04/11/2025

Sombras II

Tinha reparado com atenção em toda aquela inusitada cena na piscina e seguiu-os. Sabia como lidar com crianças, sentia aptidão natural para isso. Por isso foi-lhe fácil aproximar-se e falar com cuidado e meigamente. Procurando ganhar a confiança deles, começou por perguntar com se chamavam. Manuel e José, respondeu o maiorzinho, apontando para si e para o irmão, respectivamente. Que faziam ali sozinhos? Que não sabia da mãe. Esta, ao sair, tinha-lhe pedido que tomasse conta do irmão. Seria por pouco tempo. Não demorava. Uma colega tinha necessidade da sua ajuda e era preciso que lá fosse.
Primeiro pensou que ela tinha precisado demorar um pouco mais, e adormeceram no sofá da sala enquanto viam televisão. Do dia seguinte acordaram e ela não estava no quarto. Se calhar tinha saído para fazer alguma coisa e não tinha querido acordá-los. Comeram bolachas com leite, e mais tarde os iogurtes que estavam no frigorífico. E à noite a mãe ainda não regressara.
Hoje resolvera procurá-la nos lugares onde ela os costumava levar. Não tinham mais ninguém em casa. Sentia muito a falta da sua mamã. Tinha medo que lhe pudesse ter acontecido alguma coisa de mal.
O pequenino pedia a mãe. Pegou-lhe ao colo e acarinhou-o como se fosse filho seu. Adormeceu-lhe no regaço enquanto o acariciava. O outro encostou-se-lhe também e sentiu-se invadir de uma ternura imensa. Estes pequeninos precisavam de alguém que olhasse por eles, que lhes encontrasse a mãe, que os protegesse, tão indefesos e carentes estavam, e tão à mão de predadores, alheios ao perigo que corriam. Tinha que fazer alguma coisa.
Entrou com eles na igreja enquanto o mais pequenino dormia e ficaram um pouco em silêncio naquela penumbra refrescante. Pediu ajuda à Virgem. Era preciso fé e esperança.
Mais tarde, levou-os a lanchar e acompanhou-os a casa, talvez a mãe já lá estivesse. Não estava. Viu fotos... e o seu sangue gelou e ferveu... procurou nomes, telefonou. Fez-lhes o jantar e comeu com eles. Tranquilizou-os, encontraria a mãe! E adormeceu-os contando-lhes uma história.
Fez mais telefonemas. Sim, estava ali… meu Deus, deveria ser ela! Sentiu-se invadir por uma convulsão incontrolável, um sentimento de perda irreparável, um vazio sem esperança. Agora estes meninos não tinham ninguém, não tinham mais ninguém senão a si... e tomou a decisão: seria o seu pai. O pai que eles pareciam não ter.

03/11/2025

Tatuagens Escondidas [4]


O mês de Novembro banhou-me de melancolia. Logo a mim, que até sou sempre tão alegre e tão sem problemas. O ambiente carregado dos dois primeiros dias, em que a vida girou em torno da morte, é que desencadeou esta carga negativa. De cada vez que penso em entrar no cemitério o mundo cai-me aos pés. Mas quis levar uma flor à avó; era o mínimo que podia fazer por tanto que ela foi para mim. Quando penso nela bate-me uma saudade tão grande!
Fui descendo a ladeira íngreme, em romagem com as outras pessoas, depois da missa, e, lá em baixo, lá estava aquele grande painel assombrado de casinhas e lápides brancas e cruzes, agora apinhado de gente, de flores e de velas acesas, que se podia ver cá do alto, brilhando por entre os muros caiados de branco, com um jardim de sicomoros na frente. Um local deveras assustador…
Embrenhada mais nesta visão fantasmagórica do que no coro de avé-marias, que se iam desfiando no cortejo encabeçado por duas lanternas e uma cruz ao centro, que luziam por cima dos olhares, levadas por três homens vestidos com umas vestes vermelhas de sangue, escorreguei nas pedras da beira do caminho e caí. Prontamente socorrida por quem ia ao pé de mim, larguei algumas lágrimas, mais pela vergonha do que pelas dores que sufoquei. Rasgaram-se as meias compridas, esfarrapei os joelhos que ficaram cravejados de pedrinhas e a sangrar, e quiseram obrigar-me a voltar para trás para ir à farmácia fazer um curativo. Mas teimei em prosseguir. A coragem tinha de se impor ao resto: tinha de deixar de ser a menina frágil e infantil que todos faziam de mim. Só no fim de levar a cabo o que ia fazer é que fui tratar das feridas.

