14/08/2025

Sonhos de Criança

(reposição)

A turma foi dividida em duas partes. Enquanto metade da turma tem aulas de Desenho, a outra metade tem Trabalhos Manuais. Depois trocamos. Destas duas, a aula que mais gosto é a de Trabalhos Manuais. Não é que não goste da de Desenho, mas é que não tenho muito jeito para desenhar; a não ser que seja Desenho Geométrico, aí já faço uns riscos mais ou menos. No entanto, gosto de ter o meu material, não gosto de andar a pedir emprestado às colegas. Só que ainda estou à espera que a Lucília compre, para me devolver, uma ponta do compasso onde se coloca a tinta-da-china, que ela me pediu emprestada, e que fez o favor de deixar escorregar pelo cano abaixo, quando a lavava debaixo da água da torneira. Ando farta de lhe perguntar quando é que me compra outra. Isso aborrece-me um bocado e não me deixa aproveitar estas aulas como deveria.
Quanto à aula de Trabalhos Manuais, essa sim, gosto, pois posso usar mais livremente a minha criatividade. Nestas aulas sinto-me extremamente motivada. Gosto dos trabalhos que lá faço e gosto da professora, o que me leva a desejar vir a ser, um dia, uma professora como ela. Sim, gostava de ser professora, comecei a sonhar com isso. Já o disse aos pais.
Mas será que os adultos têm em conta os sonhos das crianças?

13/08/2025

Se chove...


Chove. Chove se chove!

A andorinha estacionada no fio do telefone espaneja as asas de consolação.
Agora: um relâmpago, seguido de trovão que ecoa céu cinzento além.
A andorinha, porém, continua no mesmo sítio, alegre no seu banho de chuveiro, soltando, de vez em quando, a sua cantilena de satisfação.
Em baixo, dois melros pulam no tapete verde molhado do pasto verde recém-cortado; outra andorinha rasou o muro alto, indo enfiar-se debaixo do telheiro, direita ao ninho acolhedor das suas crias, que lá vivem o seu pequeno mundo o dia inteiro.

Os melros acabam por abandonar o recinto; e a andorinha, não minto, continua no seu duche matinal; ao mesmo tempo que um outro pardal se passeia em pequenos voos rasantes às folhagens verdes das plantas do canteiro do quintal, nelas pousando aqui e ali sem se demorar, beijando pérolas luzentes e macias de água, como quem as quisesse namorar.

A chuva abrandou um pouco, e a andorinha deu por finalizada a sua mais que tarefa refrescante sagrada. Foi e voou pelos ares na parda madrugada, enquanto eu observava pela janela, encantada.

Logo logo, a chuva recomeçou. E a andorinha voltou. Ao mesmo preciso lugar. E dali mirava o mundo ao redor. Era a sua praia. 

Eu é que não me posso quedar mais tempo à janela a mirar, não vá o mundo fugir ou parar. Daqui para a frente, se quiser escrever o que a andorinha fizer, só se me propuser inventar.

E se chove!...

12/08/2025

Subir o Caminho II


Acordo cansada. Com o coração a querer saltar-me para fora do peito. Há dois dias que ando cansada. Um cansaço em estado crescente a escrever-me no corpo rimas de todas as coisas e de coisíssima nenhuma. Sinto-me quase apática, quase sem qualquer vontade. Como se se tivesse levantado, à minha volta, uma nuvem de pó desta cruzada. O que quererá o corpo falar-me? Há, por vezes, palavras tão difíceis de se deixarem agarrar… e entender. 

Quem me dera uma chuva miudinha que me refrescasse a fronte latejante, que orvalhasse o pó do caminho. Que bom seria sentir o cheiro a terra molhada, para que esta penitência fosse menos custosa, um pouco menos pesada, menos severa; mais airosa, mais suave… mais lavada. 

É assim, no meu amargo soluço, que a madrugada me encontra, começando a espreitar-me, avidamente, por debaixo da porta. Primeiro, uma nesga de claridade, depois um céu aberto. E entra no quarto uma sinfonia de luz, recortada a chilreio da passarada. Percebo que as estrelas lá fora, no céu, já se despediram da noite, e está agora o dia a ser torneado pelo sol. E o meu corpo a pedir mais repouso, sem se atrever a levantar! 

O dia ergue-se e enche toda a casa, pássaro louco a esvoaçar esbaforido numa madrugada de Verão, sacudindo as asas e agitando tudo com elas. A manhã a esticar as penas, a espanejar as asas ao sol. E eu a encolher-me, a preguiçar, sem me apetecer espreguiçar-me, mole, apesar da luz intensa do sol a enfiar-se-me pelo quarto, pela cama afora, pelos lençóis adentro; apesar das vozearias da passarada, das labutas a começar lá fora. 

