15/07/2013

A casa dos ratos — intermezzo (7.1)


Deitou-se ao pé da gaiola dos ratinhos, como quem estivesse à sombra, como se ela fosse um porto de abrigo que o protegesse de raios abrasadores e de outros incómodos tais quais pragas rogadas, assombramentos ou pavores.

Mergulhou numa nostalgia letárgica e assim se deixou estar tempos infindos, sem sequer se lhe ouvir um ronrom. Parecia que o seu mundo tinha parado ali. Estava cansado. Cansado de correr atrás de quimeras, e os ventos sempre contrários. Pobre bichano, como até a um gato a vida pode fazer negaças!

Inspirou fundo e soltou depois o ar num suspiro soluçado. Agora não queria nada, mais nada, nada mesmo. Só um vazio sossegado. Enroscou-se mais, escondendo a cabeça debaixo das patas dianteiras, e deixou-se ficar, sem desejo algum.

Não tardou muito que o arrulhar de uma rola lhe viesse perturbar o inconsciente. Ah, as rolas! Meninas bonitas, as malditas, sempre com os seus rucrruu rucrruu a chamá-lo! E ele a começar com água a crescer-lhe na boca. E o rucrruu rucrruu a aproximar-se, e ele, pata ante pata, cada vez mais perto… um pulito sorrateiro e zumba! A mordida no pescoço foi certeira e fatal. Abraçado a ela, sorveu o sabor meio salgado que lhe escorria por entre os dentes, cuspiu as penas, fungou… acordou. Soube-lhe bem. O sonho viera dizer-lhe que tinha que voltar à caçada, porque gato que é gato não fica assim apático e desanimado.

Agora ia poder dormir o seu sono solto, de olho naquela fresta da gaiola.

25/05/2013

A Casa dos Ratos - (en)fim


E então os belos ratinhos, bem aperaltados com os seus lacinhos, pela calada da noite, encheram as prateleiras da despensa e da cozinha com as suas vidas agitadas. Corriam por elas afora e adentro, escondendo-se nos recantos dos biscoitos, do açúcar, das massas, do arroz, das panelas e dos testos delas; tombavam frascos, tilintavam copos, lambuzavam pratos, roíam guardanapos, toalhas, outros panos e papéis… faziam, cada qual, o seu papel numa trama de cordel: marcavam o seu lugar, deixando a sua marca num rasto de rataria; chiavam, num riso fino, gozando com o gato e os ex-donos, agora que a vida lhes sorria; mordiam, aqui e além, neste e naquele cartucho, provando isto e aquilo, comendo do que queriam e estragando outro tanto; pintavam a manta e o manto de preto e outras cores, sem pejo nem outras dores; café, açúcar, bolachas – é tudo nosso!; fosse doce ou salgado, cru ou cozinhado, frito, cozido ou grelhado, pouco ou muito – o que é que importa?! –, até ao nascer do dia. Que depois é outro dia. E é para dormir, bem escondidos, sem companhia do gato; que ao cair nova noite nova festa vai raiar. 
E assim foi depois, nos outros dias – ou melhor, noites – na cozinha e para lá: na sala, nos quartos; era fazer o ninho no forno do fogão, e mais outro no sofá da sala… e outro atrás das orelhas do Tonecas – que esse, coitado… nunca mais os viu acordado, só em sonhos quando estava deitado, ou antes, em pesadelos a escaparem-lhe ao lado. 
Assim, sim: que rica vida, enquanto essa durar não vão querer outra. 

E estragação dos diachos naquela casa se fez, tudo a monte e à vez: retraçado, estraçalhado; escaganitado e esmijaçado como resina ou pez. Ora bem – ou ora mal –, tudo tudo ratado! 

Quando se protegem os ratos, eles acabam por tomar conta da casa. 

E viveram felizes e contentes numa casa toda deles. 

Sape gato!