Agora, pensando nisto tudo, lembro-me da canção que me faziam cantar sempre, em todo o lado, quando era pequenina, e a que achavam muita graça:

"Naquela linda manhã
Estando a brincar no jardim
A certa altura a mamã
Chamou-me e disse-me assim:

Não brinques só a correr
Tropeças sem querer
Depois ficas mal.
Respondi: pronto está bem
Mas antes, porém, esqueci-me de tal.

Não me lembro depois como foi
Escorreguei caí no chão.
No joelho ficou um dói-dói
No nariz um arranhão.
Desde então prometi ser melhor
De ser boa e ser feliz.
Faço agora tudo quanto
A mamã me diz."

Era apenas uma canção, porque reparo que não faço tudo quanto a mãe me diz. Já não sou a menina dócil que me querem. A rebeldia começou a apoderar-se muito de mim, juntamente com toda a melancolia que me envolve.

31/10/2025

Sombras I

O tempo convidava a um mergulho naquela água reluzente. Mas o calor escaldante que se fazia sentir desenhava-se numa capicua de sofrimento. Caminhando pela beirinha da piscina, puxando pela mão o seu irmãozinho que ainda mal andava, o menino procurava desesperadamente com o olhar. No bolso, a chave de casa - uma mansão antiga, grande demais para dois meninos sozinhos. O pequenino chorava, ora caindo, não conseguindo acompanhar o passo agitado do irmão, ora sendo arrastado e obrigado, pelo mais velho, a levantar-se. A criançada ficou curiosa perante o espectáculo, e alguns adultos pareciam temer que os dois pequenos caíssem à água. Que se passaria com estes meninos que destoavam daquele ambiente? Infrutíferas buscas causavam cada vez mais desânimo neste menino de olhar cansado e fugidio. Havia já duas noites e dois dias em que tudo se resumia a uma espiral de angústia devastadora. Não a encontrava nos locais de lazer, que tão bem conhecia, habituado que estava a que ela os lá levasse. Procurara-a e não a encontrara. Urgia, agora, repensar a estratégia, antes que o desalento e o pânico se instalassem por completo. Sentado na soleira da porta da igreja, esperava. Talvez uma luz divina o iluminasse. Então pareceu-lhe que um anjo lhes falhava. Respondeu às suas perguntas como se o céu os tivesse vindo socorrer. Tinha necessidade de confiar em alguém. Contou tudo. O que acontecera, as suas inquietações, os seus medos e o como já não sabia mais que fazer para calar o irmãozinho. Aquele anjo bondoso tranquilizou-os e até conseguiu que o pequenino adormecesse. Escutava inebriado aquela voz melodiosa que lhe respondia serenidade e esperança. Então pôde acalmar um pouco, recostando-se de encontro ao seu peito, fechando os olhos, sentindo pousar em si a sombra das suas asas delicadas.

30/10/2025

A rede


Há uma rede de arame enleado, pregada em estacaria por cima do muro; caída a certo passo, em certo tempo derrubada, e a par e passo pisada. É uma vedação que nada veda: nem vento, nem maresia, nem tempo, calor ou invernia; nem vegetação, pássaro, insecto, luz da noite ou do dia; ninguém. 

O tempo vem empurrado pelo marulhar ao encontro da praia e parece ir, dolente, levitar nas asas das gaivotas que não param de dançar, suspensas, lá em cima, num céu acinzentado, meio doente, meio enfarruscado. 