Maldito cansaço que me prega à cama, que não se desprega de mim. 


«Há dias em que o sol nasce quadrado, 
em que o fogo gela 
e em que a maré está vazia 
de vontade de a encher 

Há dias em que o silêncio ensurdece, 

em que o amor perde a coragem 
e em que o norte perde o rumo. 

Nestes dias, 

há uma alma angustiada 
que clama por consolo 
mas o vento cala a sua voz. 

A esperança esmorece, 

a força desvanece, 
a fé hesita, 
a luz apaga-se. 

Nesta noite escura, 

que me sufoca a alegria 
e me impede de respirar a Tua paz, 
que eu saiba perseverar no meu caminho, 
mesmo sem saber qual é. 

Que eu saiba ter paciência 

e manter acesa a chama da confiança, 
mesmo sem saber porquê. 

Que eu saiba acreditar que nela permanecerei, 

impotente e só, 
apenas o tempo que for necessário…»
(Raquel Dias, Há dias assim, em: Renascer Do medo à confiança)

11/08/2025

O Desembaraço


De molhos de garrafões de plástico vazios nas mãos, aproximo-me da fonte para os encher de água. Sabe bem assentar os pés, descalçados os chinelos, no pequeno lastro alagado. No tempo do calor é fresquinha a água desta nascente que jorra continuamente em bica desembaraçada; como desembaraçadas são as duas mãos idosas que ali esfregam a roupa ensaboada na pedra. 
Dou as boas-tardes e peço licença para encher os garrafões, se não for incomodar. 
– Sirva-se à vontade! 
– Obrigada! Sabe bem estar aqui com os pés fresquinhos… – digo para meter conversa. 
– Pois é. Agora é mais fresquinha e no Inverno é mais morninha… 
Vou enchendo vasilha a vasilha, enquanto ela vai esfregando e molhando a roupa devagar na bacia com água, virando-se de lado para mim. 
 – Só há quem a venha aqui estorvar… – digo, pensando que posso estar a demorar, e ela precisará de se servir da bica da água. 
– Não estorva nada. A gente nunca estorva ninguém. 
– Se calhar andamos mas é por cá a estorvar-nos uns aos outros… 
– Não senhora! A gente não estorva nada. Antigamente tinham seis e sete e oito ou nove filhos e não se estorvavam uns aos outros… agora são menos, não há razão para se estorvar ninguém. 
– É bem verdade. Agora é só um, ou dois… quando é!... 
– E tudo se criava. Você se calhar não sabe… não era do seu tempo, mas, e quando se partia uma sardinha em dois ou três só com um bocadito de broa?… agora é só lambarices… e coisas caras. 
– Realmente… ainda dizem que agora os tempos são maus… e que não dá para se viver… as pessoas habituam-se ao que é bom, ao conforto, e já ninguém quer passar com pouco e fraco. 
– Ah, mas olhe, acolá em cima há uma rapariga, você não deve conhecer, que não é de cá… bem, quem mora ali são os pais, ela agora já não mora cá, que já está casada; quero dizer, casou e separou-se e voltou a casar ou a juntar-se… 
– Pois… agora já não se estranha isso… 
– É assim!... Pois essa rapariga trabalha, ou trabalhou, num talho. E contava ela que vinha a carne para o talho e ia-se vendendo para uns e para outros… e passava-se uma semana e nunca se vendia toda… e a carne que ficava começava a ganhar bichos, daqueles com um rabito, você não sabe?... têm um rabito… uns bichos com um rabito… e depois passavam aquela carne por uma máquina e bichos e tudo, moíam aquilo tudo… para… 
– Para fazer hambúrgueres?... 
– Isso. E sei lá mais o quê… olhe, depois era tudo vendidinho!... 
Sorri levemente, num misto de assentimento e incredulidade, acabando de encher os garrafões e acabando a conversa por ali mesmo com um adeus. 
E a água a jorrar sempre certinha e desembaraçada ficou; como certinhas e desembaraçadas as palavras de quem com mestria as ditou.

10/08/2025

A rede


Há uma rede de arame enleado, pregada em estacaria por cima do muro; caída a certo passo, em certo tempo derrubada, e a par e passo pisada. É uma vedação que nada veda: nem vento, nem maresia, nem tempo, calor ou invernia; nem vegetação, pássaro, insecto, luz da noite ou do dia; ninguém. 

O tempo vem empurrado pelo marulhar ao encontro da praia e parece ir, dolente, levitar nas asas das gaivotas que não param de dançar, suspensas, lá em cima, num céu acinzentado, meio doente, meio enfarruscado. 

A rede delimita o olhar de um ao outro lado – fora e dentro, só olhar. De fora, atrás, o mar; do outro lado, lá dentro, o tempo custa a passar. De fora, os olhos só vêem a espera, pesada, a arder. 

