27/04/2024

Sombras I

O tempo convidava a um mergulho naquela água reluzente. Mas o calor escaldante que se fazia sentir desenhava-se numa capicua de sofrimento. Caminhando pela beirinha da piscina, puxando pela mão o seu irmãozinho que ainda mal andava, o menino procurava desesperadamente com o olhar. No bolso, a chave de casa - uma mansão antiga, grande demais para dois meninos sozinhos. O pequenino chorava, ora caindo, não conseguindo acompanhar o passo agitado do irmão, ora sendo arrastado e obrigado, pelo mais velho, a levantar-se. A criançada ficou curiosa perante o espectáculo, e alguns adultos pareciam temer que os dois pequenos caíssem à água. Que se passaria com estes meninos que destoavam daquele ambiente? Infrutíferas buscas causavam cada vez mais desânimo neste menino de olhar cansado e fugidio. Havia já duas noites e dois dias em que tudo se resumia a uma espiral de angústia devastadora. Não a encontrava nos locais de lazer, que tão bem conhecia, habituado que estava a que ela os lá levasse. Procurara-a e não a encontrara. Urgia, agora, repensar a estratégia, antes que o desalento e o pânico se instalassem por completo. Sentado na soleira da porta da igreja, esperava. Talvez uma luz divina o iluminasse. Então pareceu-lhe que um anjo lhes falhava. Respondeu às suas perguntas como se o céu os tivesse vindo socorrer. Tinha necessidade de confiar em alguém. Contou tudo. O que acontecera, as suas inquietações, os seus medos e o como já não sabia mais que fazer para calar o irmãozinho. Aquele anjo bondoso tranquilizou-os e até conseguiu que o pequenino adormecesse. Escutava inebriado aquela voz melodiosa que lhe respondia serenidade e esperança. Então pôde acalmar um pouco, recostando-se de encontro ao seu peito, fechando os olhos, sentindo pousar em si a sombra das suas asas delicadas.

26/04/2024

A Casa dos Ratos — intermezzo (6.1)



Depois de muito matutarem cada um para seu lado, os ratinhos reuniram-se enroscados no ninho e guincharam uns aos outros o que cada um tinha pensado. Era preciso encetar a fuga: consenso, veredicto!
Havia de ser bonito! Assim não podiam continuar! Era mais que altura de passar o pé, marchar!

Era hora, agora, de orquestrar uma estratégia com pés e cabeça, para que a evasão fosse bem sucedida, pois estavam fartos de sonhar com uma vida livre, mas a verem-se atados de pés e mãos, sem se atreverem a pôr pé em ramo verde.
Então, com o pé no estribo, mas de pés de lã, que é como quem diz: pé ante pé; e a pé firme, haviam de dar com os pés àquela vida que lhes tinham imposto do pé para a mão. Com muito cuidado, sem pôr os pés na argola, quer dizer: não podiam perder o pé, nesta altura de pôr-se em pé e agir! Fugir, pois, é a única solução, bater o pé ao patrão; ele que pensara protegê-los, mas os tinha aprisionado fazendo deles diversão.
 
Se bem o ditaram, melhor o haviam de fazer.
Era só procurar algum ponto mais fraco na gaiola e roer. Alargar uma fresta e, ala!, zarpar!
Lá fora haveria um largo mar, uma praia, uma casa grande a explorar. Oh, música para os seus finos ouvidos! Já se viam todos idos, à larga, no bem bom e bem bebidos.

25/04/2024

Mundo insinuado

A cidade cheira a mar. Sim... e ouve-se o mar de encontro à areia...
Acho que me vou cá sentir bem.