A rede delimita o olhar de um ao outro lado – fora e dentro, só olhar. De fora, atrás, o mar; do outro lado, lá dentro, o tempo custa a passar. De fora, os olhos só vêem a espera, pesada, a arder. 

Por um pouco de tempo, o olhar esqueceu-se de se envolver, semicerrou-se, cansado de pestanejar; e o tempo suspendeu-se, amarelo, na ponta de uma estaca onde a rede se queda, senhora de si, empertigada, enviesada, salpicada da maresia demorada…
 
Dali a outro pouco tempo, do nada, bateu o sol ao atrever-se a espreitar. Um ar de graça que, quer se queira ou não queira, de qualquer maneira, passa. Portanto, sol de pouca dura (e ai, a fome… que ninguém a atura!). 

Mas o tempo é para comer e estar. Porque, do lado de dentro da rede, há outra rede que faz o tempo tardar.

29/10/2025

Regresso ao mundo II

anterior
Uma sonata de sons alucinantes parecia ecoar aos ouvidos de José Miguel, como convite a loucuras inconfessáveis. Aquela mão, retida na sua, irradiava centelhas de calor que o trespassavam até à medula.
O mundo tinha parado e José Miguel, de olhos fechados, saboreava com sofreguidão aquela embriaguez dos sentidos que se apoderara dele, enquanto o seu peito arfava de comoção.
Não conseguindo aguentar, foi deslizando a sua mão pelo braço nu da sua amada, num bailado de arrebatadora paixão.
Sentia-se um pecador, mas o desejo foi mais forte. Pousou os seus lábios naqueles que o chamavam com um misto de veludo e seda, primeiro com toda a suavidade, depois, sentindo-os entreabrirem-se, fundiram-se neles numa entrega inevitável e plena de êxtase.
O beijo quente e apaixonado fez-lhe reviver alvoroços perdidos no fundo de um baú. Mas aquilo parecia-lhe uma violação. “Perdão, meu amor…”, foram as palavras que lhe afloraram à mente. E afastou-se. Afastou-se sem se poder saciar naquela boca, que tantas vezes tinha povoado os delírios das suas noites. Afastou-se sentindo um arrepio profundo a inundá-lo, até lhe deixar as mãos trémulas e a cabeça à roda. E, de repente nauseado, antes de ter tempo de procurar onde se sentar, notou que o chão lhe fugia…
As emoções tinham sido muitas e demasiado fortes nos últimos dias, e aquela vertigem, que lhe tirou momentaneamente os sentidos e o atirou ao chão, era o resultado disso.
“Luísa… oh, Luísa… tanto te esperei!...”

27/10/2025

Minha Laranja Amarga e Doce


Enterrou a unha do polegar na casca da laranja e puxou. Não resistiu a enfiar o pedacinho amarelo-alaranjado na boca e cortar com os dentes aquela parte branca, de dentro da casca, que gostava de saborear. Era leve e adocicada, em contraste com os salpicos amarelos, oleosos e acres, que saltaram da parte de fora e se lhe entranharam nos dedos, e lhe chegaram ao nariz num aroma esborratado de acidez e remédio. Lembrava-lhe aqueles xaropes que a mãe lhe dava em criança quando estava constipado e com tosse. 
Outra unhada na laranja e outra pequena casca prontinha a abocanhar. Num instante, a laranja ficou descascada e toda a parte branca da casca comida. Parecia que tinha passado por ali um bichinho guloso que devorara aquilo tudo, mas não… ou sim. Sim, um bichinho de mãos amarelas e gordurosas e com uma espécie de massa esbranquiçada debaixo das suas unhas: o rasto do que ali acontecera, não podia negar. Tinha-lhe apetecido lavar logo as mãos ao tirar a primeira casca, mas veio-lhe a recordação dos seus tempos inocentes da infância e contivera-se. Passando a língua nos dentes, notou que lhe soubera mesmo bem voltar a ser criança a fazer travessuras. 
A laranja era agora uma bola madurinha e doce a pingar sumo pegajoso para as mãos. Como lhe crescia água na boca! Separou-a em duas metades. Depois, abriu gomo a gomo, que dispôs à roda num pratinho. E ficou a sorrir sozinho: estava já a imaginar o filhito a começar a fazer as caretas azedas àquela iguaria, mas depois a pedir sempre mais, como de costume.