27/04/2013

A Casa dos Ratos 7


O Tonecas andava de trombas, como se fosse mau. 
Tinha-se fascinado com os rituais de acasalamento do par de andorinhas empoleiradas no estendal do telheiro, mas já estava a ficar farto. Eram cantorias para um lado, cantorias para o outro, pulinhos daqui para ali, dali para aqui, mais um pequeno voo para acolá, e depois mais outro para acolí, só visto! E, então, as melodias eram cada vez mais elaboradas, e ele não gostava nada de se ver como “segundo violino”, ainda por cima desafinado. Se era para andar nessas vidas, melhor seria não aprender a voar. Ná, ele não tinha jeito para isso. Gostava de ser o dono da situação: de lançar os seus longos miados, naquelas noites de luar de Inverno, em cata de alguma fêmea das redondezas; e ao sol da Primavera queria era caçar. Pássaros de telhado, pardais e ratinhos dos campos, ratinhos do celeiro… ratinhos! ah, os seus ratinhos da gaiola… como se esquecera deles?! Aquelas andorinhas tinham-no tirado do sério. 
Avançou por cima do telhado, lançando um último olhar, como um adeus, àquelas esganiçadas aves, que tanto o tinham feito sofrer, e desceu pelo poste que segurava o telheiro.

Foto

10/04/2013

A Casa dos Ratos 6

(anterior)

Os ratinhos cresceram. E começaram a olhar com maior insistência para o lado de fora. Algumas vezes mordiam as grades com uma certa esperança de as conseguirem desfazer. Mas os seus dentinhos não eram tão fortes assim que roessem aquele material, só faziam barulho naquelas malditas grades. E chiavam uns com os outros, mas eram chiados finos, quase gritos mudos a que os ouvidos dos donos não davam importância. Estes pensavam que eles se andavam a divertir, quando o que eles faziam era ralhar e lutar uns com os outros de tão descontentes que se achavam. É que, por vezes, até se acabava a comida, pois a dona ainda não se apercebera bem de que eles tinham crescido rapidamente e que precisavam de maior dose de alimento. Isso era um inferno. E sonhavam alto com outra vida lá fora. Os olhos daquele gato-guarda não andavam por perto havia alguns dias, talvez ele se tivesse cansado de os espreitar ou tivesse tirado uns dias de férias. Quem sabe, seria uma boa altura para pôr em prática um plano de fuga… mas eles ainda não tinham arranjado um plano. Agora começavam a perceber que estava mais do que na hora de pensarem a sério nisso.

(continua)

27/02/2013

A Casa dos Ratos 5

(anterior)

Elas chegaram, alegres e cheias de graça. Distraiu-se, o gatarrão, dos afazeres a que se tinha apostado. Vigiar os ratinhos cansava, e agora aquela música era-lhe familiar e querida, embora os seus ouvidos, treinados, não a ouvissem há muito. Ali estavam, naquela parte dos seus sonhos, as melodias de que mais gostava – os belos trinados das andorinhas. Tinha-lhes sentido a falta durante o Inverno, muito embora os ratinhos lhe tivessem vindo aplacar um pouco o vazio dessa perda. Só um pouco mesmo, porque ainda não lhes conseguira deitar as garras, o que o andava a deixar ansioso. 

Agora ali estavam elas a gozar o sol, encavalitadas nos fios telefónicos que sobrevoavam o pátio até à parede da casa. Trepou avidamente o poste de suporte da alpendorada até ao telhado, para as fitar mais de perto. Eram duas, e as canções que cantavam enfeitiçaram-no como cantos de sereias. Ah, maviosos tons! Que maravilhosa cor e aroma delicioso que o sol lhe vinha trazer! Bendito sol, bendito céu azul onde moravam os seus sonhos. Um dia ainda haveria de voar como elas…

(continua)

28/01/2013

“Deus queira que cheguem à minha idade…”


Noventa e seis anos bem medidos. Com genica, como só ela.
É a genica que a vai mantendo sempre activa. Semeou favas bem cedo, como de costume todos os anos (diz que cavar faz bem: “é para fazer ginástica aos ossos”), e vai observando as faveiras a crescer de dia para dia, enquanto espera, com alguma ansiedade, que brotem as favas.