- Tens de tirar a roupa. - Desperta-me o homem de bata branca.
Olho-o surpreendida a tentar compreender.
- Tenho de te observar. Pesar, medir...
Hesito e olho à minha volta. Não é nada agradável despir-me aqui. Não é que esteja frio… não é isso. Esta sala, no primeiro andar, até que está quente, com o calor do sol que entra pela janela. É que sinto vergonha…
“Caramba! Para vir para o colégio é preciso isto?” Vou pensando enquanto, a custo, começo a tirar a roupa. Fico só de combinação… e cuecas, e tremo de acanhamento. Ao menos se a mãe estivesse aqui… mas não. Ela nunca quis saber de nada. É sempre o pai para tudo…
Inspiro profundamente e ganho coragem. Afinal de que me vale tremer? Ainda só se está a insinuar esta nova vida a que vou ter de me adaptar. O pai decidiu assim… e eu não me importo, acho mesmo que irá ser bom.
- Pronto! Agora podes vestir-te. – Diz o médico, depois de me ter pesado e medido, e ter colocado, repetidas vezes, um aparelhinho em contacto com as minhas costas e peito, ao mesmo tempo que me mandava respirar com força outras tantas vezes.
- Tens que comer mais um bocadinho para não seres tão magrinha. – Acrescenta ele, a sorrir para mim.
Encolho os ombros ainda meio envergonhada e não digo nada. Não sou de falar muito. Mas o pai é todo cheio de amabilidades para com o senhor doutor. Ele fala por ele e por mim.
Quando chego à rua inalo, finalmente, aquele apetecido aroma a maresia, que me faz sentir leve e esquecer o desconforto que passei lá dentro.
Liberto-me, por agora, deste mundo entre grades, desconhecido para mim, mas que começo a ficar inquieta por provar.

(Publicado em livro: Memória Alada, 2011)

24/04/2024

Tatuagens Escondidas [2]

A vida…
Por vezes a vida escapa-se como areia por entre os dedos… e, no vento, levanta um pó fino como neblina que cobre os dias. E não se consegue ver nada para além dessa penumbra.
Os dias tornam-se páginas escritas de horas doridas, em que cada minuto teima em ser uma frase sem sentido, e em que cada segundo voa numa recordação que não se consegue escrever com letras. E o silêncio é uma falha na pontuação.
Sei que ainda sou pequena para compreender muita coisa. O meu entendimento tem o limite das coisas simples. Mas mesmo assim, tento arranjar respostas nas coisas pequenas, como as estrelas que brilham de noite… e, apesar do que não me dizem, mesmo sem perceber, vou pensando que deve ser tão natural morrer como nascer. Se assim não fosse, não nasciam e morriam também as flores… e as folhas das árvores… e a minha gatinha branca. A Princesa nasceu, cresceu, brincou, foi feliz, mas ficou doente quando um carro a atirou para a valeta. Depois ela morreu. Mas eu não queria que ela morresse. Mas também não queria que ela tivesse dores, porque se não tivesse morrido teria muitas dores e já não seria feliz. Se tivesse ficado a sofrer com dores era mais horrível. O melhor mesmo era nunca ter ficado doente. Mas também as flores acabam por adoecer e morrer quando as cortamos para pôr na jarra em cima da mesa. E se não as apanhamos do jardim acabam por secar passado o seu tempo, tal como as folhas das árvores quando acaba o verão.
A vida é assim! No fim, fica a ausência das folhas nos ramos das árvores e a saudade dos dias floridos.

22/04/2024

A molha


Os pingos grossos de chuva levantaram o cheiro a terra molhada. 

A manhã acordara suavemente, com ténues raios de sol a espreitar por entre as nuvens que anunciavam a primeira chuva do Outono. Esperá-la tornou-se em ânsia crescente à medida que ela mais se fazia adivinhar.
E ela, então, espreitou ao longe. Observei-a a começar, para lá do arvoredo, a pintar tudo de branco até chegar aqui. 
Primeiro um pingo. Logo outro e outro… e o cheiro a terra molhada a elevar-se com a suavidade e doçura de um chupa-chupa, que apetece saborear devagarinho. 
Chamei-a, “vem chuva, vem!...”, e ela não se fez rogada. Veio lamber o alpendre de um lado ao outro, enquanto eu, com uma vassoura, a ajudava a poli-lo de um brilho molhado apetecível, removendo a sujidade à sua frente. De pés descalços na água morna, cabelo e roupa a escorrer, senti-me a brilhar mais do que o alpendre. Toda eu era riso por dentro e por fora, feliz por poder apalpar o Outono que me beijava. 

Agora, depois de ter ouvido das boas da mãe e de mudar de roupa, olho-o da janela, de cara encostada ao vidro embaciado. O Outono e a chuva podem ser sonhos quentes que molham o rosto e embalam a alma. A mãe, sempre tão azeda e fria, sabe lá alguma coisa disso!

17/04/2024

A Casa dos Ratos 8

 (anterior)

Toda a quadrilha tem um chefe. E eles eram quatro – adiantou-se o vermelhinho: “Eu sou o chefe! Vamos lá, que se faz tarde!” 