17/10/2025

Arrepiar Caminho I


Valha-me Nossa Senhora, 
Mãe de Deus de Nazaré! 
A vaca mansa dá leite, 
 a braba dá quando quer. 
A mansa dá sossegada, 
a braba levanta o pé. 
Já fui barco, fui navio,
mas hoje sou escaler. 
Já fui menino, fui homem, 
só me falta ser mulher. 
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré! 
(Ariano Suassuna, Auto da Compadecida)

A estrada é larga. Asfaltada.
Ouso o caminho quando o sol se reclina, por cima das ramagens, em direcção ao mar. Deixo a estrada principal e desço a ladeira íngreme  via semi-nova, pouco movimentada  rumo à natureza, levando pela trela o meu camarada de passeio. Uns metros adiante, solto-lhe a trela para o deixar correr à sua vontade, agora que a estrada é só para nós.
Faz-se bem este caminho, em modo de passeio, sempre a descer.

A dezena vai-me rolando entre os dedos da mão direita, enquanto os pés vão pisando o asfalto negro na sede da caminhada. Mistérios Dolorosos.

Lá em baixo, no vale, onde o arvoredo se torna mais denso, o meu amigo já anda a farejar as bermas da encruzilhada, enquanto espera que eu lhe indique a direcção a tomar. Hoje vamos virar à esquerda, sempre pelo asfalto, deixando o caminho da direita, em terra batida, para percorrer amanhã. Ainda ao longe, faço-lhe sinal com a mão e ele avança resoluto. Gosta de ir sempre à frente, no comando, como se fosse ele o dono da viagem, e eu permito-lhe esse gosto.

Uma ligeira subida e deixamos o asfalto para trilhar o caminho da floresta que nos fica do lado esquerdo. O caminho é nosso conhecido de outras caminhadas. Descemos agora. Ele corre; eu vou ficando um pouco para trás, assobiando-lhe de tempos a tempos, para que não pense em dispersar-se por outros lugares que não o caminho que levamos. Na bolsa, que levo a tiracolo, enfio a trela – que já me cansa na mão esquerda – e tiro a máquina fotográfica para tirar umas fotos a uns maciços de cogumelos que me surpreendem o olhar, que grande alfobre nasceu aqui!

Continuo. No próximo cruzamento lá está ele novamente à minha espera, olhando-me ansioso. Indico-lhe a subida, à direita, e seguimos quase lado a lado, agora que é a subir. A meio da ladeira há um carreiro à esquerda, por onde já fomos uma vez, até uma pequena capela; e uma curva à direita na continuação desta estrada de pedra sobre pedra. Bordejam-na alecrins, rosmaninhos, silvados de amoras ainda verdes e algumas flores cor-de-rosa de chícharos-selvagens. Tiro mais umas fotos – este mundo é um jardim que me seduz!

Guardo a máquina fotográfica e penso que está na hora de voltar para trás, porque já andámos a metade do tempo que determinei para esta caminhada, e é preciso fazer outro tanto tempo no mesmo caminho de regresso, antes que se faça noite. Mas…

16/10/2025

Ao Domingo

(reposição)