Manda. Continua sempre a mandar: em tudo e em todos. “Vocês, hoje em dia, nem sabem que vivem no mundo!... é só lambarices: chicolates e diogurtes… e para quê?... andam sempre doentes e a tomar remédio, quanto mais mimosos são, pior! Eu cá não tomo nada!!!... mas também ninguém passa o que eu passei!…: quem é que andava, hoje, acarvada no campo a mondar arroz… para trazer meia dúzia de tostões?!... e chegava-se ao meio dia, e comer umas batatitas azedas!...; hoje, os novos, é só competadores e não fazem mais nada que é só falar com aquilo nas orelhas… passam a vida nisto. Sabem lá o que é a vida?!”
Se a contrariam, ou lhe tentam dizer que a vida de hoje também tem sacrifícios… “Vocês podem dizer o que quiserem que eu não oiço nada… daqui a pouco estou que nem vejo nem oiço!” Mas ainda vê, não muito bem, mas vê (e lê, e escreve com letra bonita, se estiver de feição: “E eu cá nunca usei óculos!”) e ouve… o que lhe convém. “Olhem, Deus queira que vocês cheguem à minha idade e estejam como eu estou!”

Tem Apoio Domiciliário por parte da IPSS local, mas quando chega o dia da limpeza da habitação tem já os tapetes e passadeiras todos fora e o balde prontinho com água e detergente para as “alimpadeiras” lavarem o chão.
– Ó senhora Maria, então não quer ir para o Centro de Dia?
– Para lá fazer o quê? Não tenho paciência para estar lá sentada sem fazer nada, como elas lá estão, bem mais novas do que eu, e que ainda podiam tão bem trabalhar, mas o corpo não lhe apetece!
Em tempos, quando o marido vivia, ia com ele para lá todos os dias, para lhe fazer companhia, e porque no Verão iam alguns dias à praia, e a praia era do melhor que lhe podiam oferecer. Mas eram mais os dias em que se aborrecia e, depois do almoço, deixava lá o marido e desatava a pé para casa. “Aquilo não é vida para mim”.
– E depois, quem é que tratava das galinhas da minha filha? Se não fosse eu, deixavam-nas morrer todas com fome!

 No ano passado, as primeiras favas foram dela.
– Já cozi e comi uma pratada de favas que me regalei!
– Então, e comeu as favas com quê?
– Com quê?!... olha, com quê!!... com azeite!!!


(Envelhecimento activo - história da vida real)

19/12/2012

A Casa dos Ratos 4

(anterior)

Os ratinhos na sua gaiola
Vão brincando e vão sonhando
Que um dia, não sabem quando
Mas um dia, qualquer dia
Hão-de roer e roer
Ou esticar, ou encolher
Mesmo a muito doer
E passar
De dentro para o outro lado
Debaixo dos bigodes do gato
Que os vigia deitado
Dolente e anafado
À espera de os caçar.
Desengane-se o gatarrão
Que não. Bem pode esperar sentado.

Da prisão à liberdade
Há grades com frestas estreitas
Que os separam do mundo

Aqui têm o que comer
Túneis por onde correr
Camas fofas e quentinhas
E enfeites ao pescoço
E lá fora o perigo espreita
Mas isto de se ser rato
Tem muito que se lhe diga…

Não é com fitas e laços
Nem com uma qualquer espiga
Numa gaiola bonita
Que se prende um ratinho.
A ânsia de aventura
Da frescura da noite ao luar
De liberdade e tontura
A roer o seu belo manjar
Será sempre o que perdura
Para lá de qualquer fechadura
Que teime em o agarrar.

(continua)

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