18/06/2024

Sombras III

De cara envolta como que numa nuvem de pó de talco e sentindo-se a flutuar em denso nevoeiro, parecia-lhe ouvir umas vozes perto de si. 
Alguém, uma vida, um fim. Uma noite de luar negro. Era jovem e um espectro se acercara. E não havia resistido. Tudo se resumia, assim, a um ponto final. 
Pela maneira como ouvia a descrição parecia-lhe ver aquele seu ex-aluno da faculdade, aquele que via sempre como se fosse numa miragem. Um delírio, uma ilusão, um oásis inalcançável no seu deserto. Por vezes um sonho, outras, um pesadelo no seu sono agitado do meio da tarde. Via-o: o corpo esbelto, a cara miúda, o cabelo meio comprido… Era ele… ou delirava? Sentiu uma dor aguda. 
Num relance, algumas cenas passadas desfilaram pelos seus olhos. Viu-se a andar pelos corredores de mãos ocupadas pelo material de trabalho. Deslumbrou-se com aquele olhar que se cruzou com o seu pela primeira vez. Sentiu o coração bater apressado ao verificar que o tinha perto de si, na mesma sala. Experimentou uma sensação de frio na espinha, que a percorria, e pressentiu que a sua alma o amava. Reviu hipnotizada o seu sorriso que lhe falava mais do que muitas palavras. Viajou para além do impossível quando ele a amou. Reviveu momentos a que julgava não ter mais direito desde que perdera o único homem que até então tinha amado. Assistiu serena à confirmação pelo médico daquilo que já sabia. Olhou-o longamente enquanto dormia, retendo bem a sua imagem para não mais a perder. Mudou de cidade e deambulou por corredores diferentes, porque não podia cortar as asas a um anjo. Foi de novo mãe e pai ao mesmo tempo. Reviu-se a viver cada dia tendo como único objectivo a felicidade dos seus frágeis rebentos. Reconheceu-se a caminhar à pressa pela rua, acorrendo ao chamado de uma amiga. Avistou-o ao longe e fugiu de um encontro, sentindo o coração partir-se outra vez em mil pedaços. Lembrou-se dos meninos sozinhos em casa. Sentiu a vida irremediavelmente perdida quando viu o automóvel na sua direcção a grande velocidade. Nuvens e sombras a toldavam agora. Estava de novo no presente. Pensava. Não… Havia uma confusão qualquer. Onde estou? Sentiu frio. O coração acelerava… Alguém se aproximou rapidamente. Encarou-a. 
- Está viva! … 
Afinal, de quem falavam? 

Tinha acabado de acordar de um sono do qual não era para acordar. Do qual ninguém acorda assim... facilmente!

18 comentários:

rogério disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
antonio ganhão disse...

Fiquei um pouco perdido. Vou ter que reler...

Cris disse...

Ai, Fá, isto não se faz! Deixar a gente assim com o coração nas mãos! Palpita-me que vai acabar bem! Será?
Aguardo ansiosa pelas cenas do próximo episódio. Mais um momento de excelente escrita.
Beijinhos.

Luna disse...

que será que existe nesse caminho, entre a vida e a morte?
bjs

Anónimo disse...

Estou a adorar o decorrer da história. Mais. Quando dei por mim estava submerso na sua escrita a sentir, não... A viver! como se comigo fosse, a angústia de uma criança perdida.
Não tenho pretensões de lhe pedir uma certa direcção no seu conto. Apenas peço: Não pare de escrever.
Saudações.

Anónimo disse...

Já agora, e se me permite utilizar o seu blogue como meio de comunicação, quero mandar um abraço ao Rogério.
Roger, como as pessoas que estão ao nosso lado, e de quem assumimos que tudo sabemos, são capazes de nos surpreender. Visitei o teu blogue e senti que passei a conhecer parte de ti que pessoalmente me passou ao lado. Desculpa não ter visto o teu interior. Desculpa ter-te pedido tantas vezes para passares a bola quando estava sozinho em frente à baliza!
Desculpa pedir-te isto:
Não deixes de escrever.
Por egoísmo te peço:
Agora que Te vi, não me negues o privilégio de Te conhecer melhor através do único meio que o torna possível: as palavras.
Afinal uma imagem não vale mais do que mil palavras.

André.

Unknown disse...

Corajoso, tentar descrever essa experiência que tão polémica é, que poucos a vivem [ou dizem viver]! Gostei :)

Beijinho*

Justine disse...

Ambiente onírico muito bem conseguido, em que o leitor fica na dúvida se está na realidade ou no sonho.
Como sempre, fico suspensa a aguardar continuação...

Anónimo disse...

Os filhos, o "futuro" pai (isto em ficção, na realidade ficariam em instituições, ou seriam separados e o pequeno adoptado) e a mãe...

Estou ansiosa pelo final... se é que este não foi o final.

Está lindo!

Beijinhos!

Majo Dutra disse...

Saindo de uma anestesia? Ou de um coma?
Fiquei literalmente presa à leitura...
Um texto muito belo e bem escrito.
Dias bons. Beijinhos
~~~~~~

Parapeito disse...

E cá continuo eu a ler e a gostar.
Abraço**

Porventura escrevo disse...

Uma experiência descrita realmente com coragem

J.P. Alexander disse...

Genial relato me gusto el final . Te deja pensando y quieres saber que paso con el protagonista y como volverá a su vida. Te mando un beso.

Ana Freire disse...

Um texto que nos agarra a atenção do início ao fim...
E onde se vê a vida a passar... com todos os acontecimentos e emoções... e se acorda para uma segunda oportunidade...
A minha mãe há mais de trinta anos atrás foi atropelada... na altura fez uma descrição bem assim no género... viu-se de cima... e descreveu coisas... até para a companhia de seguros... pormenorizadamente e absolutamente certas... que não poderia ter visto, inanimada e deitada na estrada... Brinco com ela até hoje... dizendo que ela foi devolvida, porque não havia vagas!...
Um beijinho! Bom fim de semana!
Ana

Ana Tapadas disse...

Exímio texto, no estilo e no enredo.
O imaginário, a recordação do despertar do amor, a vida que passa, as notícias trágicas, a dureza do luto, o reerguer-se...o incidente...que poderia ser o acidente e...o despertar do que se leva dentro...

Adorei.

Beijinho

Sérgio Santos disse...

Excelente texto, Fá. ADOREI LER.

Kinga K. disse...

A veces me gustaría recordar más sueños...

Królowa Karo disse...

I'm so curious what's next!

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