 
- Só agora? Ficaste a despir o padre?!
Já me habituei a este tipo de ralhete, de voz forte, do pai, ao domingo quase à hora de almoço. Ele quer que eu ajude a mãe na cozinha, mas é ela que não me quer lá… manda-me sempre de lá para fora, diz que eu só atrapalho, que não sei fazer nada… quando a culpa não é minha, é ela que não me ensina. Por isso, não tenho que me apressar. Na casa de Deus estou melhor do que na minha.
Não tarda, vou fazer doze anos e já há um certo tempo que pensava em ajudar a dar catequese, mas tinha vergonha de o dizer ao senhor prior. A Fernanda, que fez a Profissão de Fé comigo, ajuda no grupo do primeiro ano e eu comecei a achar que também podia ir aprendendo. Há dias disse-o à tia e ela, num domingo destes, levou-me à sacristia, no fim da missa, e falou com o senhor prior.
Não sou de falar muito. Sou um bocado tímida. Por isso, a tia falou por mim.
Comecei logo no domingo seguinte e estou a gostar muito. Para já, fiquei a auxiliar no grupo do segundo ano; tenho um guia para seguir as lições e cabe-me preparar uma por mês. Posso dizer que é muito interessante como e o que se aprende assim, a ensinar, muito mais do que quando frequentava a catequese para aprender.
É esta a razão de me demorar a chegar a casa e, também, porque gosto de me encontrar com as minhas amigas pelo caminho. Mas o domingo é um dia diferente dos outros dias da semana. Será assim tão difícil de perceber?

15/10/2025

A molha


Os pingos grossos de chuva levantaram o cheiro a terra molhada. 

A manhã acordara suavemente, com ténues raios de sol a espreitar por entre as nuvens que anunciavam a primeira chuva do Outono. Esperá-la tornou-se em ânsia crescente à medida que ela mais se fazia adivinhar.
E ela, então, espreitou ao longe. Observei-a a começar, para lá do arvoredo, a pintar tudo de branco até chegar aqui. 
Primeiro um pingo. Logo outro e outro… e o cheiro a terra molhada a elevar-se com a suavidade e doçura de um chupa-chupa, que apetece saborear devagarinho. 
Chamei-a, “vem chuva, vem!...”, e ela não se fez rogada. Veio lamber o alpendre de um lado ao outro, enquanto eu, com uma vassoura, a ajudava a poli-lo de um brilho molhado apetecível, removendo a sujidade à sua frente. De pés descalços na água morna, cabelo e roupa a escorrer, senti-me a brilhar mais do que o alpendre. Toda eu era riso por dentro e por fora, feliz por poder apalpar o Outono que me beijava. 

Agora, depois de ter ouvido das boas da mãe e de mudar de roupa, olho-o da janela, de cara encostada ao vidro embaciado. O Outono e a chuva podem ser sonhos quentes que molham o rosto e embalam a alma. A mãe, sempre tão azeda e fria, sabe lá alguma coisa disso!

08/10/2025

Arrepiar Caminho II


Escuto mas não sei 

Se o que ouço é silêncio 
Ou deus

Escuto sem saber se estou ouvindo 
O ressoar das planícies do vazio 
Ou a consciência atenta 
Que nos confins do universo 
Me decifra e fita

Apenas sei que caminho como quem 
É olhado amado e conhecido 
E por isso em cada gesto ponho 
Solenidade e risco 
(Sophia de Mello Breyner Andresen) 

Acho que vou aventurar-me um pouco mais para cima, quero conhecer este lado do caminho. 
Começo, na dezena, os Mistérios Gloriosos. Subo mais um pouco para lá da curva, o que estará para lá? Será alguma estrada que vire depois à esquerda, para ir dar àquela capelita? Mas não, não encontro nenhum indício disso. Agora é a direito em estrada de areia lavada pela chuva; ali mais à frente vislumbro uma cortada à direita, quem sabe se não irá desembocar num outro caminho, do lado de baixo, que eu conheça? Experimento. Até porque é já um pouquito tarde para voltar para trás antes que se faça noite. Sigo por aí, é sempre a curvar à direita; sim, deve ir dar lá a baixo. Aperto o passo, afoitando-me por este caminho de sulcos de rodas de tractores, por entre pinheiros e matos. 

