22/05/2025

O Desembaraço


De molhos de garrafões de plástico vazios nas mãos, aproximo-me da fonte para os encher de água. Sabe bem assentar os pés, descalçados os chinelos, no pequeno lastro alagado. No tempo do calor é fresquinha a água desta nascente que jorra continuamente em bica desembaraçada; como desembaraçadas são as duas mãos idosas que ali esfregam a roupa ensaboada na pedra. 
Dou as boas-tardes e peço licença para encher os garrafões, se não for incomodar. 
– Sirva-se à vontade! 
– Obrigada! Sabe bem estar aqui com os pés fresquinhos… – digo para meter conversa. 
– Pois é. Agora é mais fresquinha e no Inverno é mais morninha… 
Vou enchendo vasilha a vasilha, enquanto ela vai esfregando e molhando a roupa devagar na bacia com água, virando-se de lado para mim. 
 – Só há quem a venha aqui estorvar… – digo, pensando que posso estar a demorar, e ela precisará de se servir da bica da água. 
– Não estorva nada. A gente nunca estorva ninguém. 
– Se calhar andamos mas é por cá a estorvar-nos uns aos outros… 
– Não senhora! A gente não estorva nada. Antigamente tinham seis e sete e oito ou nove filhos e não se estorvavam uns aos outros… agora são menos, não há razão para se estorvar ninguém. 
– É bem verdade. Agora é só um, ou dois… quando é!... 
– E tudo se criava. Você se calhar não sabe… não era do seu tempo, mas, e quando se partia uma sardinha em dois ou três só com um bocadito de broa?… agora é só lambarices… e coisas caras. 
– Realmente… ainda dizem que agora os tempos são maus… e que não dá para se viver… as pessoas habituam-se ao que é bom, ao conforto, e já ninguém quer passar com pouco e fraco. 
– Ah, mas olhe, acolá em cima há uma rapariga, você não deve conhecer, que não é de cá… bem, quem mora ali são os pais, ela agora já não mora cá, que já está casada; quero dizer, casou e separou-se e voltou a casar ou a juntar-se… 
– Pois… agora já não se estranha isso… 
– É assim!... Pois essa rapariga trabalha, ou trabalhou, num talho. E contava ela que vinha a carne para o talho e ia-se vendendo para uns e para outros… e passava-se uma semana e nunca se vendia toda… e a carne que ficava começava a ganhar bichos, daqueles com um rabito, você não sabe?... têm um rabito… uns bichos com um rabito… e depois passavam aquela carne por uma máquina e bichos e tudo, moíam aquilo tudo… para… 
– Para fazer hambúrgueres?... 
– Isso. E sei lá mais o quê… olhe, depois era tudo vendidinho!... 
Sorri levemente, num misto de assentimento e incredulidade, acabando de encher os garrafões e acabando a conversa por ali mesmo com um adeus. 
E a água a jorrar sempre certinha e desembaraçada ficou; como certinhas e desembaraçadas as palavras de quem com mestria as ditou.

16 comentários:

  1. Faziam-me falta, Fa, os teus textos lúcidos e bem escritos. Ainda bem que os trazes de volta! Boa semana, amiga.

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  2. Fá:
    Nada
    mais fresco e puro
    do que água de nascente!

    Nada mais fresco e puro
    do que a simplicidade
    da lavadeira
    que jorra
    palavras sábias e acutilantes!

    Bela crónica:
    o prazer
    da descoberta
    de um tesouro
    cada vez mais raro
    nos dias de hoje!

    Abraço de amizade.

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  3. Belo texto. Abraço.

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  4. Muito lindo bj Lisette.

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  5. Um texto escorreito, bem escrito e bem coloquial.
    Gostei.

    Bom fim de semana!

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  6. A da carne com bichos de rabinho deu-me um nó no estômago...
    Já quase não há locais onde as pessoas iam buscar água e lavavam a roupa. E onde também se lavava muita "roupa suja"...
    Excelente texto, gostei muito, pela forma e pelo conteúdo.
    Bom domingo.
    Abraço.

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  7. Boa crónica! É mesmo assim o comportamento das pessoas simples, de qualquer forma não é muito bom a conversa alargar-se... são pessoas que o entusiasmo delas é cortar na vida dos outros.

    Beijinho

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  8. Adorei o texto... pois por estes lados, ainda há muitas fontes, e tanques comunitários... ou não fosse Caneças, conhecida pela distribuição de águas... também em outros tempos... quando a tal sardinha... tinha de dar para uns quantos, com broa...
    Quando me mudei para Caneças... ainda conheci algumas pessoas... desses tempos... e com relatos de vidas difíceis para a época, bem semelhantes... um belo texto, que me proporcionou saudades... de muitas delas, que entretanto... já foram para o andar de cima... aprender a tocar harpa, em cima de uma nuvem...
    As fontes e os tanques... representavam as redes sociais de outras épocas... tudo por ali se sabia, da vizinhança e arredores... :-))
    Beijinhos, Fá! Votos de uma excelente semana!
    Ana

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  9. Jesus! Credoooo!...
    Parabéns oelo texto...
    Beijinho
    ~~~~

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  10. Querida amiga,
    me encanta sua forma linda de escrever.
    Um texto cheio de verdades e realismo.
    Beijos, Deus cuide sempre de ti.

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  11. Uma conversa peculiar rss. Há uma espontaneidade rara nas lavadeiras. Se der corda, saberá como está a vida de todos, recheadas de boatos. Mas a água estará sempre fresquinha. Bjs.

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  12. Uma conversa tão peculiar e verdadeira
    😊

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  13. e desembaraçadas são (também) as mãos que assim nos preenchem a alma com a leveza deste conto que nos acrescenta!

    um beijo meu!

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  14. Meu Deus!
    Acho que depois de ler esse texto, vai ser difícil comprar hambúrguer. 🤔
    Fá, tenha um feliz domingo.
    Beijinhos

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  15. Fá, momentos envoltos em simplicidade, que muito bem desenhou. Bjs.

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  16. Deu gosto ler sua postagem, Fá.

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Truman Capote diz:
«Quando se trata de escrever,
acredito mais na tesoura do que na caneta.»...
Mas eu escrevo aqui por entre o imaginado e o sentido; e
«Entre meus rabiscos e minhas ideias há um mundo de sentimentos.» (Marcelle Melo)
.
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