28/12/2024

Presépio na Montra e a revisita


Volto ao presépio do tio Zé. O fascínio das suas figuras impeliu-me a revisitá-lo e a observá-lo mais demoradamente.

São figuras pequeninas, de barro pintadinho de cores bonitas, que na sua simplicidade tornam este presépio num lugar mágico, cativante, onde se misturam a criatividade com o belo; e como que a pureza sobressai e vem ao nosso encontro e nos quer falar.

Detive novamente o olhar na figurinha mais intrigante para mim: o Ano Velho com o Ano Novo às costas. Como cheguei a pensar que seria o Pai Natal carregando o Menino Jesus, tenho de o apreciar melhor. Que nos quererá mesmo dizer esta figura no presépio?!...

Que o tempo não termina com o fim do ano, mas continua em tempo Novo, ou renovado?...
Que o tempo de Natal tem o fim do ano e o início de outro pelo meio?...
Que um ano passa o testemunho de Natal ao outro ano?
Que Jesus Menino não é só no Natal, mas se transporta de um ano ao outro?

Sim, para esta figura estar no presépio, terá algo a ver com Jesus...

Ano velho e Ano Novo: dois tempos… figurando num homem velho carregando um Homem Novo! O Tempo que passa e que vem Menino ao nosso mundo… na “plenitude dos tempos”.

Ah, será que quererá significar que no Natal há um ano velho que acaba e um ano Novo que começa?... um antes e um depois? que ali há um marco histórico e sobrenatural? Um tempo velho e um tempo Novo?

Se o nascimento de Jesus é uma boa notícia, uma Boa Nova, será que nos vem dizer para deixarmos para trás o que é velho e começar o Novo?... ou de novo? que o que em nós é velho tem de dar lugar ao novo, ou renovado?...

Tantas interrogações a que uma simples figura nos pode levar!...

Mas acho que sim, que é isso... – uma coisa é certa: não podemos ficar indiferentes ao Natal, que é tempo de nascimento, de nascer sempre a cada ano, outra e outra vez, nascer de Novo, nascer O Novo. O Homem Velho dá lugar ao Homem Novo. Homem Novo que é Jesus, e que tem de ser também cada um de nós que O ama e segue.

O velho tem de dar lugar sempre ao Novo, à novidade – o velho tem de carregar sempre o Novo, como a criança de colo que fomos tem de ser carregada e mantida sempre em nós, pura, perfeita, inocente, humilde e linda.

Pois que se vá o ano velho que em nós se instalou e um Ano Novo connosco viva, em revisita constante de Jesus ao nosso mundo, ao nosso eu.


18/06/2024

Sombras III

De cara envolta como que numa nuvem de pó de talco e sentindo-se a flutuar em denso nevoeiro, parecia-lhe ouvir umas vozes perto de si. 
Alguém, uma vida, um fim. Uma noite de luar negro. Era jovem e um espectro se acercara. E não havia resistido. Tudo se resumia, assim, a um ponto final. 
Pela maneira como ouvia a descrição parecia-lhe ver aquele seu ex-aluno da faculdade, aquele que via sempre como se fosse numa miragem. Um delírio, uma ilusão, um oásis inalcançável no seu deserto. Por vezes um sonho, outras, um pesadelo no seu sono agitado do meio da tarde. Via-o: o corpo esbelto, a cara miúda, o cabelo meio comprido… Era ele… ou delirava? Sentiu uma dor aguda. 
Num relance, algumas cenas passadas desfilaram pelos seus olhos. Viu-se a andar pelos corredores de mãos ocupadas pelo material de trabalho. Deslumbrou-se com aquele olhar que se cruzou com o seu pela primeira vez. Sentiu o coração bater apressado ao verificar que o tinha perto de si, na mesma sala. Experimentou uma sensação de frio na espinha, que a percorria, e pressentiu que a sua alma o amava. Reviu hipnotizada o seu sorriso que lhe falava mais do que muitas palavras. Viajou para além do impossível quando ele a amou. Reviveu momentos a que julgava não ter mais direito desde que perdera o único homem que até então tinha amado. Assistiu serena à confirmação pelo médico daquilo que já sabia. Olhou-o longamente enquanto dormia, retendo bem a sua imagem para não mais a perder. Mudou de cidade e deambulou por corredores diferentes, porque não podia cortar as asas a um anjo. Foi de novo mãe e pai ao mesmo tempo. Reviu-se a viver cada dia tendo como único objectivo a felicidade dos seus frágeis rebentos. Reconheceu-se a caminhar à pressa pela rua, acorrendo ao chamado de uma amiga. Avistou-o ao longe e fugiu de um encontro, sentindo o coração partir-se outra vez em mil pedaços. Lembrou-se dos meninos sozinhos em casa. Sentiu a vida irremediavelmente perdida quando viu o automóvel na sua direcção a grande velocidade. Nuvens e sombras a toldavam agora. Estava de novo no presente. Pensava. Não… Havia uma confusão qualquer. Onde estou? Sentiu frio. O coração acelerava… Alguém se aproximou rapidamente. Encarou-a. 
- Está viva! … 
Afinal, de quem falavam? 

Tinha acabado de acordar de um sono do qual não era para acordar. Do qual ninguém acorda assim... facilmente!

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