De molhos de garrafões de plástico vazios nas mãos, aproximo-me da fonte para os encher de água. Sabe bem assentar os pés, descalçados os chinelos, no pequeno lastro alagado. No tempo do calor é fresquinha a água desta nascente que jorra continuamente em bica desembaraçada; como desembaraçadas são as duas mãos idosas que ali esfregam a roupa ensaboada na pedra.
Dou as boas-tardes e peço licença para encher os garrafões, se não for incomodar.
– Sirva-se à vontade!
– Obrigada! Sabe bem estar aqui com os pés fresquinhos… – digo para meter conversa.
– Pois é. Agora é mais fresquinha e no Inverno é mais morninha…
Vou enchendo vasilha a vasilha, enquanto ela vai esfregando e molhando a roupa devagar na bacia com água, virando-se de lado para mim.
– Só há quem a venha aqui estorvar… – digo, pensando que posso estar a demorar, e ela precisará de se servir da bica da água.
– Não estorva nada. A gente nunca estorva ninguém.
– Se calhar andamos mas é por cá a estorvar-nos uns aos outros…
– Não senhora! A gente não estorva nada. Antigamente tinham seis e sete e oito ou nove filhos e não se estorvavam uns aos outros… agora são menos, não há razão para se estorvar ninguém.
– É bem verdade. Agora é só um, ou dois… quando é!...
– E tudo se criava. Você se calhar não sabe… não era do seu tempo, mas, e quando se partia uma sardinha em dois ou três só com um bocadito de broa?… agora é só lambarices… e coisas caras.
– Realmente… ainda dizem que agora os tempos são maus… e que não dá para se viver… as pessoas habituam-se ao que é bom, ao conforto, e já ninguém quer passar com pouco e fraco.
– Ah, mas olhe, acolá em cima há uma rapariga, você não deve conhecer, que não é de cá… bem, quem mora ali são os pais, ela agora já não mora cá, que já está casada; quero dizer, casou e separou-se e voltou a casar ou a juntar-se…
– Pois… agora já não se estranha isso…
– É assim!... Pois essa rapariga trabalha, ou trabalhou, num talho. E contava ela que vinha a carne para o talho e ia-se vendendo para uns e para outros… e passava-se uma semana e nunca se vendia toda… e a carne que ficava começava a ganhar bichos, daqueles com um rabito, você não sabe?... têm um rabito… uns bichos com um rabito… e depois passavam aquela carne por uma máquina e bichos e tudo, moíam aquilo tudo… para…
– Para fazer hambúrgueres?...
– Isso. E sei lá mais o quê… olhe, depois era tudo vendidinho!...
Sorri levemente, num misto de assentimento e incredulidade, acabando de encher os garrafões e acabando a conversa por ali mesmo com um adeus.
E a água a jorrar sempre certinha e desembaraçada ficou; como certinhas e desembaraçadas as palavras de quem com mestria as ditou.
15 comentários:
Faziam-me falta, Fa, os teus textos lúcidos e bem escritos. Ainda bem que os trazes de volta! Boa semana, amiga.
Fá:
Nada
mais fresco e puro
do que água de nascente!
Nada mais fresco e puro
do que a simplicidade
da lavadeira
que jorra
palavras sábias e acutilantes!
Bela crónica:
o prazer
da descoberta
de um tesouro
cada vez mais raro
nos dias de hoje!
Abraço de amizade.
Belo texto. Abraço.
Muito lindo bj Lisette.
Um texto escorreito, bem escrito e bem coloquial.
Gostei.
Bom fim de semana!
A da carne com bichos de rabinho deu-me um nó no estômago...
Já quase não há locais onde as pessoas iam buscar água e lavavam a roupa. E onde também se lavava muita "roupa suja"...
Excelente texto, gostei muito, pela forma e pelo conteúdo.
Bom domingo.
Abraço.
Boa crónica! É mesmo assim o comportamento das pessoas simples, de qualquer forma não é muito bom a conversa alargar-se... são pessoas que o entusiasmo delas é cortar na vida dos outros.
Beijinho
Adorei o texto... pois por estes lados, ainda há muitas fontes, e tanques comunitários... ou não fosse Caneças, conhecida pela distribuição de águas... também em outros tempos... quando a tal sardinha... tinha de dar para uns quantos, com broa...
Quando me mudei para Caneças... ainda conheci algumas pessoas... desses tempos... e com relatos de vidas difíceis para a época, bem semelhantes... um belo texto, que me proporcionou saudades... de muitas delas, que entretanto... já foram para o andar de cima... aprender a tocar harpa, em cima de uma nuvem...
As fontes e os tanques... representavam as redes sociais de outras épocas... tudo por ali se sabia, da vizinhança e arredores... :-))
Beijinhos, Fá! Votos de uma excelente semana!
Ana
Jesus! Credoooo!...
Parabéns oelo texto...
Beijinho
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Querida amiga,
me encanta sua forma linda de escrever.
Um texto cheio de verdades e realismo.
Beijos, Deus cuide sempre de ti.
Uma conversa peculiar rss. Há uma espontaneidade rara nas lavadeiras. Se der corda, saberá como está a vida de todos, recheadas de boatos. Mas a água estará sempre fresquinha. Bjs.
Uma conversa tão peculiar e verdadeira
😊
e desembaraçadas são (também) as mãos que assim nos preenchem a alma com a leveza deste conto que nos acrescenta!
um beijo meu!
Meu Deus!
Acho que depois de ler esse texto, vai ser difícil comprar hambúrguer. 🤔
Fá, tenha um feliz domingo.
Beijinhos
Fá, momentos envoltos em simplicidade, que muito bem desenhou. Bjs.
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