Nem dou pelo que a floresta pode em si encerrar. As florestas e os matagais são mães e pais de muitos bichos: rastejantes, roedores; com asas; corredores; dos que trepam às árvores; dos que perfuram a terra; dos que têm tocas; dos que fazem ninhos; lobos, raposas, cobras e lagartos; formigas; abelhões e outros que tais; monstros; lobisomens; ladrões e salteadores… e tantos outros dos que ouvimos falar nos telejornais. Ah, mas não. Isto só me aflorou à mente de raspão. Não vou pensar mais nisso. Aqui, não. Não há aqui nada disso. Sob os meus pés sorriem pequenas flores, dentro dum relvado verdinho, é macio este caminho.

Este caminho é cheio de metáforas. 

A mão vai passando as contas e há alguém que vai rezando; não me parece ser eu… talvez o meu coração. Porque a cabeça, essa, levita, abstraída, sei lá, pela paisagem bonita. Ave Maria, cheia de graça…

04/09/2025

A Casa dos Ratos — intermezzo (8)

 (anterior)

Toda a quadrilha tem um chefe. E eles eram quatro – adiantou-se o vermelhinho: “Eu sou o chefe! Vamos lá, que se faz tarde!” 

E aí vão o Vermelhinho, o Azulinho, o Verdinho e o Amarelinho numa desfilada apressada em fila pelo carreiro, no desfiladeiro do túnel a desembocar numa fresta, alargada pelo Tonecas de tanto por lá remexer. E uma luz lá ao fundo brilhava para eles, que já a estavam a ver. Mas são os olhos do Gato que brilham tanto no escuro na ânsia de os comer. Um sobressalto. Um salto. Um “Alto!... Para trás!... que está ali o rapaz!”
Tiveram de recuar e esperar por melhor oportunidade. 

O Tonecas percebera que tinham tentado fugir. Ficou mais alerta, mas à futrica. Desejava-os há tanto tempo que temia que lhe escapassem sem lhes conseguir tocar. Disfarçou, fechou um olho e abriu outro, espreitou pelo buraco, esperou, esperou, esperou, eles haviam de vir. Fingiu um sono profundo. E adormeceu... e acordou e… 

...é agOora! Deu um salto estendendo as mãos e… 

Quase, quase!... por um triz. Ao lado do seu nariz.

Caramba! (meneou a cabeça), como foi possível?! Estava apardalado... Tinham passado rapidamente debaixo dos seus bigodes, caladinhos como só ratos, que só viu o rabo do último. 

Ainda correu, esbracejou, procurou, fungou, miou, qual quê? Agora?! Muito tarde e a má hora! Já deviam ter-se alojado nalgum canto bem escondido. Ah, como lhe tinham apetecido, como lhe apeteciam ainda, que nóia! Cabisbaixo e atordoado retirou-se, já nada havia a fazer, melhor seria agora esquecer. 

02/08/2025

Subir o Caminho VII

As pedras... Por vezes as pedras que nos surgem no caminho são ásperas e pesadas, impossíveis de remover. Pedregulhos e penedos soltos que têm de ser contornados para encontrarmos um caminho mais macio e sereno. Caminho que se vai fazendo ao caminhar, a cada passada. 

Quando a vida flui e caminhamos naturalmente pelos nossos pés, livres e sacudidos, sem dores musculares ou nas articulações, desimpedidos de muletas ou bengalas, torna-se mais fácil a caminhada, mas não isenta de tropeços ou atrasos. Há sempre que prestar atenção às pedras do caminho. Elas estão por lá. Podem espreitar onde não esperamos. Até num caminho já tantas vezes trilhado, podemos ser surpreendidos, apanhados desprevenidos por um grande calhau ou pedranceira, rolados do alto, estatelados ao comprido, sem eira nem beira. Há que contornar, ultrapassar, e seguir.

A Vida é o que é; e as pedras sempre serão o que são. É isso que temos que interiorizar, porque não podemos mudar isso. Nada a fazer senão aceitar, por muito que nos custe e atrapalhe o nosso caminho. Desviemo-nos, portanto, dos pedregulhos. Não deixemos que nos importunem, e prossigamos a caminhada sem que nos embaracem os passos. 