Por um pouco de tempo, o olhar esqueceu-se de se envolver, semicerrou-se, cansado de pestanejar; e o tempo suspendeu-se, amarelo, na ponta de uma estaca onde a rede se queda, senhora de si, empertigada, enviesada, salpicada da maresia demorada…
 
Dali a outro pouco tempo, do nada, bateu o sol ao atrever-se a espreitar. Um ar de graça que, quer se queira ou não queira, de qualquer maneira, passa. Portanto, sol de pouca dura (e ai, a fome… que ninguém a atura!). 

Mas o tempo é para comer e estar. Porque, do lado de dentro da rede, há outra rede que faz o tempo tardar.

09/08/2025

A Casa dos Ratos — intermezzo (8)

 (anterior)

Toda a quadrilha tem um chefe. E eles eram quatro – adiantou-se o vermelhinho: “Eu sou o chefe! Vamos lá, que se faz tarde!” 

E aí vão o Vermelhinho, o Azulinho, o Verdinho e o Amarelinho numa desfilada apressada em fila pelo carreiro, no desfiladeiro do túnel a desembocar numa fresta, alargada pelo Tonecas de tanto por lá remexer. E uma luz lá ao fundo brilhava para eles, que já a estavam a ver. Mas são os olhos do Gato que brilham tanto no escuro na ânsia de os comer. Um sobressalto. Um salto. Um “Alto!... Para trás!... que está ali o rapaz!”
Tiveram de recuar e esperar por melhor oportunidade. 

O Tonecas percebera que tinham tentado fugir. Ficou mais alerta, mas à futrica. Desejava-os há tanto tempo que temia que lhe escapassem sem lhes conseguir tocar. Disfarçou, fechou um olho e abriu outro, espreitou pelo buraco, esperou, esperou, esperou, eles haviam de vir. Fingiu um sono profundo. E adormeceu... e acordou e… 

...é agOora! Deu um salto estendendo as mãos e… 

Quase, quase!... por um triz. Ao lado do seu nariz.

Caramba! (meneou a cabeça), como foi possível?! Estava apardalado... Tinham passado rapidamente debaixo dos seus bigodes, caladinhos como só ratos, que só viu o rabo do último. 

Ainda correu, esbracejou, procurou, fungou, miou, qual quê? Agora?! Muito tarde e a má hora! Já deviam ter-se alojado nalgum canto bem escondido. Ah, como lhe tinham apetecido, como lhe apeteciam ainda, que nóia! Cabisbaixo e atordoado retirou-se, já nada havia a fazer, melhor seria agora esquecer. 

07/08/2025

Tempestade Vendaval

Sobravam tempos a ameaçar. Céus nublados e semblantes. Desconsertos, sem concertos nem sinfonias. Danças em dó maior.

E chegou, viu e quis vencer.
Em cegueira que se apodera das fragilidades, e destrói em segundos o que levou anos a mal erguer.
Ela desce e rodopia, roda e pia, pia e roda. Enrosca-se e enrola. Rola, rebola, revolve e revolta, às voltas, às soltas, sem tento nem portento que lhe trave e freio; sem meio de remir o que largou ou o devir.

Tempestade vendaval desengonçada atravessa a praça e as ruas; as vielas mais escondidas; os jardins e as florestas; as aldeias preguiçosas e cidades buliçosas, desde o casebre mais tosco até ao palácio real; castiçais e candelabros são apagados num fôlego, sem dó nem piedade de plebeu ou divindade.

Tempestade furacão, fura gente, fura almas, desalmada, descompensada, destrambelhada, sem coração nem entranhas, que causa dores tamanhas, torturas, tonturas e desgostos; salta em rostos pregões aos quatro ventos, arrastando-se pela lama, destelhando até à cama, rodopiando à lareira, soprando pela boca faúlhas de fogueira. Invertebrada sai pelos mundos de qualquer jeito e maneira, sem jeito nem maneira, de soltura e caganeira. Garganeira.

Mas creio firmemente num só Deus que nos governa e vela; quando nos atravancam uma porta, Ele escancara-nos uma janela.

02/08/2025

Subir o Caminho VII

As pedras... Por vezes as pedras que nos surgem no caminho são ásperas e pesadas, impossíveis de remover. Pedregulhos e penedos soltos que têm de ser contornados para encontrarmos um caminho mais macio e sereno. Caminho que se vai fazendo ao caminhar, a cada passada. 

