempre serão o que são. É isso que temos que interiorizar, porque não podemos mudar isso. Nada a fazer senão aceitar, por muito que nos custe e atrapalhe o nosso caminho. Desviemo-nos, portanto, dos pedregulhos. Não deixemos que nos importunem, e prossigamos a caminhada sem que nos embaracem os passos. 

Pedras no caminho sempre as houve. Há que aprender com o passado para caminhar no agora, rumo ao futuro idealizado. Mas quem aprende?...

Há montes e vales, riachos de água fresca, desertos, oásis... e tantas mais coisas que fazem parte do caminho. Da subida.

Há também as asas do vento e o embalo do sentimento, para ir saboreando algum pequeno voo.

Mas uma certeza nos deve guiar: não caminhamos sozinhos. E isso nos deve animar.


“Eu caminho, sem ver o caminho
Eu caminho por sendas de paz.
Mas eu sei que há alguém
que me ajuda no caminho.
Mas eu sei que há alguém
e com Ele irei caminhar.”

(Sendas de Paz)


01/08/2025

Subir o Caminho VI

Sento-me por momentos numa pedra na encosta a meio da ladeira íngreme, ofegante de cansaço; à minha volta, fragrâncias húmidas de terra e de musgos. As pedras, castanhas de terra, gemem pequenos fios frescos prateados. Por baixo de uma pedra espreita um pequeno lagarto, ou lagartixa – nem sempre sei bem distingui-los; e por entre outras, pequeninas flores. Até no meio das pedras, Deus faz brotar as mais belas flores. Para que se aprenda a sorrir e se esqueçam, ainda que por momentos, as dores. Para além da meta que se pretenda alcançar, é preciso saborear os bons momentos do caminho.

Ergo-me, depois de inspirar o pequeno descanso. No meio do caminho a pedra ficou.
A pedra. E as outras pedras.

As pedras, que são tão essenciais aos alicerces! – sem alicerces somos construção frágil, que em qualquer altura está sujeita a ser levada pela menor ventania.

Pedras que tanto fazem parte do caminho! Continuam no meu trilho a querer morder-me os pés na subida.
Temos que saber aproveitar as pedras em nosso favor, e contornar as que são obstáculos... é o que faço, é o que tento sempre fazer!
A vida está longe de ser planície, embora também as tenha. Mas de montanhas e planícies se conjuga o verbo viver.
A vida, como os ramos de uma árvore, entrelaça-se nela própria e vai seguindo rumo à claridade. Uns ramos vão chegando ao fim do seu percurso, enquanto outros brotam e vicejam.
Por vezes os troncos de algumas árvores são castigados com pedras – pedregulhos – lá colocadas ao seu redor rente ao chão. Para quê? Talvez para que aprofundem as raízes à procura do melhor sustento e venham depois a produzir muitos e saborosos frutos – ouvi dizer.

E vou subindo. De vez em quando resvala-me, por baixo dos pés, uma ou outra pedrita que depois rola por ali abaixo, atrás de mim. Não faz mal. Eu prossigo a marcha. Subo. Por vezes como quem trepa. Tenho de subir. Nem que as mãos tenham que ir ao chão aqui ou ali, quando preciso for, para segurar, amparar, para que não me surpreenda alguma queda, mais ou menos aparatosa, e esfole os joelhos, ou a alma.
É dura a subida; mas sei que depois de subir, ainda terei de descer para voltar para casa. Eu sempre pensei que descer era mais fácil – “para baixo todos os santos ajudam”, não é? – Não, não é, afinal. Disseram-me que descer custa mais. Algumas vezes terei de descer de costas, escorregar sentada, com todo o cuidado, não vá cair ao desamparo, e o vazio venha a ser o ganho da jornada.

E andamos toda uma vida com algum vazio por preencher, a esfarrapar-nos contra esquinas de pedras agrestes que nos cerceiam. Quando, por fim, nos libertamos, tantas vezes ficamos mudos e quedos sem conseguir absorver a realidade.


«Quando as pedras frias
caem brancas e torcidas
sobre as palavras imperiais,
mordendo-lhes as raízes
como se fossem o contrário do que são,
fecham-nos a alma e ficamos sem saber
se as asas se quebram ou
se ficamos de pé à espera das próximas pedras.»
(José Maria Brito Sj)

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