E aí vão o Vermelhinho, o Azulinho, o Verdinho e o Amarelinho numa desfilada apressada em fila pelo carreiro, no desfiladeiro do túnel a desembocar numa fresta, alargada pelo Tonecas de tanto por lá remexer. E uma luz lá ao fundo brilhava para eles, que já a estavam a ver. Mas são os olhos do Gato que brilham tanto no escuro na ânsia de os comer. Um sobressalto. Um salto. Um “Alto!... Para trás!... que está ali o rapaz!”
Tiveram de recuar e esperar por melhor oportunidade. 

O Tonecas percebera que tinham tentado fugir. Ficou mais alerta, mas à futrica. Desejava-os há tanto tempo que temia que lhe escapassem sem lhes conseguir tocar. Disfarçou, fechou um olho e abriu outro, espreitou pelo buraco, esperou, esperou, esperou, eles haviam de vir. Fingiu um sono profundo. E adormeceu... e acordou e… 

...é agOora! Deu um salto estendendo as mãos e… 

Quase, quase!... por um triz. Ao lado do seu nariz.

Caramba! (meneou a cabeça), como foi possível?! Estava apardalado... Tinham passado rapidamente debaixo dos seus bigodes, caladinhos como só ratos, que só viu o rabo do último. 

Ainda correu, esbracejou, procurou, fungou, miou, qual quê? Agora?! Muito tarde e a má hora! Já deviam ter-se alojado nalgum canto bem escondido. Ah, como lhe tinham apetecido, como lhe apeteciam ainda, que nóia! Cabisbaixo e atordoado retirou-se, já nada havia a fazer, melhor seria agora esquecer. 

15/04/2024

A Casa dos Ratos 7


O Tonecas andava de trombas, como se fosse mau. 
Tinha-se fascinado com os rituais de acasalamento do par de andorinhas empoleiradas no estendal do telheiro, mas já estava a ficar farto. Eram cantorias para um lado, cantorias para o outro, pulinhos daqui para ali, dali para aqui, mais um pequeno voo para acolá, e depois mais outro para acolí, só visto! E, então, as melodias eram cada vez mais elaboradas, e ele não gostava nada de se ver como “segundo violino”, ainda por cima desafinado. Se era para andar nessas vidas, melhor seria não aprender a voar. Ná, ele não tinha jeito para isso. Gostava de ser o dono da situação: de lançar os seus longos miados, naquelas noites de luar de Inverno, em cata de alguma fêmea das redondezas; e ao sol da Primavera queria era caçar. Pássaros de telhado, pardais e ratinhos dos campos, ratinhos do celeiro… ratinhos! ah, os seus ratinhos da gaiola… como se esquecera deles?! Aquelas andorinhas tinham-no tirado do sério. 
Avançou por cima do telhado, lançando um último olhar, como um adeus, àquelas esganiçadas aves, que tanto o tinham feito sofrer, e desceu pelo poste que segurava o telheiro.

Foto

12/04/2024

Integrada

A professora de História traz um camaleão no carro, debaixo de um chapéu de palha.
A minha turma é a preferida dela, talvez por sermos só meninas. Também, de todos os professores, ela é a nossa preferida. É muito nova, linda, e uma simpatia. Uma jóia. Usava óculos, mas começou a aparecer sem eles. E é ainda mais linda! Usa saias, com pregas e machos, todas parecidas umas com as outras. Certa vez descobrimos que não são meras saias: são saias-calção. Ainda hei-de ter uma assim...
Como somos boas alunas e bem comportadas, ela deu-nos um presente que adoramos: um conto, que nos vai lendo, aos bocadinhos, numa parte das aulas. Por isso, portamo-nos ainda melhor, na expectativa da continuação da história, que não tem nada a ver com História. É sobre uma menina que fecham em casa, um casarão, e a quem não deixam passear nem brincar com os colegas. Está a ser muito emocionante. Até já chorei. Todas temos uma enorme empatia com esta professora. E eu, que até nem era grande aluna a História, comecei a tirar muito boas notas.
Foi ela que me ajudou a integrar na escola e principalmente na turma. Notou como eu me andava a sentir e falou comigo, e depois falou com as minhas colegas. As suas palavras são de mel.
Um dia ela mostrou-nos o camaleão. Assustei-me um pouco, pois nunca tinha visto nenhum, e pensei que ele fizesse mal. Mas não. É um bichinho muito querido, que muda de cor conforme o que tiver junto a si...