Quando a vida flui e caminhamos naturalmente pelos nossos pés, livres e sacudidos, sem dores musculares ou nas articulações, desimpedidos de muletas ou bengalas, torna-se mais fácil a caminhada, mas não isenta de tropeços ou atrasos. Há sempre que prestar atenção às pedras do caminho. Elas estão por lá. Podem espreitar onde não esperamos. Até num caminho já tantas vezes trilhado, podemos ser surpreendidos, apanhados desprevenidos por um grande calhau ou pedranceira, rolados do alto, estatelados ao comprido, sem eira nem beira. Há que contornar, ultrapassar, e seguir.

A Vida é o que é; e as pedras sempre serão o que são. É isso que temos que interiorizar, porque não podemos mudar isso. Nada a fazer senão aceitar, por muito que nos custe e atrapalhe o nosso caminho. Desviemo-nos, portanto, dos pedregulhos. Não deixemos que nos importunem, e prossigamos a caminhada sem que nos embaracem os passos. 

Pedras no caminho sempre as houve. Há que aprender com o passado para caminhar no agora, rumo ao futuro idealizado. Mas quem aprende?...

Há montes e vales, riachos de água fresca, desertos, oásis... e tantas mais coisas que fazem parte do caminho. Da subida.

Há também as asas do vento e o embalo do sentimento, para ir saboreando algum pequeno voo.

Mas uma certeza nos deve guiar: não caminhamos sozinhos. E isso nos deve animar.


“Eu caminho, sem ver o caminho
Eu caminho por sendas de paz.
Mas eu sei que há alguém
que me ajuda no caminho.
Mas eu sei que há alguém
e com Ele irei caminhar.”

(Sendas de Paz)


01/08/2025

Subir o Caminho VI

Sento-me por momentos numa pedra na encosta a meio da ladeira íngreme, ofegante de cansaço; à minha volta, fragrâncias húmidas de terra e de musgos. As pedras, castanhas de terra, gemem pequenos fios frescos prateados. Por baixo de uma pedra espreita um pequeno lagarto, ou lagartixa – nem sempre sei bem distingui-los; e por entre outras, pequeninas flores. Até no meio das pedras, Deus faz brotar as mais belas flores. Para que se aprenda a sorrir e se esqueçam, ainda que por momentos, as dores. Para além da meta que se pretenda alcançar, é preciso saborear os bons momentos do caminho.

Ergo-me, depois de inspirar o pequeno descanso. No meio do caminho a pedra ficou.
A pedra. E as outras pedras.

As pedras, que são tão essenciais aos alicerces! – sem alicerces somos construção frágil, que em qualquer altura está sujeita a ser levada pela menor ventania.

Pedras que tanto fazem parte do caminho! Continuam no meu trilho a querer morder-me os pés na subida.
Temos que saber aproveitar as pedras em nosso favor, e contornar as que são obstáculos... é o que faço, é o que tento sempre fazer!
A vida está longe de ser planície, embora também as tenha. Mas de montanhas e planícies se conjuga o verbo viver.
A vida, como os ramos de uma árvore, entrelaça-se nela própria e vai seguindo rumo à claridade. Uns ramos vão chegando ao fim do seu percurso, enquanto outros brotam e vicejam.
Por vezes os troncos de algumas árvores são castigados com pedras – pedregulhos – lá colocadas ao seu redor rente ao chão. Para quê? Talvez para que aprofundem as raízes à procura do melhor sustento e venham depois a produzir muitos e saborosos frutos – ouvi dizer.

E vou subindo. De vez em quando resvala-me, por baixo dos pés, uma ou outra pedrita que depois rola por ali abaixo, atrás de mim. Não faz mal. Eu prossigo a marcha. Subo. Por vezes como quem trepa. Tenho de subir. Nem que as mãos tenham que ir ao chão aqui ou ali, quando preciso for, para segurar, amparar, para que não me surpreenda alguma queda, mais ou menos aparatosa, e esfole os joelhos, ou a alma.
É dura a subida; mas sei que depois de subir, ainda terei de descer para voltar para casa. Eu sempre pensei que descer era mais fácil – “para baixo todos os santos ajudam”, não é? – Não, não é, afinal. Disseram-me que descer custa mais. Algumas vezes terei de descer de costas, escorregar sentada, com todo o cuidado, não vá cair ao desamparo, e o vazio venha a ser o ganho da jornada.

E andamos toda uma vida com algum vazio por preencher, a esfarrapar-nos contra esquinas de pedras agrestes que nos cerceiam. Quando, por fim, nos libertamos, tantas vezes ficamos mudos e quedos sem conseguir absorver a realidade.


«Quando as pedras frias
caem brancas e torcidas
sobre as palavras imperiais,
mordendo-lhes as raízes
como se fossem o contrário do que são,
fecham-nos a alma e ficamos sem saber
se as asas se quebram ou
se ficamos de pé à espera das próximas pedras.»
(José Maria Brito Sj)

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