Pedras no caminho sempre as houve. Há que aprender com o passado para caminhar no agora, rumo ao futuro idealizado. Mas quem aprende?...

Há montes e vales, riachos de água fresca, desertos, oásis... e tantas mais coisas que fazem parte do caminho. Da subida.

Há também as asas do vento e o embalo do sentimento, para ir saboreando algum pequeno voo.

Mas uma certeza nos deve guiar: não caminhamos sozinhos. E isso nos deve animar.


“Eu caminho, sem ver o caminho
Eu caminho por sendas de paz.
Mas eu sei que há alguém
que me ajuda no caminho.
Mas eu sei que há alguém
e com Ele irei caminhar.”

(Sendas de Paz)


01/08/2025

Subir o Caminho VI

Sento-me por momentos numa pedra na encosta a meio da ladeira íngreme, ofegante de cansaço; à minha volta, fragrâncias húmidas de terra e de musgos. As pedras, castanhas de terra, gemem pequenos fios frescos prateados. Por baixo de uma pedra espreita um pequeno lagarto, ou lagartixa – nem sempre sei bem distingui-los; e por entre outras, pequeninas flores. Até no meio das pedras, Deus faz brotar as mais belas flores. Para que se aprenda a sorrir e se esqueçam, ainda que por momentos, as dores. Para além da meta que se pretenda alcançar, é preciso saborear os bons momentos do caminho.

Ergo-me, depois de inspirar o pequeno descanso. No meio do caminho a pedra ficou.
A pedra. E as outras pedras.

As pedras, que são tão essenciais aos alicerces! – sem alicerces somos construção frágil, que em qualquer altura está sujeita a ser levada pela menor ventania.

Pedras que tanto fazem parte do caminho! Continuam no meu trilho a querer morder-me os pés na subida.
Temos que saber aproveitar as pedras em nosso favor, e contornar as que são obstáculos... é o que faço, é o que tento sempre fazer!
A vida está longe de ser planície, embora também as tenha. Mas de montanhas e planícies se conjuga o verbo viver.
A vida, como os ramos de uma árvore, entrelaça-se nela própria e vai seguindo rumo à claridade. Uns ramos vão chegando ao fim do seu percurso, enquanto outros brotam e vicejam.
Por vezes os troncos de algumas árvores são castigados com pedras – pedregulhos – lá colocadas ao seu redor rente ao chão. Para quê? Talvez para que aprofundem as raízes à procura do melhor sustento e venham depois a produzir muitos e saborosos frutos – ouvi dizer.

E vou subindo. De vez em quando resvala-me, por baixo dos pés, uma ou outra pedrita que depois rola por ali abaixo, atrás de mim. Não faz mal. Eu prossigo a marcha. Subo. Por vezes como quem trepa. Tenho de subir. Nem que as mãos tenham que ir ao chão aqui ou ali, quando preciso for, para segurar, amparar, para que não me surpreenda alguma queda, mais ou menos aparatosa, e esfole os joelhos, ou a alma.
É dura a subida; mas sei que depois de subir, ainda terei de descer para voltar para casa. Eu sempre pensei que descer era mais fácil – “para baixo todos os santos ajudam”, não é? – Não, não é, afinal. Disseram-me que descer custa mais. Algumas vezes terei de descer de costas, escorregar sentada, com todo o cuidado, não vá cair ao desamparo, e o vazio venha a ser o ganho da jornada.

E andamos toda uma vida com algum vazio por preencher, a esfarrapar-nos contra esquinas de pedras agrestes que nos cerceiam. Quando, por fim, nos libertamos, tantas vezes ficamos mudos e quedos sem conseguir absorver a realidade.


«Quando as pedras frias
caem brancas e torcidas
sobre as palavras imperiais,
mordendo-lhes as raízes
como se fossem o contrário do que são,
fecham-nos a alma e ficamos sem saber
se as asas se quebram ou
se ficamos de pé à espera das próximas pedras.»
(José Maria Brito Sj)

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