09/04/2024

Pontos nos iiiii

Não sou pássaro de gaiola. Gosto de me soltar livre de amarras ao encontro da linha do horizonte.
Mas quando nas veias me corre apenas o cansaço, vêm lembranças mudar-me o rumo. São grades que tenho de esgrimir para que as penas me sejam leves. Uma aspirina às vezes ajuda: distende um pouco as grades e eu, pássaro dorido, posso escapar por entre elas.
Do lado de fora é tudo muito mais alegre. E o sol aquece mais.
Sabes, é o sol que mais me propicia evadir; com o sol eu posso viver a valer. Por isso, peço-te, não me tapes o sol, nem sequer com uma singela névoa, porque me matas mais do que com trancas na porta.

06/04/2024

A Casa dos Ratos - (en)fim


E então os belos ratinhos, bem aperaltados com os seus lacinhos, pela calada da noite, encheram as prateleiras da despensa e da cozinha com as suas vidas agitadas. Corriam por elas afora e adentro, escondendo-se nos recantos dos biscoitos, do açúcar, das massas, do arroz, das panelas e dos testos delas; tombavam frascos, tilintavam copos, lambuzavam pratos, roíam guardanapos, toalhas, outros panos e papéis… faziam, cada qual, o seu papel numa trama de cordel: marcavam o seu lugar, deixando a sua marca num rasto de rataria; chiavam, num riso fino, gozando com o gato e os ex-donos, agora que a vida lhes sorria; mordiam, aqui e além, neste e naquele cartucho, provando isto e aquilo, comendo do que queriam e estragando outro tanto; pintavam a manta e o manto de preto e outras cores, sem pejo nem outras dores; café, açúcar, bolachas – é tudo nosso!; fosse doce ou salgado, cru ou cozinhado, frito, cozido ou grelhado, pouco ou muito – o que é que importa?! –, até ao nascer do dia. Que depois é outro dia. E é para dormir, bem escondidos, sem companhia do gato; que ao cair nova noite nova festa vai raiar. 
E assim foi depois, nos outros dias – ou melhor, noites – na cozinha e para lá: na sala, nos quartos; era fazer o ninho no forno do fogão, e mais outro no sofá da sala… e outro atrás das orelhas do Tonecas – que esse, coitado… nunca mais os viu acordado, só em sonhos quando estava deitado, ou antes, em pesadelos a escaparem-lhe ao lado. 
Assim, sim: que rica vida, enquanto essa durar não vão querer outra. 

E estragação dos diachos naquela casa se fez, tudo a monte e à vez: retraçado, estraçalhado; escaganitado e esmijaçado como resina ou pez. Ora bem – ou ora mal –, tudo tudo ratado! 

Quando se protegem os ratos, eles acabam por tomar conta da casa. 

E viveram felizes e contentes numa casa toda deles. 

Sape gato!


03/04/2024

A casa dos ratos — intermezzo (7.1)


Deitou-se ao pé da gaiola dos ratinhos, como quem estivesse à sombra, como se ela fosse um porto de abrigo que o protegesse de raios abrasadores e de outros incómodos tais quais pragas rogadas, assombramentos ou pavores.

Mergulhou numa nostalgia letárgica e assim se deixou estar tempos infindos, sem sequer se lhe ouvir um ronrom. Parecia que o seu mundo tinha parado ali. Estava cansado. Cansado de correr atrás de quimeras, e os ventos sempre contrários. Pobre bichano, como até a um gato a vida pode fazer negaças!

Inspirou fundo e soltou depois o ar num suspiro soluçado. Agora não queria nada, mais nada, nada mesmo. Só um vazio sossegado. Enroscou-se mais, escondendo a cabeça debaixo das patas dianteiras, e deixou-se ficar, sem desejo algum.

Não tardou muito que o arrulhar de uma rola lhe viesse perturbar o inconsciente. Ah, as rolas! Meninas bonitas, as malditas, sempre com os seus rucrruu rucrruu a chamá-lo! E ele a começar com água a crescer-lhe na boca. E o rucrruu rucrruu a aproximar-se, e ele, pata ante pata, cada vez mais perto… um pulito sorrateiro e zumba! A mordida no pescoço foi certeira e fatal. Abraçado a ela, sorveu o sabor meio salgado que lhe escorria por entre os dentes, cuspiu as penas, fungou… acordou. Soube-lhe bem. O sonho viera dizer-lhe que tinha que voltar à caçada, porque gato que é gato não fica assim apático e desanimado.

Agora ia poder dormir o seu sono solto, de olho naquela fresta da gaiola.

(continua)

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